António Menezes Cordeiro - Créditos Documentários
Pelo Prof. Doutor António Menezes Cordeiro
SUMÁRIO:
I. Introdução: 1. Noções gerais; 2. Modalidades; 3. Funções;
4. Importância.—II. Regras e usos uniformes: 5. Origem e evolução;
6. Regras e usos uniformes (RUU) (revisão de 1993); 7. Regras e usos uniformes (RUU) (revisão de 2007); 8. Positividade jurídica.—III. O contrato de emissão: 9. Fontes: o contrato de emissão; 10. O negócio base: a abstracção; 11. A interpretação.—IV. O funcionamento: 12. A formação; a carta de crédito; 13. A apresentação; 14. Cessão de créditos.—V. A natureza: 15. Construção geral; 16. Natureza
I. INTRODUÇÃO
1. Noções gerais
I. Diz se crédito documentário a situação jurídica pela qual um banqueiro se compromete, perante um seu cliente, a pagar uma certa quantia a um terceiro mediante a entrega, por este, de determinados documentos. O crédito documentário pode encobrir operações distintas: razão pela qual, designadamente na prática internacional(1) e na doutrina italiana, ele aparece, muitas vezes, no plural: “créditos documentários”(2). Ainda no plano terminológico, fala se, também, em “abertura de crédito documentário” ou em “crédito confirmado”(3). Na língua inglesa, consagrada pelos usos no comércio internacional, utilizam se as expressões documentary credits e standby letters of credit. No Direito alemão, a expressão mais frequente é Dokumentenakkreditiv(4).
II. No domínio dos créditos documentários, surge uma semântica própria, de que cumpre dar nota. Assim:
— o banqueiro obrigado chama se banco emitente ou issuing bank;
— o cliente que contrata com o banqueiro é o ordenante, o mandante ou applicant;
— o terceiro que, mediante documentos, irá receber o dinheiro é o beneficiário ou beneficiary;
— os documentos que o beneficiário deverá entregar para receber o crédito dizem se, ainda, a apresentação ou presentation.
2. Modalidades
I. O crédito documentário comporta modalidades distintas de que cumpre dar nota. Assim, temos:
— crédito revogável;
— crédito irrevogável.
Na primeira hipótese, o banqueiro emitente pode modificar ou resolver o crédito a todo o tempo; apenas deverá, da sua decisão, notificar o beneficiário. Pelo contrário, na segunda, o banqueiro deve dar sequência à obrigação que assumiu, sejam quais forem as circunstâncias. De acordo com as regras e usos uniformes, o crédito, quando nada se diga, é irrevogável (3.°/III).
II. De acordo com o conteúdo do “crédito” assumido pelo banco emitente, podemos distinguir(5):
— crédito à vista;
— crédito diferido;
— crédito por aceitação;
— crédito por negociação.
O crédito é à vista quando o banqueiro assume o compromisso de, por si ou através de outro banqueiro, efectuar um pagamento imediato, mediante a apresentação dos documentos. No crédito diferido, o pagamento operará mais tarde, na data constante da promissória elaborada a pedido do mandante. O crédito por aceitação pressupõe que o crédito tenha sido incorporado num título cambiário, como uma letra de câmbio: esta será aceite pelo banqueiro, nos moldes acordados. A letra poderá depois ser descontada, nos termos gerais. No crédito para negociação assiste se, também, à criação de um título de crédito. Todavia, este pode ser sacado sobre qualquer outra pessoa designada na carta de crédito, incluindo o próprio mandante. Além disso, o banqueiro procede, desde logo, ao desconto, o qual não é, assim, uma operação exterior à carta de crédito.
III. Em função de banqueiros intervenientes, podemos distinguir:
— crédito simples;
— crédito com banqueiro intermediário.
Na primeira hipótese, o banqueiro emitente procede aos pagamentos a que haja lugar. Na segunda, ocorre a presença de um banco intermediário: uma eventualidade frequente nas relações de comércio internacionais onde, por razões práticas, o banqueiro emitente pertence à praça do comprador e não conhece o beneficiário nem, por ele, é conhecido; o beneficiário incumbe então um banqueiro da praça do vendedor de proceder às operações subsequentes. E aqui abrem se, três sub-hipóteses, relativas ao banqueiro intermediário. Este pode ser:
— um banco notificador;
— um banco designado;
— um banco confirmador ou confirmante.
O banco notificador limita se a transmitir a carta de crédito ao beneficiário: age como mandatário do banco emitente, devendo apenas verificar, com um cuidado razoável, a autenticidade do crédito transmitido. O banco designado, para além de notificar o beneficiário do crédito, deve ainda realizá lo por conta do banco emitente. Por fim, o banco confirmador assume um compromisso para com o beneficiário: em tudo semelhante ao do banco emitente. O beneficiário disporá, então, de uma dupla garantia, falando se em “crédito confirmado”.
