Bastonário Rogério Alves - Sessão de encerramento
Bastonário Rogério Alves(*)(**)
Meus queridos colegas. Já é tarde e estamos todos um pouco cansados.
Eu não gosto muito de citações. Mas vão-me permitir que, assim de cor, cite um poema de Fernando Pessoa, mais ou menos assim:
«Cansaço.
Não é cansaço.
É uma quantidade de desilusão.»
Eu gosto muito de poesia. Por isso foi um prazer ter estado ontem na homenagem ao Bastonário António Osório, na sua vertente de poeta. Ele tem dupla personalidade como sabem. É António Osório de Castro na advocacia e António Osório, para a poesia.
E falava um nosso colega que apresentou, aliás, magnificamente o trabalho do nosso querido Bastonário, na poesia concreta, realista.
Enquanto o ouvia, pensava que nós gostamos tanto mais da poesia do concreto, quanto gostamos do concreto, e não só da poesia.
Mas eu queria aqui dizer-vos, sem ofensa para o Fernando Pessoa, que neste momento haverá, quanto muito, um bocadinho de cansaço, haverá o imenso peso da responsabilidade, mas não há lugar a nenhuma desilusão.
E é nessa onda que eu quero iniciar esta minha breve alo-cução final.
Primeiro, cumprimentando o Senhor Ministro da Justiça. Agradecendo-lhe por estar aqui presente connosco.
É uma distinção que notamos com muito agrado. Que nos sensibiliza. Num momento que sabemos que é um momento difícil. Difícil e tenso. Mas o Senhor Ministro da Justiça não deixou de estar aqui, para nos dar o seu testemunho. O testemunho que é simultaneamente o de figura cimeira da governação do país e o de advogado, nosso colega.
E ainda ontem ouvi por aí vários de vós, recordarem o Ministro Alberto Costa nos seus tempos de estudante e activista, nos terrenos do associativismo. E dos seus dotes de argumentador nato, que alguns colegas aí lhe louvavam. Agradecemos-lhe, Senhor Ministro, estar aqui connosco.
Agradeço a todos os nossos convidados. Aos senhores magistrados que estão aqui representados pelo Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Évora. Pela ilustríssima representante do Conselho Superior de Magistratura, magistrada judicial aqui no Algarve.
Agradeço ao nosso querido Dr. Victor Faria, representante também do Conselho Superior de Magistratura. Agradeço aos Senhores Secretários de Estado. Estão aqui ambos. Dr. Conde Rodrigues, Dr. João Tiago Silveira.
Senhor Governador Civil de Faro. Meus queridos amigos, os bastonários do Brasil e de Moçambique, os nossos queridos colegas Roberto Busato e Carlos Cauio. O nosso querido Neto Valente, nosso colega, nosso amigo, que aqui representa a advocacia de Macau.
Os meus colegas, todos vós. Os meus colegas do Conselho Geral, os colegas do Conselho Superior. Os colegas dos Conselhos Distritais, dos Conselhos de Deontologia, das Delegações. Os que já foram membros destes órgãos. Os que nunca foram. E alguns virão seguramente a sê-lo.
Os colegas mais jovens. Os colegas mais velhos. Os colegas homens. As colegas mulheres. Todos vós que estais aqui, apesar das nossas divergências, todos irmanados num objectivo que sentimos transcender em muito a situação conjuntural de nós próprios e do nosso país.
Eu, como sabem, nunca preparo muito os meus discursos. Gosto de comentar aquilo que acabei de ouvir, o que inviabiliza a preparação prévia.
Mas há dias, no pouco tempo que me resta para ler, dei com um poema de António Gedeão.
Pensei que seria interessante lê-lo aqui. É um poema muito pequenino.
O senhor Bastonário dá-me licença que se leia aqui um poema que não é seu?
Eu gosto muito do António Gedeão. Também ele, como sabem, tinha dupla personalidade. Na outra parte, a de professor, nunca me entendi muito com as ciências, as matemáticas e as físicas. E portanto aprecio-o sempre muito mais como poeta.
Ao pensar no ambiente instalado no nosso diálogo político e social, lembrei-me então deste pequeno poema, que se chama, «A Hora H».
