Diogo Leite de Campos - As três fases de princípios fundamentantes do direito tributário


AS TRÊS FASES DE PRINCÍPIOS FUNDAMENTANTES
DO DIREITO TRIBUTÁRIO

Pelo Prof. Doutor Diogo Leite de Campos(*)

SUMÁRIO:
I–IMPOSTO E FUNDAMENTAÇÃO. II – NOÇÃO DE IMPOSTO. 1 – Conceito de imposto e taxa. 2 – A jurisprudência. O Tribunal Constitucional –caracterização da taxa. 3 – Montante da taxa. III – A NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO. 4 – O Direito Tributário e a sua fundamentação. 5 – Vontade geral, lei e Direito. 6 – A positivação dos valores de justiça. IV–AS TRÊS FASES DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTANTES DO DIREITO TRIBUTÁRIO. 7–Introdução. A) PRIMEIRA FASE: A AUTO TRIBUTAÇÃO. 8 – A auto tributação e o positivismo legalista. 9 – Cont. – A Constituição da República Portuguesa. 10 – Cont. – A insuficiência do legalismo/auto-tributação. B) SEGUNDA FASE: A LEGALIDADE NA APLICAÇÃO DA LEI. 11 – A descoberta da justiça pela Administração e pelos Tribunais. 12 – Cont. – A Constituição da República Portuguesa. 13 – Cont. – A crise. C) JUSTIÇA MATERIAL ATRAVÉS DA PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃO E RESPEITO PELOS DIREITOS HUMANOS. 14 – A participação dos cidadãos/contratualização dos impostos. 15 – Os aprofundamentos da democracia participada e da justiça na Lei Geral Tributária. 16 – O novo conteúdo da auto tributação: participação dos cidadãos através da contratualização dos impostos. 17 – Direitos da personalidade e o direito de não pagar impostos (seguido do dever de pagar impostos). 18 – Isenção do necessário à manutenção de uma existência em condições económicas dignas. 19–A proibição do confisco. 20 – Proibição do estrangulamento tributário. 21 – O limite do sacrifício. 22 – O princípio da liberdade (autonomia privada) –(normas anti-abuso e preços de transferência). 23 – A certeza jurídica – estabilidade, cognoscibilidade e previsibilidade do direito. 24 – Os direitos da pessoa a nível do processo e do procedimento. 25 – Os direitos da pessoa (om os outros). 26 – O direito de resistência. O direito à arbitragem.

I — IMPOSTO E FUNDAMENTAÇÃO

Tem-se entendido, em Portugal, como na generalidade dos ordenamentos jurídicos ibero-americanos, que a principal garantia dos contribuintes residia no princípio da legalidade dos impostos, e nos seus corolários fundamentais, como a tipicidade, a igualdade e a não discriminação.

Nas considerações que se seguem vamos, primeiro, definir imposto de acordo com a doutrina e jurisprudência portuguesas, distinguindo-o da figura próxima de taxa.

Depois, dizer como tal sentido garantístico da forma lei, presente numa primeira fase, tem vindo a encontrar novos complementos através da exigência, sobretudo, de um conteúdo de justiça material.

Distinguiremos, pois, três fases dos princípios fundamentantes dos impostos.
Numa primeira fase, encontramos o princípio da legalidade. Na segunda fase, o devido procedimento, o controlo judicial e a referência à capacidade contributiva.

Numa terceira fase, ainda no início, os direitos da pessoa surgem como limite aos impostos; e a participação dos contribuintes na criação e aplicação dos impostos é vista com uma exigência do Estado-dos-cidadãos.

II — NOÇÃO DE IMPOSTO

1 — Conceito de imposto e taxa

Os impostos — a exemplo das taxas — são prestações patrimoniais, objecto de uma relação obrigacional, legais, na titularidade de entidades que exercem funções públicas e para satisfazer os fins próprios destas.

As taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares (art. 4.°, 2 da Lei geral tributária). Têm como pressuposto uma actividade administrativa de prestação de serviços, a utilização de domínio público ou a remoção de um limite jurídico a actividades particulares.

A nível subjectivo afirma-se que a taxa pressupõe sempre uma actividade do particular a desencadear a actividade administrativa.

Nos impostos, a actividade do particular é considerada como simples elemento de facto, não relevando autonomamente.

Mantivemo-nos até agora numa noção de carácter essencialmente jurídico — formal: há, de um lado, uma “prestação” do Estado, e do outro lado, uma prestação do contribuinte.

Pergunta-se qual o montante da contra prestação do contribuinte, quais os critérios do seu cálculo.
Sob ponto de vista financeiro a distinção entre taxas e impostos está no carácter bilateral das primeiras e no carácter unilateral dos impostos. A relação de taxa compreende obrigações para ambos os sujeitos.

Estas obrigações estão unidas por um vínculo de reciprocidade ou de interdependência que leva a caracterizar as taxas pelo seu carácter sinalagmático. O montante da taxa deve ter uma estreita relação de proximidade com o serviço prestado.

“Sinalagma” ou “correspectividade”, conceitos utilizados pela doutrina e pela jurisprudência, são conceitos de Direito Civil, com significado que deve ser aí procurado.

Os negócios onerosos ou a título oneroso pressupõem atribuições de ambas as partes, fixadas, segundo a perspectiva destas, em nexo ou relação de correspectividade entre as referidas atribuições patrimoniais (normalmente traduzidas em prestações). Se “cada parte obtém da outra uma vantagem, está a pagá-la com um sacrifício que é visto pelos sujeitos do negócio como correspondente”.(1)

É nesta base que temos de assentar a noção de taxa e a definição do seu montante.
Por outro lado, o serviço prestado pelo Estado e o limite jurídico criado à actividade dos particulares não podem ser fictícios ou destinados só a obter receitas. Caso em que se estará perante verdadeiros impostos, dada a perda de relação entre a receita e a vantagem do particular.

O requisito económico-financeiro é objecto de controvérsia em Portugal: deverá haver uma verdadeira correspectividade económico-financeira entre a taxa e o custo do serviço? Ou bastará uma correspectividade jurídica, em termos de a taxa ser consequência da prestação de um serviço (sem “demasiada” discussão em termos financeiros)?

A correspectividade financeira tem vindo a ganhar terreno, tanto nos ordenamentos jurídicos legislados diversos estados europeus, como na doutrina. A Lei geral tributária não toma partido no seu art. 4.°, n.° 2. Mas exige sempre a prestação concreta do serviço público.

2 — A jurisprudência. O Tribunal Constitucional — caracterização da taxa

A orientação jurisprudencial que parece, de momento, dominante, tanto do Tribunal Constitucional como do Supremo Tribunal Administrativo na esteira daquele, pode sintetizar-se como se segue.

Comecemos pelo Tribunal Constitucional (AC. TC. n.° 115/ 2002/ T. Const. — Proc. n.° 567/ 00).
Sob o ponto de vista financeiro, a distinção entre taxas e impostos estará no carácter bilateral e sinalagmático das primeiras e no carácter unilateral dos impostos.