3. Funções
I. O crédito documentário assume funções distintas. Podemos distinguir(6):
— uma função de pagamento;
— uma função de garantia;
— uma função de financiamento.
Na sua feição mais simples, o crédito documentário oferece ao ordenante um meio directo e fácil de pagamento, após verificação da causa da dívida. Tratando se, em especial, de uma compra e venda internacional: o comprador importador dispõe de um instrumento para pagar o preço, sem especiais riscos nem ameaças de mora ou de extravio de espécies monetárias.
II. O crédito documentário garante ainda, ao beneficiário, a percepção de uma determinada importância. Com efeito, o beneficiário abre mão, em regra, das mercadorias e isso a favor de um adquirente estrangeiro, muitas vezes dele desconhecido. A sua garantia residirá, então, na promissória do banco emitente, donde resulte o seu crédito documentário. Nesta dimensão, o crédito traduz uma espécie de garantia bancária autónoma.
III. Finalmente, o crédito documentário pode traduzir a concessão proprio sensu de crédito ao mandante ou ordenante. O banqueiro antecipa os fundos que irá conferir ao beneficiário, concedendo, por essa via, crédito ao ordenante. Nesta dimensão poderão ser acordadas garantias, condições de reembolso, cláusulas penais, juros e todos os demais aspectos que podem enformar o crédito bancário.
4. Importância
I. O crédito documentário já foi considerado o “sangue” das relações comerciais internacionais. Efectivamente, ele permite o estabelecimento profíquo de relações internacionais entre pessoas que não se conhecem. Muita riqueza circula e multiplica se graças à teia de relações bancárias as quais são, assim, usadas como suportes para o comércio internacional. A electrónica e toda a banca dela decorrente levam a uma redefinição de alguns aspectos. As estruturas tradicionais mantêm se, porém, intactas.
II. O crédito documentário analisa se, ainda, num quadro versátil, susceptível de dar corpo a situações muito diversas.
O ordenante e o banco emitente podem celebrar os mais variados acordos. A relação material existente entre o ordenante e o beneficiário — e em relação à qual o banqueiro é, em princípio, alheio — pode ser de todo o tipo. Finalmente: o próprio direito do beneficiário pode assumir distintas configurações. Em suma: através do crédito documentário, podem alcançar se as mais distintas regulações de interesses.
II. REGRAS E USOS UNIFORMES
5. Origem e evolução
I. O crédito documentário teve a sua origem na Praça de Londres(7). A libra esterlina funcionava como meio internacional de pagamento, sendo o crédito documentário uma forma, por excelência, de pagamentos internacionais. Tratava se de uma operação assente nos usos e, depois, nas cláusulas contratuais dos bancos. Todavia, ela implicava, por vezes, a necessidade de intervenção de bancos locais (nominated banks) os quais podiam assumir diversos papéis, como acima foi verificado. Esta dimensão, ligada à internacionalidade das várias situações, forçaria a subsequente evolução uniformizadora.
II. À partida, o crédito documentário não tem qualquer base legal(8). As inerentes relações pautavam se por aquilo que fosse combinado entre as partes, isto é: entre o mandante e o banqueiro emitente. As preocupações de rapidez e de racionalização do comércio bancário levaram os banqueiros a preparar cláusulas contratuais gerais, cláusulas essas que, muitas vezes, davam corpo aos usos e costumes geralmente aceites.
III. Finalmente, sob a égide da Câmara de Comércio Internacional, procedeu se, em Viena e no ano de 1933, à adopção de denominadas “regras e usos uniformes relativos aos créditos documentários”. Tais “regras e usos” foram revistos, pela primeira vez, na Conferência de Lisboa, em 1951. Seguiram se revisões sucessivas, particularmente a de 1962, que traduziu a adesão dos bancos ingleses e dos países da Commonwealth, acolhendo muitas das suas técnicas. Em 1975, nova revisão visou a sua compatibilização com as técnicas de transporte internacional. Um aperfeiçoamento geral deu se em 1983. Em 1993, intentou se uma simplificação, a qual foi retomada na revisão de 2007.
A ambas estas revisões iremos dedicar alguma atenção.
6. Regras e usos uniformes (RUU) (revisão de 1993)
I. Na revisão de 1993, as regras e usos uniformes relativos aos créditos documentários abrangiam 49 artigos, assim ordenados:
A Disposições gerais e definições (1.° a 5.°);
B Forma e notificação dos créditos (6.° a 12.°);
C Obrigações e responsabilidades (13.° a 19.°);
D Documentos (20.° a 38.°);
E Disposições diversas (39.° a 47.°);
F Crédito transferível (48.°);
G Cessão do produto do crédito (49.°).
