José Miguel Júdice - Prisão preventiva: um cancro que envergonha


Pelo Dr. José Miguel Júdice

As unanimidades costumam ser perigosas. A realidade é tão diversa e os interesses tão contrapostos, que os consensos fáceis muitas vezes mascaram apenas o que verdadeiramente importa: ou porque se está a falar de coisas diferentes, ou porque se está apenas a assobiar para o lado, a ver se passa a onda.

A prisão preventiva é um desses casos. Não se ouve ninguém a defender que esteja bem, todos se indignam com os seus abusos, aparentemente não há quem não esteja de acordo em mudar. Mas fica-me muitas vezes a sensação de que estamos a falar de coisas diferentes ou que alguns dos que concordam ou pelo menos se calam, estão apenas à espera de melhores dias.

E, no entanto, tudo deveria ser simples. A prisão preventiva não é o começo do cumprimento de uma pena por um Cidadão que não foi condenado (e nem sequer acusado de nada); é uma medida excepcional que só pode ser aplicada em situações muito limitadas, se certos factos comprovadamente ocorrerem, não havendo outra medida mais adequada, e se for claramente fundamentada.

Acresce que o custo para a Sociedade de cada preso preventivo é muito elevado (mesmo que se desconte o custo social das injustiça, os efeitos psicológicos no arguido e seus familiares e a diminuição da produção pela inacção que provoca ao Cidadão que é afastado seu posto de trabalho) e até uma mera visão economicista deveria levar a ponderar os excesso de prisão preventiva.

Nada disto acontece na prática. A prisão preventiva é uma medida de que se usa e abusa, funciona como uma pré-punição (só assim se pode entender que se tente justificá-la com o facto de na generalidade dos casos o arguido vir a ser condenado), é um instrumento de investigação (“prende-se para investigar”, escreveu Figueiredo Dias), responde à comoção pública (e em regra à do público) mediatizada por canais televisivos e tablóides, não é adequadamente fundamentada e na prática funciona como a única alternativa às medidas de “termos de identidade e residência” (TIR), caução e “obrigação de apresentação periódica”, que são desvalorizadas ao máximo.

Tudo isto tem de mudar. A prisão preventiva — sobretudo num universo mediatizado e em que o segredo de justiça é uma fraude que nem o Procurador Geral da República consegue evitar — funciona como uma punição, muitas vezes como a única e verdadeira punição : muitos podem entrar inocentes nas prisões, mas delas poucos conseguem sair inocentes; a opinião pública condena sumariamente quem foi detido e a hipotética absolvição não resolve nada (1); as vidas dos detidos ficam destruídas ou afectadas muito gravemente sem nenhuma compensação adequada.

Tudo isto tem de mudar, realmente. A começar pela interpretação das normas existentes. A lei é, em minha opinião, clara:

a) as medidas de coacção têm natureza cautelar (e por isso não punitiva), devem existir apenas se comprovadamente forem cautelarmente necessárias (o que exige uma crite-riosa fundamentação), devem ser adequadas às cautelas exigidas (e por isso obrigam a ponderar factos e não meras hipóteses teóricas) e proporcionais à gravidade do crime (não de qualquer crime mas do que os factos existentes permitam indiciar com grau elevado de certeza);

b) a prisão preventiva só pode ser decretada se o Juiz considerar “inadequadas ou insuficientes” todas e cada uma das outras medidas de coacção; o que significa e só pode significar que a prisão preventiva exige que seja demonstrado pelo Juiz que, para além de uma dúvida razoável, nenhuma outra medida tem suficiente adequação aos fins cautelares existentes (sem os quais, repete-se, nenhuma medida se justificará);

c) a prisão preventiva exige, além disso, que existam “fortes indícios”, e não apenas indícios, da prática de crime doloso especialmente grave;

d) todas as medidas para além do TIR exigem que existam “em concreto” (e não apenas como hipótese possível ou até provável), alternativamente, (i) fuga ou perigo de fuga, (ii) perigo de perturbação do inquérito ou das provas, (iii) perigo de “perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa”, mas neste caso desde que a “natureza” e as “circunstâncias” do crime ou a “personalidade” do arguido o determinarem, tudo exigindo adequada fundamentação que manifestamente raras vezes é feita, até por escassear ao magistrado o tempo e a preparação para tais ponderações. E antes da fundamentação, exige que existam factos e não meras hipóteses em que sustentar a fundamentação.

Dir-se-ia que, portanto, a lei está boa, rodeia tudo de inúmeras cautelas e os abusos e exageros são originados na sua má aplicação. Discordo que assim seja: se uma lei é sistematicamente mal aplicada, se é sistematicamente mal justificado um procedimento e, sobretudo, se isso afecta as liberdades e a presunção de inocência, não se pode deixar de tentar melhorar as leis para diminuir os riscos. Melhorar as leis pode ser inútil, mas não é seguramente prejudicial. Não as melhorar está a justificar o que por aí se vê. Mas não basta melhorar as leis para evitar os riscos que se conhecem.