As taxas têm como correspectivo uma actividade do Estado ou de um ente público dirigido ao respectivo obrigado, determinando para este uma qualquer vantagem ou utilidade (Ac. cit.).

A relação estabelecida compreende obrigações para ambas as partes, obrigações unidas por um vínculo de reciprocidade ou de interdependência que leva a caracterizar as taxas pelo seu carácter sinalagmático (Ac. cit.).

A contrapartida consiste na utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização de um bem público ou semipúblico e, finalmente, na remoção de um limite jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte de particulares.

Contudo, o tributo só pode configurar-se como “taxa” se com a remoção se visa possibilitar a utilização de um bem público (Ac. n.° 115/ 2002/ cit.).

O serviço prestado pelo Estado e a remoção de um limite jurídico criado à actividade dos particulares não podem ser fictícios, ou meros pressupostos para obter receitas. Se assim for, estar-se-á perante verdadeiros impostos, dada a perda de relação económica entre a receita e a vantagem do particular. “A exigência de uma relação sinalagmático como pressuposto para que se possa falar de taxa, reveste-se de carácter substancial ou material, não meramente formal” (Ac. cit.).

Acrescentando, porém, (algo contraditoriamente) que “a qualificação como taxa de um dado tributo não depende da verificação rigorosa entre o valor do serviço e o montante da taxa a pagar e o valor do serviço prestado, para que ao tributo falte o carácter sinalagmático”. Levando-se em conta a utilidade do serviço (Ac. 1140/ /96, cit; tb. Acs 410/ 2000, 205/ 87, in DR I Série, 3-7-87; n.° 640/ /95, DR, II Série, 20-1-1966). Se o valor da taxa for “completamente alheio ao custo do serviço prestado” a “taxa” poderá ser um verdadeiro imposto (Ac. n.° 640/95). A aferição do montante da taxa não decorre tanto do seu custo, como da utilidade do serviço (Ac. 115/ 2002, cit.).

Nestes termos, o imposto será o meio de financiamento dos serviços públicos indivisíveis, dos que proporcionam vantagens só fruíveis pela colectividade enquanto tal; independentemente de saber se certo cidadão, enquanto membro dessa colectividade, recebe vantagens ou não.

A taxa é o meio de financiamento dos serviços divisíveis que facultam vantagens ou satisfações individualizadas a quem os utiliza.

É necessário determinar, para se poder qualificar uma certa relação como de taxa, há um determinado sujeito que recebe vantagens concretas, mensuráveis, e que lhe são dirigidas. Não se tratando de um mero reflexo da satisfação de necessidades gerais.

3 — Montante da taxa

O Tribunal Constitucional tem sido “cauteloso” na apreciação dos excessos indicadores de uma falta de proporcionalidade enquanto desvio à correspectividade, tendo julgado que, para a noção de taxa, pode ser menos relevante o custo e, por exemplo, mais relevante a utilização de um serviço. O que significa que o carácter sinalagmático da taxa não exige a correspondência do seu montante ao custo do bem ou serviço prestado. Mantendo-se a bilateralidade que a caracteriza mesmo na parte excedente ao custo, pelo que não é, por si só, de qualificar a taxa como imposto ou de lhe conceder o tratamento constitucional de imposto, se o respectivo montante exceder o custo dos bens e serviços prestados ao utente.

Contudo, se o valor da taxa for manifestamente desproporcionado ou “completamente alheio ao custo de serviço prestado”, então pode equacionar-se se a taxa não terá de ser encarada, de um ponto de vista jurídico — constitucional, pelo menos na parte em que for manifestamente desproporcional, como verdadeiro imposto, porque desse modo e nessa medida se afectaria a correspectividade; a desproporcionalidade nessa medida lesaria “o critério legitimante” da taxa.

O Supremo Tribunal Administrativo entende que o Tribunal Constitucional não censurou o critério de determinação da quantia de certa taxa em que o legislador teve em conta, não só valor de custo do serviço em causa mas, determinantemente, o valor resultante da utilidade obtida através da prestação do serviço. Em si considerada, a utilidade, em princípio, é tanto maior quanto for o valor do acto que lhe dá origem.

Entendendo-se que também as taxas podem assumir funções extra financeiras legitimadoras de distorções ao princípio da proporcionalidade. Desde que tais distorções se mantenham dentro dos limites constitucionalmente admissíveis, isto é, não transformem uma taxa numa receita sancionatória. As distorções ao princípio da proporcionalidade sempre terão que se conter dentro das exigências próprias do princípio legitimador de tais distorções.

III — A NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO

4 — O Direito Tributário e a sua fundamentação

Porém, encontramos sobretudo em Direito tributário os instrumentos conceituais que servem para forçar a obediência ao Estado e o pagamento dos impostos (aquilo que Maquiavel chamava genericamente “arcana dominationis”). Mais estes do que a justificação de o Direito ser Direito, ou seja, a sua justiça imanente e fundamentante. (2)

Esquecendo-se também deliberadamente, o direito de resistência de todos os que se sintam agredidos nos seus direitos ou interesses perante uma conduta injusta imposta pela força.

Ora bem: a relação dos cidadãos com o Estado é uma relação de fidelidade, de lealismo, e a fidelidade só obriga a que se cumpram as ordens que podem ser exigidas moral e juridicamente; ordens fundamentadas juridicamente e também na ética. Existe um Direito que está acima do Estado e da lei, devendo afastar-se a ideia de um Estado que não só garante a ordem do Direito mas também que o cria, livremente, podendo servir-se da força sempre que necessário para o aplicar. Temo-nos mantido fiéis a uma ideia de soberania (assente na autoridade desvinculada da justiça) que pode criar ou derrogar as leis vigentes, decidindo, em caso de conflito, e a seu belo prazer, qual é a ordem justa e quando está justificada a intervenção do poder, se necessário pela força.

Um Estado que ele, e só ele, conhece o que é justo.
Foi para combater a ideia de Estado que acabamos de descrever que se criou a ideia-força dos direitos da pessoa, invioláveis pelo Estado na medida em que reconhecem no ser humano um indivíduo, com realidade própria independente de toda a organização e, por consequência, também do Estado. Ser humano que, sendo elemento irredutível a todos os outros, pessoa em si mesma, não pode ser apreendido racionalmente, mas só aceite tal como é.

Em termos de a biologia, a antropologia e a ética, componentes do ser humano, produzirem por si mesmas Direito, objectivando-se em Direito.

Os direitos do indivíduo, nesta medida, não são organizáveis pelo Estado, estão antes dele e fora dele.