II. Quanto a disposições gerais e definições, temos as regras seguintes:
1.° Campo de aplicação dos RUU (UCP em inglês);
2.° Significado de “crédito”;
3.° Créditos e contratos;
4.° Documentos e mercadorias / serviços / prestações;
5.° Instruções para emitir / alterar os créditos.
Sublinhamos o artigo 3.°: estabelece a independência entre os créditos e as vendas ou outras transacções em que se possam basear.
III. Por seu turno, o ponto referente à forma e à notificação dos créditos explicita:
6.° Créditos revogáveis e irrevogáveis;
7.° Responsabilidade do banco notificador;
8.° Revogação de um crédito;
9.° Responsabilidade dos bancos emitentes e confirmadores;
10.° Tipos de crédito;
11.° Créditos avisados por telecomunicação e créditos pré avisados;
12.° Instruções incompletas ou imprecisas.
IV. No tocante a obrigações e responsabilidades, encontramos:
13.° Norma para o exame de documentos;
14.° Documentos com divergências e notificação de divergências;
15.° Reserva quanto ao valor dos documentos;
16.° Reserva sobre a transmissão das mensagens;
17.° Força maior;
18.° Reserva da observância das instruções dadas a uma parte;
19.° Disposições para o reembolso de banco a banco.
Relevamos a primeira parte do artigo 13.°:
Os bancos devem examinar com uma seriedade razoável (with reasonable case) todos os documentos estipulados no crédito, a fim de se assegurarem se eles se encontram ou não em aparente conformidade com os termos e condições do crédito.
V. O ponto D reporta se a documentos. Em síntese:
20.° Ambiguidades quanto aos emitentes de documentos;
21.° Emitentes ou conteúdo de documentos não especificados;
22.° Data de emissão dos documentos e data do crédito;
23.° Conhecimento de embarque marítimo;
24.° Carta de porte marítimo não negociável;
25.° Conhecimento “charter party”;
26.° Documento de transporte multimodal;
27.° Documentos de transporte por via aérea;
28.° Documentos de transporte por terra, caminho de ferro ou vias interiores navegáveis;
29.° Recibos de sociedades de correio expresso e recibos postais;
30.° Documentos de transporte emitidos por transitários;
31.° “No convés”, “embarque e contagem pelo expedidor”, nome do expedidor;
32.° Documentos de transporte limpos;
33.° Documentos de transporte “frete pagável/pago antecipadamente”;
34.° Documentos de seguro;
35.° Tipo de cobertura de seguro;
36.° Cobertura do seguro “todos os riscos”;
37.° Facturas comerciais;
38.° Outros documentos.
Temos, aqui, uma especial atenção a elementos ligados a contratos de transporte, particularmente internacionais. É nessa área que surge a generalidade dos documentos relevantes em sede de créditos documentários.
VI. O ponto E, referente a disposições diversas, agrupa as normas seguintes:
39.° Tolerâncias relativas ao montante do crédito;
40.° Expedições/utilizações parciais;
41.° Expedições/utilizações fraccionadas;
42.° Data limite de validade e lugar para apresentação dos documentos;
43.° Delimitação da data de validade;
44.° Prorrogação da data limite de validade;
45.° Horário de apresentação;
46.° Expressões gerais relativas às datas de expedição;
47.° Terminologia relativa às datas para os períodos de expedição.
O quantum de tolerâncias e importantes prazos supletivos resultam destes preceitos, de grande relevo prático.
VII. Por fim, os pontos F e G dispõem sobre o crédito transferível (48.°) e sobre a cessão do produto do crédito (49.°). No primeiro caso, é necessário que o banco emitente exare, de modo expresso, que o crédito é transferível. No segundo, temos uma comum cessão de crédito, sempre possível.
7. Regras e usos uniformes (RUU) (revisão de 2007)
I. A intensificação das cautelas bancárias e um certo incremento da litigiosidade contra os banqueiros levaram a uma taxa elevada de rejeição dos documentos, paralisando o crédito documentário: da ordem dos 70%, em primeira apresentação. Impunha se uma revisão dos RUU, a que a CCI lançou mão. Assim surgiu a versão de 2007, mais precisa.