Diz assim:
«A Primavera cheira a laranjas.
Ao que se responde.
—Há umas granadas de mão. Redondas e pequenas a que chamam laranjas.
O senhor mais bem intencionado responde.
—O cheiro das laranjas enche a noite luarenta de mistérios.
E a resposta é esta.
—Dizem que as noites de luar são as melhores para bombardeamentos aéreos.»
E é neste ambiente de tensão, entre o que é possível construir e o muito que se procura destruir, que nós estamos a viver esta entrada algo tensa e alvoraçada no Século XXI.
Já lá vão uns anos que entrámos no Século XXI. Não parece. Mas é assim.
E coloca-se-nos a nós, que nos reunimos em Congresso de 5 em 5 anos, um desafio colossal. O de recolocar o homem, o cidadão, o nosso representado, ou, se preferirem, o povo, no centro do sistema judicial, no centro da elaboração das leis, no centro das preocupações. Ganhando o lugar que foi perdendo para as estatísticas, para os objectivos, para os custos, para o défice.
E para todos aqueles objectivos programáticos que nós já quase não questionamos, mas que nos oprimem, nos condicionam, nos causam mal-estar. Nos causam até a necessidade de promovermos actividade anti-stress no quadro do nosso congresso.
Porque sentimos o nosso peito um pouco pressionado e vivemos uma coisa que eu confesso-vos, não julgaria voltar a viver, quando o 25 de Abril, que me apanhou com 12 anos de idade, aconteceu há 31 anos atrás.
Vivemos, às vezes, um certo ambiente de medo.
E o medo é muito mau conselheiro.
O medo gera agressividade. O medo gera tensão. Gera cobardia.
E nós precisamos de lucidez. Precisamos de coragem. E precisamos de paz.
Em paz. Com coragem. Com a consciência de estarmos a trabalhar para os outros, que nos impõem soluções.
E por isso eu gostava de vos dizer, meus queridos colegas, que 2006 será o ano das soluções e da mobilização dos advogados.
E este Congresso de alguma forma fá-lo, sem o incluir em nenhuma conclusão. Mais do que mobilização, está decretado para a advocacia um ano de rigorosa prevenção.
Entrámos, então, em estado de prevenção. Como as tropas e os exércitos, quando se aproximam os grandes combates ou os grandes acontecimentos similares.
O ano de 2006 apanha-nos ou apanhar-nos-á de prevenção rigorosa, para não sermos apanhados de surpresa por nenhum fenómeno espúrio. Como as famosas virgens bíblicas, ainda que devidamente advertidas, dizem as escrituras.
Vamos estar em elevado estado de prevenção e de mobilização. Alerta permanente.
Este é um propósito que está expresso e impresso nas conclusões que aqui tomámos.
E vamos estar em alerta permanente a tudo o que for a necessidade de matar o medo. De repor o homem no centro do sistema e encontrar as tais soluções.
E essa mobilização logra-se e atinge-se às vezes com alguma dificuldade. Porque a vida de cada um de nós deixa pouco espaço para a vida em prol da comunidade.
Deixa pouco espaço para cumprirmos aquele contrato social rousseano, que nos foi proposto e teorizado há uns séculos atrás. A Ordem tem de assumir este papel de garante da mobilização e do alerta permanente dos advogados.
E por isso, eu assumo aqui perante vós o compromisso de, ao longo do ano de 2006, e até para suprir eventuais insuficiências de espaço para debate que aqui foram suscitadas promover pelo menos duas assembleias-gerais de advogados. E eu gostaria de o fazer de forma descentralizada. No norte do país. No sul do país. E no centro do país.
Gostava que os colegas, que todos os advogados, estivessem sempre em condições de debaterem medidas como estas que foram aqui lançadas pelo Senhor Ministro, e que, de facto seguem o seu curso. Outras estão para vir. Por umas e para outras não seremos apanhados desprevenidos.
Depois queria fazer-vos um apelo.
A Ordem, de há muitos anos a esta parte, faz o que pode em matéria de mobilização.