5 — Vontade geral, lei e Direito

Houve, porém, a consciência de que a existência de direitos da pessoa, em termos de uma espécie de Direito natural não definível racionalmente e portanto inorganizado e inorganizável, tinha em si as sementes do individualismo anómico e, portanto, da guerra civil. Foi por isso que surgiram as teorias contratualistas do Estado, produtoras da lei enquanto manifestação da vontade de todos e de cada um. A pessoa deixava de estar sujeita à soberania do rei, ou à luta constante do estado de anarquia, mas estaria sujeita às leis, forças espirituais fundadas na justiça e na vontade comum. Leis que brotariam da natureza moral do homem. Só na comunidade e obedecendo a leis, o ser humano se desenvolveria e se realizaria plenamente. Leis bem feitas, assentes na justiça, expressam a essência das condutas humanas, não permitindo resistência. Assim, seja qual for a lei que a nação queira, desde que a queira genericamente, esta lei seria justa e geral e portanto racional e conveniente a todos (Rousseau).

A República sabiamente governada exprime e possui só a vontade geral. Ao Deus da Idade Média substitui-se o monismo radical, subsequente a Hegel, e pelo qual Deus não existe ou, em todo o caso, se confunde com a humanidade que vai tomando consciência de si mesma ao longo do processo histórico.

Mas este positivismo legalista podia levar a consequências que ultrapassavam as suas premissas. Para Dostoievski, Nietzsche e Mann, sem Deus — ou seja, sem justiça fundamentante — valerá tudo.

Tentou-se ultrapassar este vazio.
Perante o conflito de conteúdos das ideias de lei, muitas vezes do conteúdo da ideia de moral, surgiu a reacção positivista: o direito deve ser puro e consequentemente independentizar-se da religião, da política, da sociologia, da ética, etc. A jurisprudência só será ciência quando o jurista admita só aqueles valores que são dados positivamente, pelo poder legitimamente constituído. Nesta ordem de ideias, também o Estado deve ser puro, submetendo-se totalmente ao Direito (puro) até ao ponto de confundir com ele. O Estado deixa de ser fonte de Direito para ser um tecido de pontos de referência que se apoiam “num pressuposto e hipotético — normativo” fundamental.

Colocando-se o Estado declaradamente à disposição da maioria governante. Em termos de tudo o realizado validamente ser legal, e legal ser, por hipótese, justo. Contudo, bastou que não se aceitassem as regras do jogo e se reintroduzisse a política no Direito — de onde nunca aliás tinha saído — para que a própria ideia de que lei é Direito parecesse absurda e totalitária. O consentimento de todos é cada vez mais substituído substancialmente pela vontade de uma pessoa ou de um grupo minoritário.

Daqui resultava a substituição do Direito pela força, alegadamente da maioria, mas na realidade uma minoria. Alegadamente sustentado na razão, mas na realidade numa simples vontade. Alegadamente a favor de todos, mas na realidade só a favor de alguns muito poucos.

6 — A positivação dos valores de justiça

Estas experiências negativas têm levado cada vez mais à necessidade de positivar os valores da justiça (ou se quisermos, introduzir a justiça na lei). De começo, afirmam-se direitos contra o Estado, mas dentro do Estado. Ou seja: só reconhecíveis por uma instância do Estado. Esta apropriação da justiça pelo Estado, e da lei como único instrumento da justiça, não representa qualquer progresso. É tudo mudar para tudo ficar na mesma. E a administração da justiça mantém-se no Estado, naqueles órgãos que menos desgaste tinham sofrido no passado, ou seja os juízes. Até ao século XVIII a administração da justiça pertencia ao rei. Durante o século XIX a justiça era a vontade do parlamento, agora será o poder judicial como definidor da justiça através da sua aplicação concreta.

Tendo-se criado na generalidade dos países uma instância judicial superior cujo objectivo seria precisamente controlar a vontade da maioria, a bem da justiça, ou seja, do Direito. Simultaneamente, juízes e doutores buscam um método científico que permita descobrir a verdadeira justiça que só pode decorrer de uma correcta hermenêutica dos textos constitucionais.

Não era isto o que se pretendia com o ultrapassar do positivismo legalista do século XX. Isto não impede o acesso, por via eleitoral, do totalitarismo ao poder.

Não é “tecnificando” os tribunais, a administração e a própria política que se consegue atingir a justiça e o equilíbrio social.

E, assim, povos e juristas têm vindo a pôr-se de acordo em que há um problema da descoberta do conteúdo da justiça em termos de a transformar em Direito, e cuja resolução não passa (só) pela correcta hermenêutica jurídica.

IV — AS TRÊS FASES DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTANTES DO DIREITO TRIBUTÁRIO

7 — Introdução

Tentarei reconstituir o percurso da fundamentação do Direito em matéria de impostos. Esquematizarei três fases em matéria de princípios fundamentantes dos impostos, equivalentes às fases que encontramos quanto à fundamentação do Direito em geral.

Uma primeira fase, política, em que a forma lei, presumidamente expressão da vontade geral e portanto justa, justifica e fundamenta os tributos.

Uma segunda fase em que se tenta descobrir no devido processamento administrativo e no processo judicial uma justificação dos concretos actos tributários ou das concretas decisões, ou seja, da posição jurídica tributária concreta de cada um. Posição que seria justa, por o devido procedimento administrativo ou o devido processo — pressupondo a existência de uma lei justa — conduzirem a um resultado legal e portanto justo. Ou seja: mantemo-nos no positivismo legalista, embora cercado de maiores garantias de certeza. Mas já nesta fase se tenta encontrar-se um fundamento material de justiça para o direito tributário, através sobretudo do princípio da capacidade contributiva.

Uma terceira fase, típica da cada vez maior participação dos cidadãos no governo, em que a democracia deixa de ser meramente formal para pretender ser uma democracia participada: e em que se sabe que a lei só é Direito quando for justa. E que para atingir essa justiça não basta uma sempre indemonstrável vontade geral, mas sim um conteúdo de justiça.

Este conteúdo de justiça tem como pressuposto e como fundamento, primeiro, o respeito e a prossecução dos direitos da personalidade; segundo, a participação dos cidadãos; terceiro, a obediência aos grandes princípios do Estado de Direito social.

Vamos, com base na Constituição Portuguesa, definir e estabelecer os traços fundamentais de cada uma destas três fases. Não nos esquecendo que elas não se vão substituindo, mas coexistindo, cada uma delas progressivamente aprofundada em virtude das novas exigências que lhe são postas pelo princípio democrático e pela dimensão da pessoa em si mesma e em relação com os outros.

Seguiremos o exemplo da divisão dos direitos (liberdades e garantias) humanos, em três gerações. A primeira geração compreende os direitos naturais do ser humano, como direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade que parecem evidentes por si mesmos, exigindo só que o Estado se abstenha de actuar contra eles; a segunda geração, a dos chamados direitos sociais, o direito ao trabalho, à educação, à habitação, etc., que exigem do Estado ou da sociedade um comportamento prestacional. Finalmente, os de terceira geração que são os que pertencem a certos grupos de pessoas, como os direitos da mulher, da criança, dos idosos, e os direitos colectivos humanos de povos, raças ou etnias, os direitos de gerações futuras, dos animais e mesmo os direitos da natureza.