II. Damos nota do seu teor geral. Repare se que foram suprimidas as ordenações em pontos, capítulos ou similares, no seu conteúdo. Temos:
artigo 1.° Aplicação dos RUU;
artigo 2.° Definições;
artigo 3.° Interpretações;
artigo 4.° Créditos e contratos;
artigo 5.° Documentos e mercadorias, serviços e prestações;
artigo 6.° Disponibilidade, data de caducidade e local de apresentação;
artigo 7.° Vinculação do banco emissor;
artigo 8.° Vinculação do banco confirmador;
artigo 9.° Notificação de créditos e de modificações;
artigo 10.° Alterações;
artigo 11.° Créditos e alterações teletransmitidos e pré anunciados;
artigo 12.° Designação [do banco nomeado];
artigo 13.° Acordos de reembolso interbancários;
artigo 14.° Regras quanto ao exame de documentos;
artigo 15.° Conformidade da apresentação;
artigo 16.° Documentos discrepantes, notificação e auto;
artigo 17.° Documentos originais e cópias;
artigo 18.° Factura comercial;
artigo 19.° Documentos de transporte multimodal;
artigo 20.° Guia de transporte;
artigo 21.° Conhecimento marítimo não negociável;
artigo 22.° Guia de transporte “charter party”;
artigo 23.° Guia de transporte por via aérea;
artigo 24.° Guia de transporte por terra, caminho de ferro ou via interior navegável;
artigo 25.° Recibo de transporte por correio expresso e recibos postais;
artigo 26.° “No convés”, “embarque e contagem pelo expedidor” e encargos adicionais ao frete;
artigo 27.° Guias de transporte limpas;
artigo 28.° Documento de seguro e cobertura;
artigo 29.° Prorrogação e último dia para a apresentação;
artigo 30.° Tolerâncias relativas ao montante de crédito, à quantidade e aos preços unitários;
artigo 31.° Utilizações e expedições parciais;
artigo 32.° Utilizações e expedições fraccionadas;
artigo 33.° Horário de apresentação;
artigo 34.° Reservas quanto à efectivação de documentos;
artigo 35.° Reservas quanto à expedição e à transmissão;
artigo 36.° Força maior;
artigo 37.° Reservas quanto às instruções dadas a uma parte;
artigo 38.° Créditos transferíveis;
artigo 39.° Cessão do produto do crédito.
III. Como especial novidade da revisão de 2007 temos a introdução das definições (2.°) e das interpretações (3.°). Com isso atinge se um duplo objectivo:
— um maior afinamento conceitual: tanto mais necessário quanto é certo que os RUU são aplicados por diversas ciências jurídicas nacionais;
— uma maior capacidade para intervir a título supletivo, isto é: para regular a matéria, no silêncio das partes.
A regulação supletiva assegurada pelos RUU tem duas dimensões: permite, às partes, uma remissão fácil para um corpo experiente de regras e assegura, aos intervenientes, as soluções mais equilibradas.
IV Os RUU/2007 têm uma ordenação funcional. Não se preocupam, de modo fundamental, com a Ciência do Direito: antes visam seguir o fenómeno do crédito documentário no seu desenvolvimento prático. Por isso, podemos agrupar os seus preceitos da seguinte forma:
— âmbito e noções;
— posição e papel dos bancos;
— execução pelos bancos;
— situações especiais de transporte e de seguros;
— aspectos regulamentares na concretização;
— transmissibilidade.
Toda esta dinâmica tem um papel no plano da interpretação.
8. Positividade jurídica
I. O recurso aos RUU, aquando da conclusão de operações de crédito documentário, é habitual. Perante isso, pergunta se qual seja a sua natureza jurídica ou, se se preferir: qual o fundamento da sua positividade. Frente a frente, três orientações:
— a do Direito contratual;
— a da normatividade sui generis;
— a do Direito consuetudinário.
Os RUU são apontados como Direito contratual, particularmente em França(9). Eles seriam aplicáveis por força do artigo 1134.° do Code Civil(10).
Esta orientação fez todo o sentido. Na prática, porém, veio a entender se que as RUU eram aplicáveis mesmo na ausência de explícitas convenções das partes que, para eles, remetessem.
A revisão de 2007 retomando versões anteriores, acaba por ser ambígua: o seu artigo 1.° começa por dispor que os RUU se aplicam a todo o crédito documentário “quando o texto do crédito indique expressamente que ele está submetido a tais regras”. Mas acrescenta:
Eles vinculam as partes em tudo o que não seja expressamente modificado ou excluído pelo crédito.
Poder se ia, por aqui, admitir uma presunção de tácito acolhimento dos RUU.
II. O facto da vigência dos RUU permite apresentá los como lex mercatoria, como ordenamento sui generis ou como expressão de um ordenamento fáctico(11). Não vemos, porém, como apurar, por esta via, um fundamento de positividade. Vamos mesmo mais longe: os RUU são demasiado claros e precisos para se perderem com semelhantes e imprecisas reconduções.