Procura chamar aqueles que podem, pelos seus conhecimentos, pela sua experiência, pela vivacidade intelectual, pela capacidade de persuasão e pela sua qualidade científica possam integrar os nossos corpos de combate. Os nossos gabinetes de estudo. As nossas comissões especializadas. Os nossos institutos. Para criarmos as nossas propostas. Para produzirmos os tais projectos. Os tais projectos de articulados. Os tais diplomas. Numa posição pró-activa, que organize a nossa grande capacidade científica e o nosso enorme e insubstituível conhecimento do mundo judiciário, e do mundo para o qual o mundo judiciário foi criado. Que é o mundo dos seres vivos, das pessoas.
Tudo isto temos de convocar e organizar, para conseguirmos ser activos e pró-activos.
Mas isso não pode ser apenas motivo de conclusões, expressão de intenções. Tem de ser um compromisso cívico permanente, dos próprios advogados com a sua Ordem.
Gostaria de contar com este vosso empenhamento. Com esta vossa integração. Com o contributo das ideias. Com o contributo e a frescura de quem tem porventura até mais disponibilidade, mais criatividade e mais capacidade para criar coisas novas e propor coisas novas.
Meus queridos colegas, eu não tenho ilusões quanto às dificuldades que nos cercam.
Nós temos de tudo.
Temos ameaças de toda a ordem. E de toda a índole.
E eu não tenho quaisquer ilusões, já o disse no discurso de abertura, sobre os riscos que todos corremos por persistirmos em defesa da liberdade e dos direitos humanos.
Em persistirmos na defesa intransigente dos direitos huma-nos em todos os locais onde esse direitos humanos sofrem sérias ameaças.
Neste plenário houve uma coisa que me deixou profundamente feliz.
É que vi e notei um revigorar da preocupação da Ordem dos Advogados pelo processo penal.
E isso deixa-me mais tranquilo.
Verifiquei que a Ordem está atenta às manifestações absolutamente inaceitáveis que a nossa lei processual penal gerou.
E aos violentos, sistemáticos e, tal como se disse aqui, mediatizados atropelos que constituem verdadeiros vexames de cidadãos. Feitos por quem não se responsabiliza por eles e comandados por quem afinal, pelos vistos, não comanda.
E nós temos de pedir responsabilidades a quem vexa. A quem vexa as pessoas. A quem as mantêm num lume brando dessa terrível situação de arguido, que perdura por anos e anos consecutivos. Despedindo-os, depois, sem lhes dar uma explicação, uma reparação, uma justificação que seria devida num estado democrático e de direito.
Fiquei feliz. Fiquei feliz por ver que nós, porque o Congresso somos nós, voltámos a recentrar muito da nossa atenção aí onde verdadeiramente a pessoa humana se confronta com o grande poder do Estado. Se confronta por vezes com a prepotência do Estado. A arrogância do Estado. A má criação do Estado. Os abusos do Estado. Que às vezes se esquece que, fazer investigação criminal não é copiar os filmes de cowboys. É, de acordo com regras democráticas assumidas e assimiladas da nossa cultura jurídica, felizmente, de há vários anos a esta parte.
Também aqui é preciosa a mobilização, que vai ser permanente e continuada.
Vamos estar capazes de dar respostas conjunturais e estruturais às mudanças pequenas e grandes.
Em todos os dossiers que em 2006 estarão sobre a mesa. O acesso ao direito. A alteração do mapa judiciário. A reforma do processo penal. A reforma do processo civil. Mudanças na formação. E as propostas que surgem no ar da alteração orgânica da própria Ordem.
Estamos abertos a discutir tudo.
Ninguém como os advogados, discute tudo. Polemiza sobre tudo. Intervém em todos os campos. Está habituado ao contraditório. Está habituado a não se conformar, a recorrer, mesmo quando é moda vigente não só atacar os recursos, mas confundi-los sistematicamente como empecilhos à boa administração, à justiça.
Nós estamos habituados a este fardo. Mesmo em condições terríveis de escrutínio e avaliação. Como se sabe, se um advogado produz uma peça na qual inclui uma tese que não tem vencimento, é considerado um incompetente.
Não defendeu bem os interesses do seu cliente.
Porventura merece uma ou mais queixas no Conselho de Deontologia.
Não é assim, se há um recurso e uma sentença é revogada por um tribunal superior.