O problema que qualquer uma destas fases/gerações de princípios fundamentantes — que, repito, se vão cumulando e aprofundando em diálogo permanente — visa resolver é o de transformar os impostos em Direito; criar um Direito fiscal assente na justiça e na segurança; fazer do Direito fiscal um Direito como os outros, positivando a justiça.

A) PRIMEIRA FASE

A AUTO-TRIBUTAÇÃO

8 — A auto tributação e o positivismo legalista

A primeira fase dos princípios fundamentantes do Direito tributário integra uma resposta política assente nas ideias do liberalismo constitucionalista enraízado no iluminismo francês do século XVIII. Assenta no princípio da autotributação e reduz-se a este, desenvolvido e aprofundado com os tempos.

O contrato social transferia um conjunto de direitos e de regalias para o Estado. Este manifestava a sua vontade através de órgãos, sobretudo através do Parlamento que era o órgão eleito por excelência, a sede do princípio democrático e representativo. Os representantes do povo presentes no parlamento exprimiam a vontade dos eleitores. Eram os eleitores, na mesma perspectiva, que acabavam por se tributar a si mesmos, definindo os impostos que queriam pagar, como e em que termos os iam pagar. Haveria portanto um Direito fiscal-como-os-outros, por todos os ramos do Direito serem justificados pela vontade popular expressa na forma lei.

Tanto a Administração como os Tribunais supostamente não podiam, nem tinham possibilidade, de interferir com a vontade popular, distorcendo-a. O administrador só tinha que obedecer à lei, em termos de ser um mero autómato da lei. (3) Todo o Direito fiscal estaria nas leis fiscais, em termos de sistema auto-suficiente. Consistindo a tarefa do jurista numa mera exegese, na análise gramatical de um texto. Os tribunais não seriam competentes para regular ou controlar o governo ou a administração, sendo a administração que, em última análise, e a pedido do contribuinte, se julgava a si própria.

Quando havia órgãos (semi judiciais) destinados a dirimir conflitos tributários, eram órgãos da administração pública. Em França o Supremo Tribunal Administrativo ainda hoje chama Conselho de Estado, por ser na sua origem um conselho composto por altos funcionários públicos para controlar a administração. Assim, numa primeira fase só encontramos a garantia política da auto-tributação. Desenvolvida e aprofundada, primeiro através dos princípios da tipicidade dos impostos e da tipicidade fechada; depois, através de regras sobre a aplicação das leis no tempo, no espaço, etc. Proibiu-se a retroactividade das normas tributárias. Mas bastava assegurar a conformidade formal da lei à vontade do povo (auto - tributação) e a aplicação formal da lei conforme a sua letra, sem intermediação da administração ou de outro intérprete (tipicidade fechada dos impostos). Em termos de estreito legalismo positivista.

9 — Cont.—A Constituição da República Portuguesa

A Constituição da República Portuguesa (na última revisão de 1997) consagra o princípio da auto - tributação no artigo 103.°, n.° 2: os impostos são criados por lei que determina a incidência, taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes. Não podendo ninguém ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição e cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei (n.° 3).

Este princípio é desenvolvido através da tipicidade e da tipicidade fechada dos impostos: todos os elementos necessários à caracterização e à aplicação dos impostos devem estar criados pela lei e ser previstos por ela. Consagra-se no n.° 3 um direito de resistência quanto aos impostos inconstitucionais e também quanto aos impostos ilegais em termos de liquidação e de cobrança. Direito que tem sido ignorado pelos autores e pela jurisprudência que continuam a reservar para o Estado, através dos seus órgãos próprios, os tribunais, a competência exclusiva para determinar a inconstitucionalidade e ilegalidade dos impostos.

Na revisão de 1997 incluiu-se no n.° 3 a proibição da retroactividade dos impostos. Esta já vinha sendo defendida pela doutrina e pela jurisprudência.

10 — Cont.—A insuficiência do legalismo / auto-tributação

Pouco a pouco, a concepção descrita de Estado e de lei foi caindo, mesmo nos discursos mais interessados. O Estado não é aquela organização ao serviço do bem público, manifestando a vontade popular, porta-voz dos interesses do povo, nem ele nem os seus órgãos. O parlamento só é porta-voz dos interesses que lá estão sedeados. E mesmo dentro de cada partido há interesses contraditórios. Cada vez menos os cidadãos se sentem representados pelos seus parlamentos. A este desencanto do Estado é contemporânea a necessidade de completar o princípio político com um conteúdo garantístico. A matéria de impostos deixou de ser matéria só política, deixada ao princípio da representação popular, para estar submetida, em grau variável e sempre evolutivo ainda hoje, a dois princípios fundamentantes: controlo da actividade administrativa; segurança procedimental.

Passou a confiar-se aos tribunais e ao devido procedimento administrativo a tarefa de encontrar a justiça que se pressupunha ínsita na lei.

Primeiro, pretendeu-se obter um conteúdo de segurança procedimental. Tradicionalmente, e executando a lei, a administração fiscal praticava um acto de autoridade constituía (impunha) obrigação tributária de cada um. Era o Estado “imperium”, actuando através de actos administrativos, actos que criavam obrigações. Com o crescimento da carga tributária, em Portugal, sobretudo a meio dos anos 70, e com o aprofundamento da democracia, as injustiças a nível de impostos começaram a ser vistas como inaceitáveis. Depois a concepção de Estado também se alterou. Nomeadamente no sentido da sua ultrapassagem como Estado “imperium”, para passar a ser cada vez mais um Estado democrático (dos cidadãos) garantístico em relação aos cidadãos.

B) SEGUNDA FASE

A LEGALIDADE NA APLICAÇÃO DA LEI

11 — A descoberta da justiça pela Administração e pelos Tribunais

Criaram-se tribunais fiscais ou independentes com competência plena para julgar os actos tributários, mesmo a constitucionalidade das leis de impostos. E começou-se a exigir aos juízes que fossem um pouco mais do que simples aplicadores da lei (como, apesar de tudo, ainda continuam a querer ver-se); mas alguém que descobre a justiça dentro da lei. Os juízes, não se querendo assumir como criadores da justiça no Direito, passaram a usar a hermenêutica jurídica e o correcto processo judicial para descobrir no fim da aplicação da lei uma justiça — nunca encontrada.

Por seu lado, a administração tributária passou a estar submetida a um procedimento administrativo cada vez mais organizado e transparente em relação ao contribuinte, para garantia deste. Também aqui se entendia que a administração fiscal encontraria a justiça a nível da aplicação do Direito, através de um devido procedimento administrativo.

Uma das primeiras fases foi a fundamentação expressa dos actos administrativos tributários, como meio de tornar a administração transparente em relação aos contribuintes, deixando de ser a administração oculta e autoritária — pelo menos a nível dos princípios — do século XIX e da primeira metade do século XX.