III. A opinio necessitatis permitiria reconduzir os RUU a Direito consuetudinário. É certo que estes têm sido regularmente revistos por instâncias centrais: a própria CCI. Todavia, a CCI não age como entidade reformadora, antes se limitando a formalizar o que resulta da prática corrente.
A opção pelo Direito consuetudinário ou por “usos do comércio”, nos países que, com a Alemanha, os reconheçam(12), resolverá o problema(13). Entre nós, todavia, falta nos quer uma remissão legal, quer uma tradição consistente de remissão para Direito consuetudinário.
IV. Os bancos portugueses, na sua prática relativa ao crédito documentário, remetem invariavelmente para os RUU. Estes são, pois, acolhidos aquando da contratação. Isso faz delas, tecnicamente, cláusulas contratuais gerais. Trata se da posição que assumimos, na sequência, de resto, de doutrina atenta(14).
III. O CONTRATO DE EMISSÃO
9. Fontes: o contrato de emissão
I. O crédito documentário rege se, hoje em dia e no essencial, pelas Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários, revisão de 2007, adoptados pela Câmara de Comércio Internacional. Os RUU são hoje complementados por um suplemento relativo à Apresentação Electrónica (os RUUe). Os RUU operam como cláusulas contratuais gerais, para as quais remetem os concretos contratos de crédito documentário.
Nos termos gerais, as cláusulas específicas aprovadas pelas partes prevalecem sobre os RUU (artigo 1.°, in fine, dos RUU e artigo 7.° da LCCG).
II. O crédito documentário rege se por um contrato concluído entre o cliente do banqueiro (ordenante ou mandante) e o banqueiro (o emitente ou emissor). Poderemos falar, a tal propósito, em contrato de emissão de crédito documentário ou contrato de emissão. Este contrato estabelece um direito a favor do beneficiário. Tecnicamente, será um contrato a favor de terceiro (443.° e seguintes do Código Civil), embora algumas das regras legais relativas a esse instituto não tenham, aqui, aplicação.
III. O contrato de emissão não está sujeito a qualquer forma. Em regra, porém, trata se de um instrumento escrito. Na hipótese frequente de crédito documentário com incidência internacional, o contrato ocorre em língua inglesa.
IV. O contrato de emissão contém uma dupla promessa: em relação ao mandante e em relação ao beneficiário. Com efeito, perante um e perante o outro, o banqueiro assume a obrigação de executar o pagamento ou a negociação previstos no contrato. Além disso, ele prevê diversas comissões a favor do banqueiro: este, obviamente, desenvolve um serviço profissional pelo qual não pode deixar de ser remunerado. Distinguem se as seguintes comissões(15):
— uma comissão de abertura de crédito, exigível antes da notificação da carta de crédito ao beneficiário;
— uma comissão de confirmação, se o crédito for irrevogável;
— uma comissão de pagamento, no momento da execução do crédito;
— uma comissão de transferência, caso a tanto haja lugar.
Tendo o banqueiro antecipado os fundos haverá, ainda, lugar ao pagamento de juros.
V. O contrato de emissão pode ainda prever a constituição de garantias a favor do banqueiro emitente. A solução mais simples será a da prévia realização de um depósito em garantia. Mas quaisquer outras soluções poderão ser adoptadas, por consenso entre as partes.
VI. Resta ainda acrescentar que o contrato de emissão de crédito documentário se inscreve, em regra, numa relação bancária complexa, constituída entre o banqueiro e o seu cliente (o mandante). Haverá que lidar com as inerentes regras(16), operacionais no plano das vinculações entre ambos.
10. O negócio base; a abstracção
I. Subjacente ao contrato de emissão de crédito documentário está, em regra, um contrato entre o ordenante e o beneficiário. Trata se do denominado negócio base. Tal negócio é, muitas vezes, uma compra e venda: o crédito documentário será, nessa eventualidade, uma forma de pagamento do preço. Mas outras hipóteses são configuráveis, com relevo para o puro e simples pagamento de dívidas anteriores, implícita ou explicitamente reconhecidas.
II. O crédito documentário é totalmente independente do negócio base. Segundo o artigo 4.°/a dos RUU/2007:
Um crédito é, pela sua natureza, um negócio distinto da venda ou de outro contrato no qual se possa basear. Os bancos não ficam, de modo algum, afectados ou vinculados por tal contrato, mesmo quando qualquer referência ou equivalência a ele sejam incluídas no crédito. Consequentemente, a vinculação de um banco de pagar, de negociar ou de cumprir qualquer outra obrigação referente ao crédito não fica sujeita a acções ou a defesa do ordenante resultantes do seu relacionamento com o banco emitente ou com o beneficiário.