Assim, de seguida se fazem algumas propostas concretas para melhorar o funcionamento do sistema de molde a que ele possa estar na prática mais de acordo com o programa normativo que está no CPP e que nas suas linhas gerais é razoável. Como sempre são propostas que são para discutir no Congresso da Justiça e para servirem de ponto de partida para os desejáveis consensos. Vamos então às propostas:

1. Reforço no CPP do sentido de que a prisão preventiva é excepcional, a “ultima ratio”, só concretizável quando necessária e no último momento possível.

2. Reforço no CPP da necessidade de fundamentação criteriosa e detalhada, com base em factos concretos, da prisão preventiva e do sentido cautelar como a sua única justificação admissível.

3. Distinção entre prisão preventiva antes de uma primeira condenação e a que existe após tal condenação e até ao trânsito em julgado, desde logo para evitar habilidades estatísticas, para diminuir a boa consciência que se estrutura na utilização dessa diferença de situações, e sobretudo para que o preso preventivo depois de condenado mas em recurso não tenha menos direitos do que o preso já condenado de modo definitivo, designadamente no que se refere a saídas precárias, perdões e acesso a sistemas de reinserção social.

4. Obrigação de ser feita uma pré-acusação provisória antes de ser decretada a prisão preventiva (e devendo sempre ser precedida da audição do arguido e não apenas, como diz a lei, quando “possível e conveniente”!), de modo a que se possa abrir de imediato um processo contraditório que permita ao Defensor tentar destruir as condições em que se estruturou a medida cautelar da prisão preventiva.

5. Revisão do artigo 204 do CPP de forma a (a) separar claramente a prisão preventiva das outras medidas de coacção, reforçando assim a sua excepcionalidade não apenas absoluta como também relativa; e (b) claramente afastando a interpretação actual que de forma extensiva aplica a prisão preventiva a situações de mera comoção pública (por exemplo alguém indiciado do crime de pedofilia e com grande visibilidade pública não é nada provável que continue a prática criminosa ou perturbe a ordem e a tranquilidade pública enquanto aguarda acusação ou julgamento) ou de reacções populistas de lei e ordem repletas de uma lógica securitária.

6. Investimento maciço (que constitui no entanto uma grande poupança de fundos públicos) em sistemas alternativos à prisão preventiva, como sejam as pulseiras electrónicas e meios de controlo à distância que permitem monitorizar as deslocações de arguidos por percursos pré-definidos, de tal modo que possam ser aplicados em todo o País, impondo ao Juiz a obrigação de justificar a opção pela prisão preventiva em detrimento destes meios, mesmo quando — na falta deles — a prisão preventiva fosse a única solução cautelar adequada.

7. Criação urgente, pelo menos nas zonas do país de maior criminalidade, de gabinetes pluri-disciplinares com acesso a informações e bancos de dados, formados por psicólogos, economistas, juristas, contabilistas, etc, que possam assessorar o Juiz na decretação de medidas de coacção e que possam realizar investigações especializadas (sistema existente com grande sucesso em alguns Estados dos EUA).

8. Clarificação de que a reavaliação trimestral só pode ser realizada por antecipação se o Juiz entender que tem factos novos que justifiquem a opção por uma medida menos gravosa.

9. Aplicação de uma compensação indemnizatória automática aos presos preventivos que venham a ser absolvidos, condenados em pena de prisão não efectiva ou em prisão efectiva com duração inferior a metade da prisão preventiva sofrida.

10. Estabelecimento de um período máximo peremptório para a prisão preventiva antes da decisão a nível de 1.ª Instância, que terá de ser claramente inferior ao actual e sempre inferior a um número definido de meses para os crimes mais graves e para os outros não exceder mais de metade da medida superior da moldura penal aplicável ao crime para que esteja indiciado.

11. Clarificação do regime de habeas corpus para que se ultrapasse a jurisprudência dominante que na prática o inviabiliza.

12. Criação do recurso de amparo para acesso directo e imediato ao Tribunal Constitucional em todas as matérias que contendam com liberdades e garantias, sempre que se suscitem questões de constitucionalidade das normas, da respectiva interpretação ou das práticas.

13. Criação de condições para efectiva separação dos preventivos nos estabelecimentos prisionais, com aplicação de medidas de reinserção social pelo menos tão relevantes e favoráveis como as de que beneficiam os não preventivos.

Este conjunto de propostas constituem tão somente a clarificação do regime constitucional e não devem sequer ser consideradas polémicas. Se o forem, paciência. A prisão preventiva nos moldes em que vem sendo praticada é um cancro e uma vergonha: infecta todo o sistema e diminui a sua legitimidade e auto-estima. E por isso é preciso não hesitar em fazer as correcções necessárias.


Notas:

(1) Ainda há tempos um órgão de comunicação social se referia a um Cliente meu que fora absolvido (com proposta nesse sentido do MP no julgamento) após 16 meses de prisão preventiva, dizendo que não fora condenado apenas porque se não conseguiu provar que era culpado!...

14/10/2024 10:16:49