Mas, na prática — e porque não, também nos princípios — mantinha-se o legalismo positivista, só com maiores exigências quanto à interpretação/aplicação da lei.

12 — Cont.—A Constituição da República Portuguesa

A garantia da tutela jurisdicional efectiva encontra-se hoje prevista no artigo 20.° da Constituição, em termos de a todos ser assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Contudo, e apesar do disposto no artigo 106.°, e o artigo 21.° determinar que todos têm o direito a resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias, continua-se a ignorar este direito de resistência, assegurando-se aos tribunais o monopólio exclusivo da “resistência” legitima em relação às violações de direitos, liberdades e garantias.

A apreciação da inconstitucionalidade pertence em primeira linha aos tribunais comuns que não podem aplicar as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo 204.°). Constituindo tarefa específica, em última instância, do Tribunal constitucional ao qual compete administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional.

O artigo 266.°, para além de fixar o princípio da legalidade da administração, determina que os órgãos e agentes administrativos devem actuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé. Ou seja, promove-se uma administração pública ao serviço do interesse geral e da lei, e não titular de interesses próprios. Princípio que é desenvolvido no artigo 269.° ao determinar que os trabalhadores da administração pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público tal como é definido, nos termos da lei, pelos órgãos competentes da administração. O artigo 268.° estabelece direitos e garantias dos administrados, entre os quais: o direito de informação; o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos; a notificação dos actos administrativos; e a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.

13 — Cont.—A crise

Contudo não era o devido procedimento administrativo ou o processo judicial, o controlo dos tribunais ou a imparcialidade e boa fé da Administração que permitiam por si sós que se descobrisse uma justiça inexistente, por muito rigoroso que tivesse sido a observância do procedimento ou a hermenêutica jurídica. A não descoberta da justiça, associada a carga fiscal muito elevada propiciadora de injustiças cada vez mais graves, fizeram com que surgisse a consciência social da existência de um problema e de que este tinha de ser resolvido a favor da justiça material.

O poder político tentou adiar por algum tempo a resolução do problema reforçando as garantias dos contribuintes, através do Código de processo tributário de fim dos anos 80, da personalização dos impostos sobre o rendimento (IRS e IRC), da modelação da incidência dos impostos e dos benefícios fiscais em atenção à capacidade contributiva e, porque não, aos direitos das pessoas, através de uma acrescida atenção aos interesses das famílias e das empresas e de um diálogo com os representantes da sociedade civil. Contudo, continuou a não se saber o que era capacidade contributiva; o que era o princípio do benefício nos benefícios fiscais; etc.

A justiça continua a ser uma ideia de que o legislador e os juízes não apercebem mais do que uma sombra. Por outro lado, a necessidade de satisfazer as clientelas políticas, associados às necessidades do nascente Estado do bem estar ou do pleno emprego, conduziam a um acréscimo constante da carga fiscal, em termos de pôr em risco algumas liberdades ou direitos fundamentais dos cidadãos.

C) JUSTIÇA MATERIAL ATRAVÉS DA PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS (CONTRATUALIZAÇÃO DOS IMPOSTOS) E RESPEITO PELOS DIREITOS HUMANOS

CONTRATUALIZAÇÃO DOS IMPOSTOS

14 — A participação dos cidadãos/contratualização dos impostos.

A pessoa humana é, antes de mais, livre.
O imposto tem sido aceite como um preço da liberdade de ser e de agir.

Quando a imposição financeira se torna tão elevada que, embora os bens e o trabalho estão na titularidade dos cidadãos, quem os goza são os governantes, seus verdadeiros proprietários, corre-se o risco na ausência de uma justiça cada vez mais difícil à medida que vai aumentando a carga tributária, que a imposição predomine e a democracia desapareça. Negando-se cada um como limite, transformando-o em mero suporte do eu, o ser-objecto de Marcuse.

Pode caminhar-se assim por pequenas doses, ao longo dos decénios, para regimes “realmente” tirânicos, com sérias limitações quotidianas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Situação que é mantida através de uma violência que ultrapassa a rejeição social de impostos considerados como força e não como Direito. Passa a considerar-se que o que o Estado exige como dever seria imediatamente o único direito da individualidade.(4) Resumindo-se o Direito dos impostos ao dever de pagar impostos.

Contudo, desde a queda da maioria dos regimes totalitários do século XX, nomeadamente do regime autoritário português, tem-se vindo a aprofundar a noção de cidadania, a participação efectiva de cada um e de todos no seu destino, a nível de destino comum. Há condições e limites a opor à obrigação política consentida, podendo-se deduzir deles não só um direito de obediência mas também um direito de resistência.

Cada vez que um indivíduo vê os seus direitos fundamentais ameaçados pela aplicação da lei, tem o poder de por todos os meios os defender.

No Direito dos impostos, devido à política sem ética, a lei assente na justiça tem sido particularmente difícil pela necessidade vital que os grupos dominantes têm de grande volume de receitas públicas para adquirir e manter o poder. O Direito constitucional português tem mudado, mas o Direito fiscal tem permanecido. Nos quadros constitucionais do Estado-de-Direito-dos-cidadãos-e-dos- -direitos (ou do que devia sê-lo) ainda se pensa a Administração como se esta se reduzisse a funções de autoridade, em plano de desigualdade com os cidadãos. Pelo contrário, a relação jurídica tributária deve entender-se como a relação jurídica entre iguais.

15 — Os aprofundamentos da democracia participada e da justiça na Lei Geral Tributária

Pertenceu à Lei geral tributária de 1999 aprofundar, os princípios fundamentantes tradicionais, e os novos princípios de justiça e de participação dos contribuintes.

Os artigos 5.° e seguintes visam adensar os fins da tributação, aprofundando a noção de capacidade contributiva, tanto no sentido positivo, enquanto manifestações de riqueza que devem ser tributadas, como no sentido negativo, afastando outras.

Nos termos do artigo 6.°, a tributação directa terá em conta: a necessidade da pessoa singular e do agregado familiar a que pertença disporem de rendimentos e bens necessários a uma existência digna; a situação patrimonial incluindo os legítimos encargos do agregado familiar; a doença, a velhice e outros casos de redução de capacidade contributiva do sujeito passivo.

Saliento a consideração não só da pessoa singular como do agregado familiar como entidades de referência da tributação. Depois, a circunstância da doença e a velhice de terminarem a redução da capacidade contributiva do sujeito passivo.

Não se tratará de benefícios fiscais, mas sim unicamente de uma não incidência. Finalmente, a tributação indirecta deverá favorecer os bens e consumo de primeira necessidade.

Segundo o n.°3, a família é reconhecida como um centro de agregação e distribuição de rendimentos, proibindo-se a sua discriminação, pelo menos em termos de não estar sujeita a impostos superiores aos que resultariam da tributação autónoma das pessoas que constituem o agregado familiar.