III. Esta autonomia poderia ser tomada como uma manifestação de abstracção do crédito documentário: este operaria independentemente da relação que o tivesse originado.
Podemos referir a “abstracção” para documentar a independência do crédito em relação ao tal negócio de base. Mas daí não resulta que o próprio crédito seja uma obrigação abstracta, isto é: subsistente independentemente da sua fonte. Tal obrigação repousa na convenção concluída entre o mandante e o banqueiro emitente, convenção essa que, muito claramente, lhe fixa o conteúdo e os limites.
11. A interpretação
I. O contrato de emissão de crédito documentário dever se ia interpretar segundo as regras gerais dos artigos 236.° e seguintes do Código Civil(17). Teríamos, nessa eventualidade, de validar o sentido que, às declarações em presença, emprestaria o declara-tário normal, situado na posição de declaratário normal, o tudo temperado por uma imputação razoável e pela vontade real dos intervenientes, quando conhecida e aceite. Havendo dúvidas: prevaleceria a solução mais equilibrada. Todavia, o contrato de emissão de crédito bancário tem alguns traços que o levam a descolar totalmente dessa orientação. Assim:
— rege-se por regras e usos uniformes, de dimensão internacional;
— insere se numa lógica bancária;
— produz efeitos perante terceiros.
Vamos ponderar em separado estes três aspectos.
II. Quanto à base internacional dos RUU: a doutrina tem sublinhado a inexistência de regras internacionais de interpretação. Os RUU deveriam ser interpretados de acordo com as bitolas internas de interpretação do Estado onde o problema se pusesse(18). Assim é. Não vemos nenhuma base para apelar à interpretação prevista para as fontes europeias(19). Ficam nos, porém, as regras de interpretação do lex fori. Justamente: o mérito dos RUU está em atingir um grau de precisão que os torne relativamente imunes às particularidades interpretativas locais.
Sucede ainda que os RUU têm a natureza de cláusulas contratuais gerais. O artigo 10.° da LCCG remete para a interpretação comum dos negócios: uma remissão que, aqui e pelas razões abaixo indicadas, temos como inaplicável. Já o princípio do artigo 11.°, relativo às cláusulas ambíguas (in dubio contra stipulatorum), tem aqui plena aplicação(20).
III. O crédito documentário é um negócio bancário. Na banca aplica se a regra da interpretação segundo o primeiro entendimento(21). As exigências de normalização e a prática negocial assente no comércio de massas impede veleidades de interpretações subjectivas e impossibilita buscas de particularismos casuísticos. Fica nos, assim, uma interpretação essencialmente objectiva, assente no primeiro sentido que resulte do instrumento em presença.
IV. O crédito documentário, essencialmente combinado entre o ordenante e o banco emissor, vai produzir efeitos perante terceiros. E, designadamente:
— perante o beneficiário;
— perante o banqueiro intermediário, especialmente quando confirmante.
Este tipo de negócio não pode seguir as regras comuns relativas à interpretação dos negócios jurídicos: um fenómeno bem conhecido quanto ao contrato de sociedade(22). Também por aqui se impõe uma interpretação de tipo objectivo, mais próxima da da lei. E tudo isto se aplica, mutatis mutandis, à integração de eventuais lacunas.
V. Em síntese: os contratos de emissão de crédito documentário devem ser interpretados em conjunto com os RUU para que remetam. É risco do banqueiro a clareza de tais regras, pelo que, na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao mandante (11.° da LCCG). Para além disso, tais contratos obtêm uma interpretação e uma integração objectivas: semelhantes às que operam perante a lei.
IV. O FUNCIONAMENTO
12. A formação; a carta de crédito
I. Na formação do contrato de emissão, há que observar as regras gerais atinentes à contratação bancária. Em especial, devemos ter em conta o sensível dever de aconselhamento que caiba ao banqueiro(23). Um crédito documentário passa, muitas vezes, pela indicação de um banqueiro estrangeiro que, no terreno, irá executar o crédito aberto. A indicação, pela natureza das coisas, será dada pelo banco emitente. Além disso, colocar se ão múltiplos esclarecimentos atinentes à execução do que tenha sido assumido.
II. Do contrato de emissão resulta a carta de crédito: um documento do qual constam os direitos do beneficiário e todos os demais condicionalismos que rodeiem o crédito documentário em jogo. A carta de crédito assume uma estrutura epistolar: todavia, ela é um contrato e não um negócio unilateral.
A carta de crédito assumirá feições diferentes consoante se trate de créditos revogáveis ou irrevogáveis, de créditos sem ou com intermediário e assim por diante. Remetemos para as diversas modalidades de crédito documentário já explicadas.