Dir-se-á então:
Faz parte do dia-a-dia e é o sistema a funcionar.
E é assim que deve continuar a ser.
Por isso, a nossa actividade é tão arriscada quanto bela, tão empolgante, quanto desgastante.
Mas o desgaste não nos demove.
Nenhum de nós pode transigir um milímetro naquilo que demorou tantos anos a conseguir. O Estado de direito.
E eu acredito firmemente nisso, apesar da conjuntura que sentimos, impiedosa, no dia a dia. Mas também sentimos na nossa alma que 2006 vai ser mesmo o ano da cidadania.
Vai ser mesmo o ano da advocacia.
E vai ser mesmo, também espero, o ano das soluções. Quando este Governo tomou posse, eu tive ocasião de dizer para memória futura, como agora também se diz, que o desejo dos advogados é que o Ministro da Justiça que está, seja ele qual for, seja o melhor Ministro da Justiça de sempre.
Porque isso, salvo imponderável de última hora, significará que tudo aquilo que nós criticamos como anquilosado, lento, caro, insusceptível de dar resposta aos cidadãos foi alterado ou começou, com passos seguros, a ser alterado.
E muitas vezes me perguntaram ao longo destes 3 dias, o que é que afinal estava mal na imagem dos advogados?
Bom. Na imagem dos advogados talvez não haja assim tanta coisa mal.
Na transmissão pública dessa imagem é que, por vezes, parecem ser utilizadas televisões que ainda têm aquelas velhas sombras do tempo da televisão a preto e branco e das antenas interiores. Em que não conseguíamos ler as legendas e nem se conseguia perceber os traços fisionómicos das pessoas.
Essas sombras impedem de ver a verdade.
Nós somos a profissão, já o disse e gostaria aqui de o repetir, da concertação social. Somos a profissão da pacificação social. Somos a profissão à qual toda a gente se acolhe quando quer conhecer os seus direitos e quando quer cumprir os seus deveres.
Devíamos, mais do que tudo, ser reconhecidos por isso. E não como os litigantes impenitentes. Os litigantes crónicos. Os litigantes inconvenientes. Porque, como todos sabem, a litigância, para nós, é sempre e só o último recurso para resolver um problema que de outra forma não se resolve.
Portanto, 2006 será também o ano da reposição da verdade quanto à nossa função social, que nos gera essa tal responsabilidade social que aqui lembramos e celebramos.
Meus caros colegas. Nós temos muitos motivos para apreensão. Eu sei.
Temos muitos motivos para temer o ano de 2006. Eu sei. Temos episódios recentes de alguns de cariz ciclónico pelo menos no nome, e não só no nome.
Temos fenómenos recentes que nos fazem olhar com alguma perplexidade os tempos que se avizinham.
E este Congresso, por sortilégios do calendário, veio em boa altura.
Acho que conseguimos despertar quem estivesse adormecido. Acho que conseguimos alertar toda essa advocacia espalhada pelo país fora, que estava a começar a desacreditar na força e no poder da nossa unidade.
Acho que fizemos a nossa habitual auto-crítica. Capaz de corrigir o nosso próprio mecanismo de interacção e intervenção, que não é o mesmo de há 80 anos ou de há 35 anos. E refiro-me a estas datas quando penso no nascimento da Ordem e no congresso de 72.
Para o ano faremos 80 anos.
E vamos celebrar isso com muito orgulho.
E por isso, vos convido e exorto meus caros colegas. Não vamos ter medo. Não vamos hesitar em defender, com vontade férrea, aquilo que é a razão de ser da nossa profissão.
Um advogado com coragem. Um advogado destemido. Um advogado arrojado. Um advogado sem medo. Este advogado faz mais pela advocacia que muitos debates em horário nobre.
Vou terminar.
E queria terminar dedicando-vos a vós todos um poema. Outro poema do António Gedeão.
E que vos queria dedicar com os meus cumprimentos e a minha amizade.
Este poema é o do Homem-rã.
«Eu sou o Homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem.
É tudo meu. Tudo meu.»
Muito Obrigado.
(*) Presidente do Congresso.
(**) Discurso proferido de improviso.