Nos termos do artigo 7.°, a tributação favorecerá o emprego, a formação do aforro e do investimento socialmente relevante, devendo ter em consideração a competitividade e a internacionalização da economia portuguesa no quadro de uma sã concorrência. Trata-se de princípios muito gerais que pouco contribuem para adensar a noção de capacidade contributiva, mas que revelam uma preocupação acrescida com os fins económicos e sociais da tributação, nos quadros do Estado social.

No artigo 7.°, n.°3 encontra-se o princípio da proibição do estrangulamento tributário.
A tributação não deve descriminar qualquer profissão ou actividade, nem prejudicar a prática de actos legítimos de carácter pessoal. Ou seja: anteriores e superiores à tributação, encontram-se a liberdade, a autonomia privada, a propriedade privada, a liberdade de imprensa, etc. De um modo geral, a livre conformação da pessoa e da sua actividade de acordo com o seu objecto pessoal de vida. As necessidades financeiras do Estado não podem justificar atentados às pessoas e os seus direitos.

O artigo 6.°, n.° 1 a) estabelece a isenção de necessária uma existência digna. Não estamos, portanto, perante a isenção de mínimo de existência mas sim perante a existência do médio de existência que se deve aplicar a todas as pessoas.

O artigo 14.°, n.° 1 determina que, sem prejuízo dos direitos adquiridos, as normas que prevêem benefícios fiscais vigoram durante um período de cinco anos, se não tiverem previsto outro, salvo quando, por natureza, os benefícios fiscais tiverem natureza estrutural. Trata-se aqui de assegurar o princípio da segurança jurídica/previsibilidade. Os destinatários dos benefícios fiscais devem saber qual é o período de duração deles. Pelo menos o período mínimo para adequarem as suas previsões a esse período. Tem de haver uma coordenação entre o ritmo da vida legislativa fiscal e o ritmo da vida económica, social, das famílias e das empresas. Em matéria de benefícios fiscais existe ou deve existir um regime (quase) contratual entre o legislador e os seus destinatários.

São de sublinhar as disposições da Lei geral tributária que consagram ou desenvolvem a colaboração/participação dos contribuintes com a Administração fiscal.

No artigo 59.° prevê-se o princípio da colaboração recíproca entre os órgãos da administração tributária e os contribuintes. Segue-se a presunção da boa fé da actuação dos contribuintes e da Administração tributária. Assim, todos devem actuar eticamente, como bons cidadãos, com lealdade e sinceridade recíprocas.

Ainda não estamos propriamente no domínio da participação dos contribuintes na actividade administrativa, mas antes, e de algum modo tradicionalmente, na exigência à Administração de um devido procedimento administrativo. Este já não é entendido de uma maneira meramente formal, mas substancialmente como uma boa fé ética e jurídica.

No n.° 3 prevêm-se deveres de colaboração da Administração tributária entre os quais sublinho a informação vinculativa sobre as situações tributárias ou os pressupostos ainda não concretizados dos benefícios fiscais.

No artigo 67.° dispõe-se o direito à informação do contribuinte sobre: a fase em que se encontra o procedimento e a data previsível da sua conclusão; a existência e teor das denúncias não confirmadas e a identificação do seu autor; e a sua concreta situação tributária. Julgamos que se deveria ter ido mais longe, chegando-se a um direito à participação em todo o procedimento, e não só ao seu conhecimento.

A transparência da actividade administrativa leva, no artigo 77.°, à fundamentação expressa da decisão do procedimento.

No artigo 60.° consagra-se o princípio da participação. Contudo, este resume-se ao direito de audição dos contribuintes antes dos principais actos da Administração tributária que lhes dizem respeito. A Administração deve comunicar ao sujeito passivo o projecto da decisão e a sua fundamentação, para este se poder pronunciar. Os elementos novos suscitados na audição do contribuinte são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão. Ainda estamos, infelizmente, longe de uma verdadeira participação do contribuinte na tomada das decisões administrativas que lhe digam respeito. A não ser, como é o caso, através de fornecimento de mais elementos que permitam à Administração fiscal alterar o seu juízo.

16 — O novo conteúdo da auto tributação: participação dos cidadãos através da contratualização dos impostos.

Está cada vez mais presente a necessidade de fazer progredir o princípio da auto-tributação para um novo, mais adequado ao Estado-os-cidadãos-e-dos-direitos. Através da intervenção dos cidadãos na criação e aplicação dos impostos e na discussão dos conflitos com o Estado.

Os princípios fundamentantes da terceira fase serão garantias de participação nas decisões em termos de uma contratualização dos impostos que se transformarem em contribuições.

E, pelo mesmo facto, criar, a partir de impostos dispersos e alheios à justiça, um sistema de impostos, assente em regras de justiça. Estou convencido que tal jurisdicização será mais fácil, se não só possível, assentando nos direitos da pessoa e integrando em uma obrigação tributária moldada pelo Direito civil (matriz do Direito) um procedimento administrativo assumido pelos cidadãos.

Enquanto não se atinge o “novo” contrato social em que os impostos a todos os níveis (criação, aplicação, resolução dos conflitos) sejam efectivamente contratualizados em termos de contribuições; há que defender o cidadão contra o Estado-fiscal através da subordinação dos impostos aos direitos da personalidade.

DIREITOS DA PESSOA E IMPOSTOS

17 — Direitos da personalidade e o direito de não pagar impostos (seguido do dever de pagar impostos).

A pessoa é anterior a todos as outras, à sociedade e ao Estado, e exige o respeito do que é “em si mesma”. Afirma um estatuto jurídico e impõe-o a todos os outros, reconhece-o em todos os outros, integrado por um núcleo de direitos fundamentais (naturais).

Encontramos aqui direitos, entendidos em termos de direitos de exclusão dos outros - como os direitos à vida, à saúde, à integridade corporal, à propriedade e transmissão da propriedade, à livre realização da pessoa de acordo com o seu projecto pessoal, aqui se incluindo o direito a uma actividade económica, etc.

E estes direitos impõem-se à criação e modelação dos impostos.
Mas o ser “em si” é necessariamente um ser “para com os outros” e “com os outros”. Ser “com os outros” é uma extensão natural do “ser em si”. O eu é incindível do tu e acaba por se transformar em nós.

Esta segunda dimensão do ser é a primeira dimensão da relação com o outro. A nível económico, situa-se aqui o direito de cada um dispor dos bens suficientes, a título pessoal, para tecer relações com os outros, recebendo-os e dando-os.

É nesta sede que se encontra o Direito dos impostos. Enquanto manifestação de comunidade com os outros; mas de uma comunidade livre, em que cada um e os seus bens não são propriedade dos outros ou do Estado, mas propriedade de cada um, do eu (-tu-nós). Em que a propriedade assume uma dimensão social na qual se integram os impostos. Impostos sim, mas respeitando — mais, promovendo — a liberdade da sociedade civil e de cada um, e contribuindo para assegurar a prossecução dos fins democraticamente assinalados ao Estado.