III. Perante um crédito irrevogável, a mais simples alteração exige o acordo do beneficiário. Em qualquer caso, o crédito tem uma data para ser exercido, sob pena de caducidade. Trata se de matéria inserida nos RUU.
13. A apresentação
I. O crédito funciona perante a apresentação dos documentos previstos na respectiva carta. Tais documentos irão ser examinados pelo banqueiro: ou pelo banco nomeado ou, ainda, pelo banco confirmante. Haverá depois que seguir diversas regras exaradas no artigo 14.° dos RUU.
II. Eis algumas das regras em causa:
— o banqueiro dispõe de um máximo de cinco dias úteis para examinar os documentos: um prazo não afectado pelo expirar do prazo de caducidade;
— deve haver uma confluência geral entre as descrições dos bens e serviços exarados na carta de crédito e nos documentos;
— documentos não requeridos pela carta não devem ser tidos em conta, sendo restituídos ao apresentante.
III. Havendo conformidade dos documentos apresentados, o banco deve honrar a carta (15.°). Sendo os documentos discrepantes, o banqueiro pode recusar, elaborando uma breve nota justificativa para o apresentante — 16.° C) — com determinado conteúdo.
IV. O banqueiro não é responsável por situações de força maior (36.°): catástrofes naturais, tumultos, comoções civis, insurreições, guerras, actos de terrorismo, greves, despedimentos colectivos ou quaisquer outros factos fora do seu controlo.
14. Cessão de créditos
I. O banqueiro não fica obrigado a transferir o crédito documentário: excepto se expressamente se tiver convencionado o contrário—38.°/a). Compreende-se: estamos perante relações complexas, determinadas intuitu personae.
II. Já no tocante ao crédito stricto sensu: este pode ser transferido nos termos gerais e de acordo com o Direito aplicável.
V. A NATUREZA
15. Construção geral
I. A determinação da natureza de crédito documentário levanta dificuldades, especialmente no Direito francês(24) e no Direito alemão(25). No primeiro, o problema põe-se pela inexistência da figura do contrato a favor de terceiro; no segundo, pela presença, no BGB, do contrato de delegação (Anweisung), previsto no § 783 do BGB(26): contrato pelo qual uma pessoa habilita outra, por documento, a prestar a outrem dinheiro, títulos de crédito ou outras coisas fungíveis, e cujas regras aqui poderiam ter aplicação.
II. De facto, o crédito documentário deve ser construído em termos triangulares: temos uma relação de valuta, também dita negócio-base, entre o mandante e o beneficiário e, depois, uma relação de atribuição entre o mandante, o banqueiro e o beneficiário. Pela nossa parte, a construção geral do crédito documentário é, claramente, um contrato a favor de terceiro. Esse contrato assenta num outro — o negócio-base — mas surge, como se viu, totalmente independente deste.
16. Natureza
I. A natureza do crédito documentário tem dado azo a inúmeras teorias. Entre nós, FERNANDO OLAVO, apresentou e criticou as teses seguintes(27):
— a teoria da fiança;
— a teoria da cessão de créditos;
— a teoria da assunção de dívidas;
— a teoria da assignação passiva;
— a teoria da delegação;
— a teoria do contrato a favor de terceiro;
— a teoria da promessa de aceite por acto separado;
— a teoria do contrato de emissão;
— a teoria da abertura de crédito;
— a teoria do mandato.
O próprio FERNANDO OLAVO optava pela teoria do mandato sem representação, tese essa que já perfilhámos(28). Hoje propendemos para uma construção diversa.
II. É claro que o crédito documentário tem elementos próprios e uma lógica intrínseca que lhe dão autonomia(29). Todavia, afigura-se possível uma recondução clarificadora e outros elementos.
O primeiro ponto a reter é o de que, no crédito documentário, o banqueiro assume uma prestação de serviço. Com efeito, ele adopta duas importantes obrigações:
— a de verificar documentos;
— a de pagar certa obrigação ou de, por outra via, a satisfazer.
Trata-se de um serviço prestado ao cliente e que, eventualmente, pode ser acompanhado por deveres acessórios. Esta prestação de serviço, que não se esgota em actuações jurídicas, desagua, em última análise, no regime do mandato, por via do artigo 1156.°. Mas não se trata de um mandato simples nem, muito menos, há representação.
III. Mau grado a designação, o crédito documentário não é, à partida, um negócio de crédito. Poderá implicar uma verdadeira concessão de crédito: mas isso já postulará um diferente negócio com o banqueiro, ao qual não se aplica o regime típico do crédito documentário.