A introdução dos direitos da pessoa em Direito tributário opera-se em três momentos: A) os direitos materiais, como o direito à vida, à liberdade pessoal, que limitam e condicionam os impostos, servindo de fundamento à justiça material; B) a introdução do lançamento e liquidação dos impostos numa obrigação tributária paritária e moldada pela obrigação civil (justiça formal); C) O direito de resistência perante violação de direitos da pessoa e a composição dos conflitos em igualdade com o Estado através da arbitragem.

18 — Isenção do necessário à manutenção de uma existência em condições económicas dignas

A pessoa em si — vida, saúde, integridade física, educação, cultura, etc., em geral, existência e auto-criação — tem duas dimensões: uma negativa e outra positiva. A primeira dimensão, negativa, impõe a não tributação dos rendimentos e da riqueza necessários para manter a saúde a vida, para adquirir bens de cultura, etc.

Tradicionalmente, tem-se entendido que se trata, meramente, da isenção do mínimo da existência. Do necessário a cada um para satisfazer as suas necessidades de estrita sobrevivência física: alimentação, vestuário e abrigo.

Este estado de coisas reflecte uma sociedade pouco atenta aos direitos humanos e à sua tutela; não lhe servindo de desculpa as suas insuficiências económicas, pois a protecção da pessoa deve constituir a preocupação política fundamental em qualquer sociedade, vindo antes de todas as outras.

Com o aprofundamento do Estado de Direito — assente na justiça, na referência à pessoa, na participação dos cidadãos na coisa pública — a isenção do mínimo de existência tende a tornar-se uma isenção do médio da existência. Ou seja: dos rendimentos e da riqueza de que o cidadão médio necessita para satisfazer as suas necessidades normais em matéria de saúde, alimentação, vestuário, cultura, educação, recreio, etc. Esta isenção do médio de existência levará, por exemplo, à não tributação da casa de morada do contribuinte e da sua família, se esta não exceder as necessidades de um cidadão médio com aquela composição de agregado familiar.

O artigo 6.°, 1, a) da Lei Geral Tributária portuguesa vem consignar o princípio da isenção do necessário a uma existência em condições económicas dignas. O que se deve interpretar em termos de isenção de médio de existência.

19 — A proibição do confisco

A proibição do confisco está intimamente ligada à isenção do necessário a uma existência em condições económicas dignas e ao princípio seguinte que é o da proibição do estrangulamento tributário.

Como referimos, o ser tem uma dimensão de ter, de suporte material para além do corpo humano, compreendendo os pressupostos materiais de apoio à existência.

Constituindo o imposto uma limitação do direito de propriedade, a proibição do confisco representa, não só uma protecção da pessoa humana, directamente, como também um princípio material de protecção do direito de propriedade. Entendido este como englobando todos os interesses que uma pessoa pode ter fora de si mesma, da sua vida materiais da sua liberdade.

Mesmo sem atingir 100% dos bens tributáveis, o imposto terá carácter confiscatório se puser em causa o essencial dos interesses que integram o direito de propriedade e, através dele, a pessoa humana.

O estabelecimento de presunções e índices ou parâmetros desrazoáveis, não comprovadamente assentes nos dados da ciência e da experiência, terá efeitos confiscatórios.

20 — Proibição do estrangulamento tributário

O artigo 7.°, 3 da Lei Geral Tributária determina que a tributação não discriminará qualquer profissão ou actividade, nem prejudicará a prática de actos legítimos de carácter pessoal.

Na parte final visou-se proibir o chamado efeito de estrangulamento. A pessoa não é só um ser estático, mas também é uma actividade constante, não só consigo mesma mas também com os outros. É interrelacionando-se, e exercendo a sua acção sobre os bens que a pessoa se auto-cria e realiza o seu projecto pessoal.

Os impostos não podem impedir o livre exercício das actividades humanas, individualmente ou em associação com outrem. Não deve o direito dos impostos impedir a livre escolha de uma profissão, de uma actividade lúdico-cultural, através de uma tributação excessiva dessa actividade ou dos seus resultados. Assim, será de afastar um imposto que ultrapasse determinados limites sobre o rendimento das pessoas e das sociedades; a tributação sobre o património que leve à alienação deste; etc.

21 — O limite do sacrifício

A modelação e o crescimento da carga fiscal têm sido utilizados (também) como instrumento de poder de pessoas e organizações. Em termos de o poder da “classe” política contemporânea assentar cada vez mais preponderantemente nas receitas fiscais com instrumentos de distribuição de rendimentos e aquisições de apoio.

O crescimento da carga fiscal, só aparentemente nos quadros do Estado-dos-cidadãos, pode transformar-se (e tem-se transformado) na promoção “homeopática” do “despotismo iluminado” — (do poder dos burocratas e políticos profissionais).

A sociedade civil — para não ser absorvida insensivelmente pelo Estado — deve guardar para si — colectiva e individualmente — a maior parte do P.I.B.

22 — O princípio da liberdade (autonomia privada)— (normas anti-abuso e preços de transferência).

No Estado-de-Direito-democrático-dos-cidadãos o Direito é criado, antes de mais e principalmente, pelas pessoas. Estas criam o Direito interrelacionando-se, criando uma teia de relações jurídicas que definem um tecido jurídico-social que é o conformador e a parte fundamental do Direito em geral. A actividade das pessoas orienta-se por formas jurídicas livremente criadas e dispostas por si, ao abrigo do princípio da autonomia privada ou liberdade negocial.

Esta liberdade negocial, no plano da pessoa, é expressão da sua liberdade auto-criadora; no plano económico, é também consequência da existência da propriedade e da sua livre disponibilidade. Com efeito, o direito da propriedade é existencialmente o poder de dispor do bem, das suas utilidades, o poder de fruir, sendo o poder de dispor um aspecto da fruição.

Mas é, antes de mais e sobretudo, vertente fundamental da liberdade que “é” o ser humano. A propriedade privada tem sido entendida na tradição europeia como uma condição integrante da liberdade do ser humano.

Só é livre quem é autónomo (Platão). Ou só é livre quem dispõe dos meios materiais e essenciais de uma vida digna (S. Tomás de Aquino).

Assim, a propriedade privada no seu duplo aspecto de titularidade da propriedade e da sua disponibilidade, será uma condição da existência da liberdade humana.

Vejamos que consequências esta liberdade tem no plano do Direito fiscal.
A generalidade das escolhas económicas, e mesmo pessoais, da pessoa têm hoje relevância fiscal, na medida em que são sujeitas a imposto e as vias alternativas para atingir resultados idênticos também estão sujeitas a imposto, embora eventualmente com peso diferente.

Quando se pretende atingir um certo resultado jurídico, têm-se à disposição diversas vias juridicamente relevantes, havendo que escolher entre elas. Esta escolha é, mais do que lícita, perfeitamente “natural” por corresponder à liberdade do ser humano.

Tais opções não compreendem qualquer nível de ilicitude, mas unicamente de “prevenção” fiscal - no sentido de se prevenirem impostos mais pesados por se escolherem condutas ou situações jurídicas menos tributadas.

O que acabamos de dizer reflecte-se tanto a nível das pessoas singulares como das empresas. Tanto o bom pai/mãe de família como o bom gestor, não só não são obrigados a retirar dos seus negócios o máximo de proveitos — tributáveis — que as circunstâncias lhes teriam permitido, como serão passíveis de censura se não levarem a cabo os comportamentos adequados à menor tributação. Nas sociedades comerciais os actos de gestão devem, para ser rentáveis e eficazes, visar obter todas as vantagens fiscais possíveis. A gestão fiscal é parte inseparável da gestão.

Há, porém, situações em que o legislador ou os tribunais têm entendido que se “abusa” do “direito” de realizar prevenção fiscal, da própria liberdade negocial, utilizando esta com fins contrários ao seu fim e ao seu valor social. Considerando-se que, a partir de um certo limite, o contribuinte deixa de gerir os seus interesses para passar a gerir os interesses públicos definidos no ordenamento jurídico tributário.

Nesta matéria, legisladores e tribunais têm usado de precauções para evitar a intromissão na esfera jurídica privada. É disto um exemplo a Lei Geral Tributária Portuguesa no n.° 2 do seu artigo 38.° ao estabelecer um certo número de requisitos (intuito fiscal, abuso de formas jurídicas, fraude à lei, resultado fiscal) prévios à desconsideração dos actos ou negócios.

Contudo, mesmo com estas precauções, não me parece que se trate de um princípio facilmente adequável aos valores do Estado-de-Direito-democrático que devem informar o Direito fiscal. Com efeito, uma vez verificados cuidadosamente e analisados com o rigor todos os seus pressupostos, só será possível a sua aplicação num reduzidíssimo número de casos.

Mesmo que entendamos que vale a pena deixar em aberto um princípio geral correctivo, sempre se perguntará se este é compatível com o princípio da segurança das relações jurídicas, senão será uma “bomba atómica” que a Administração fiscal terá sempre sobre a cabeça dos contribuintes, não resistindo — é esta a experiência — em aplicá-la em todos os casos com os quais não concorda, por o contribuinte ter feito prevenção fiscal.

Haverá uma correlação justiça efectiva/injustiça potencial, muito desfavorável à justiça.
Propendemos, assim, a considerar tal norma ou normas equivalentes como inconstitucionais por violarem o princípio da liberdade ou, pelo menos, o princípio da segurança jurídica.

Nas normas equivalentes incluo as referentes aos preços de tranferência, em que depois de se usarem todas as precauções para se salvaguardar a autonomia negocial, o resultado também dispõe no sentido de grande injustiça potencial e consome o relevo dos eventos de justiça efectivos.

23 — A certeza jurídica—estabilidade, cognoscibilidade e previsibilidade do direito

A certeza jurídica determina a estabilidade, cognoscibilidade e previsibilidade do Direito.
Os contribuintes devem poder conhecer as normas jurídicas e o Direito que é dito pela Administração e pelos Tribunais. Em termos de pautarem a sua conduta consciente e livremente.

Aqui se situa a proibição da retroactividade das normas fiscais (artigo 103.° da Constituição da República Portuguesa).

Depois, esse Direito tem de ser estável. A instabilidade do Direito, com múltiplas e rápidas alterações, destrói a ordem jurídica em si mesma, cria incerteza sobre o futuro e mesmo sobre o presente por tornar dificilmente cognoscível o Direito.

Também, as condutas dos particulares não são, pela própria natureza das coisas, instantâneas, prolongando-se no tempo a nível da sua concepção, da sua execução e das suas consequências. Pelo que os contribuintes necessitam de prever qual é o Direito que se vai aplicar à sua conduta e os seus efeitos. Assim, o Direito tem de ser estável no tempo ou, pelo menos, garantir a sua estabilidade quanto a certas condutas. Vai-se mais além da proibição da não retroactividade e do próprio respeito pelos direitos adquiridos. Exige-se que o Direito fiscal não se altere mais rapidamente do que se alteram as condutas humanas, não podendo ser alterado no decurso de condutas humanas que contavam com a sua estabilidade.

24 — Os direitos da pessoa a nível do processo e do procedimento

A “descoberta” do papel do intérprete (administrador fiscal e juiz) na criação (“aplicação”) do Direito, levou a dar um novo relevo ao procedimento e processo como instrumentos de realização do Direito (justiça, certeza, segurança, igualdade, etc.). Assim, os princípios fundamentais do procedimento e do processo têm adquirido categoria de direitos, liberdades e garantias constitucionais. Um deles, saliento-o, é o da participação do contribuinte no procedimento administrativo tributário. Devendo este ser integrado numa relação jurídica paritária moldada pela obrigação do Direito Civil.

25 — Os direitos da pessoa (com os outros).

Nesta sede, inúmeros direitos, de conteúdo muito variável no tempo e no espaço, se poderiam referir.
Os “direitos” ao meio ambiente, ao desenvolvimento económico e social, à habitação, ao trabalho, etc., têm projecção em matéria de impostos. Trata-se de “direitos” de conteúdo programático que implicam que a actividade do Estado, nomeadamente a actividade legislativa, se coadune com tais programas.

Em matéria de impostos, haverá que promover, através dos devidos benefícios e agravamentos, e na medida do necessário, tais programas.

26 — O direito de resistência. O direito à arbitragem.

À violação dos direitos da personalidade corresponde, nos termos dos artigos 18.° e 103.° da Constituição da República, um direito de resistência dos ofendidos. Só um tribunal poderá decidir do litígio, não assistindo à Administração qualquer privilégio ou autoridade sobre o contribuinte.

Depois, assiste ao contribuinte (como a qualquer cidadão nos outros ramos do Direito) o direito de exigir a composição dos seus interesses em termos paritários com o Estado, recorrendo a juízes escolhidos pelos interessados (arbitragem).


Notas:

(*) Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Doutor em Direito na Universidade de Paris II. Doutor em Economia na Universidade de Paris IX.

(1) Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pág. 402

(2) Sobre o que se segue (números 5 a 8), vd. Celestino Pardo, El núcleo duro de los derechos humanos desde la perspectiva de la historia de las ideas juridicas, sociales y morales, in António Marzal, El núcleo duro de los derechos humanos, J.M. Bosch, s.d. págs. 119 e segs.; e Diogo Leite de Campos, As três gerações das garantias dos contribuintes, in “O sistema tributário no Estado dos cidadãos”, Coimbra, Almedina, 2006.

(3) Vd. em geral, Fernando José Bronze, Lições de introdução ao Direito, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 353 e segs.

(4) Raymond Polin

22/01/2025 22:08:07