IV. Teremos, pois, um contrato a favor de terceiro, na estrutura; e uma específica prestação de serviço bancário, na substância.
Notas:
(1) Desde logo nos ICC Uniform Customs and Practice for Documentary Credits/ /2007 Revision (2007), 66 pp..
(2) GIACOMO MOLLE/LUIGI DESIDERIO, Manuale di diritto bancario e dell’ intermediazione finanziaria, 7.a ed. (2005), 211 ss..
(3) MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito bancário, 3.a ed. (2006), 549.
(4) CLAUS WILHELM CANARIS, Bankvertragsrecht, I, 3.a ed. (1988), Nr. 916 (636 637).
(5) Vide THIERRY BONNEAU, Droit bancaire, 5.a ed. (2003), 457 e LUCIANO PONTIROLI, Credito documentario, DDP / Scommerciale IV (1989), 207 220 (210/II).
(6) CANARIS, Bankvertragsrecht cit., Nr. 916 918 (636 637).
(7) FERNANDO OLAVO, Abertura de crédito documentário (1952), 9 ss..
(8) Surgiam regras legisladas nos ordenamentos dos antigos Estados socialistas do Leste europeu.
(9) BONNEAU, Droit bancaire, 5.a ed. cit., 448.
(10) Cujo teor recordamos:
As convenções legalmente formadas valem como lei perante aqueles que as tenham feito.
Elas só podem ser revogadas por mútuo consenso ou pelas causas que a lei autorize.
Elas devem ser executadas de boa fé.
(11) Indicações: CANARIS, Bankvertragsrecht cit., Nr. 925 (639 640).
(12) Recordamos o § 346 do Código Comercial alemão:
Entre comerciantes, devem se ter em consideração, com referência ao significado e aos efeitos de acções e de omissões, os usos e os costumes que operem no tráfego comercial.
Cf. KARSTEN SCHMIDT, no Münchener Kommentar zum HGB, 5.° vol. (2001), § 346 (39 ss.), KLAUS J. HOPT, em BAUMBACH/HOPT, HGB, 31.a ed. (2003), § 346 (1072 ss.) e WERNER RUSS, no Heidelberger Kommentar zum HGB, 7.a ed. (2007), § 346 (871 ss.).
(13) CANARIS, Bankvertragsrecht cit., Nr. 926 (640), que, todavia, acaba por rejeitar esta via, por falta de opinio necessitatis.
(14) HERBERT SCHÖNKE, Die Rechtsnatur der Einheitlichen Rechtslinien und Gebräuche für Dokumentenakkreditive, NJW 1968, 726 731 (728/II ss., 731/II) e CANARIS, Bankvertragsrecht cit., Nr. 927 (641).
(15) BONNEAU, Droit bancaire, 5.a ed. cit., 451.
(16) MENEZES CORDEIRO, Direito bancário, 3.a ed. cit., 163 ss..
(17) Quanto a tais regras: MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil I/1, 3.a ed. (2005), 741 ss..
(18) CANARIS, Bankvertragsrecht cit., Nr. 930 (643 644), com indicações.
(19) Quanto a tais “regras”: MENEZES CORDEIRO, Direito europeu das sociedades (2005), 75 ss..
(20) Na mesma linha perante a equivalente norma alemã então em vigor: CANARIS, Bankvertragsrecht cit., Nr. 932 (644 645).
(21) MENEZES CORDEIRO, Direito bancário, 3.a ed. cit., 159 160.
(22) Com indicações: MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das sociedades, I — Das sociedades em geral, 2.a ed. (2007), 447 ss..
(23) Quanto ao funcionamento do crédito documentário cf., ainda, ROBERT FREITAG, em DERLEDER/KNOPS/BAMBERGER, Handbuch zum deutschen und europäischen Bankrecht (2004), § 54, Nr. 15 ss. (1384 ss.) e CHRISTIAN GAVALDA/JEAN STOUFLET, Droit bancaire, 6.a ed. (2005), 407 ss..
(24) BONNEAU, Droit bancaire, 5.a ed. cit., 452 ss..
(25) CANARIS, Bankvertragsrecht, 3.a ed. cit., Nr. 920 ss. (638-639).
(26) PALANDT/SPRAU, BGB, 66.a ed. (2007), 1151 ss.. Em Itália opta-se teoria da delegação passiva — LUCIANO PONTIROLI, Credito documentário cit., 219/I — mercê de particularismos legislativos.
(27) FERNANDO OLAVO, Abertura de crédito documentário cit., 100 ss..
(28) MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito bancário, 3.a ed. cit., 550.
(29) MOLLE/DESIDERIO, Manuale di diritto bancario, 7.a ed. cit., 216.