Mário Raposo - Arresto decretado por Tribunal Arbitral - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.11.2006
POR TRIBUNAL ARBITRAL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
de 9.11.2006(*)
Acordam na 2.a Secção (Cível) do Tribunal da Relação de Lisboa.
I — A. —, LDA, F. e M. interpuseram o presente recurso de agravo do despacho de 24.5.2006, proferido no 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Mafra, a fls. 207-208 do processo supra identificado, que conheceu da incompetência desse Tribunal para apreciar a oposição (por isso não a admitindo) deduzida pelos ora agravantes nesse Tribunal Judicial, contra a providência cau-telar de arresto que, a pedido de Z. —, LDA, foi decretada pelo TRIBUNAL ARBITRAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA — PROJURIS — CENTRO DE ESTUDOS PROCESSUAIS CIVIS E JURISDIÇÃO, sobre bens vários dos recorrentes, e cujas diligências de cumprimento foram pela agravada requeridas directamente perante aquele mesmo Tribunal Judicial.
II — QUESTÃO A DECIDIR
É de referir que — apesar de no corpo das alegações e nas conclusões os agravantes colocarem a questão de forma mais abrangente, parecendo que pretendem ver decidido neste recurso que os tribunais arbitrais não podem apreciar e decidir sobre medidas cautelares, quer em abstracto, quer em concreto, por inexistir ou ser inválida a cláusula compromissória invocada pela agravada e que foi tida em consideração pelo tribunal arbitral — na realidade o pedido formulado, no final das conclusões (a fls. 32), é o de que se declare a competência do tribunal a quo para a apreciação do mérito da oposição, competência que, no despacho impugnado, o tribunal se recusou, fundando-se, não na posição favorável à arbitrabilidade das medidas cautelares, mas tão só no facto de entender que a sua intervenção no cumprimento do arresto representou apenas uma intervenção do tipo da que preside ao cumprimento de actos por carta precatória e não o exercício de uma competência legal própria e directa, não admitindo, por isso, a oposição (sem dela conhecer, quer no plano de mérito quer no dos demais pressupostos processuais).
Daí que, operando o devido cotejo das conclusões das alegações, nos termos dos artigos 884.°, n.° 3, 690.°, n.° 3 e 749.° do Código de Processo Civil, com a fundamentação e o próprio teor do despacho impugnado, se entenda que a questão a decidir é a de saber se a oposição ao decretamento de um procedimento cautelar de arresto, determinado por um tribunal arbitral (em que nomeadamente se impugna a arbitrabilidade das medidas cautelares, a existência e validade da convenção de arbitragem, a vinculação a esta dos requeridos, que por serem meros avalistas não subscreveram a cláusula compromissória, e os próprios fundamentos concretos da providência) deve ser deduzida perante o tribunal que decretou a providência cautelar, ou perante o Tribunal Judicial em que o arresto foi cumprido.
De outro modo, estar-se-ia a dar ao recurso de agravo uma natureza que extravasaria a de revisão ou reponderação(1) além de que se estaria a apreciar na realidade o mérito da própria sentença arbitral e não o despacho que é objecto de impugnação.
III — FACTOS OU OCORRÊNCIAS PROCESSUAIS PERTINENTES
a) Em procedimento cautelar requerido pela agravada Z. —, Lda., foi proferida em 27.10.2005, pelo Tribunal Arbitral da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra — Projuris — Centro de Estudos Processuais Civis e Jurisdição, a sentença certificada a fls. 2 a 15, julgando procedente a providência cautelar requerida e ordenando o arresto de diversos bens imóveis e móveis dos agravantes, sediados e residentes em Mafra, descritos a fls. 13 e 14, determinando-se a final que sendo necessário deverá a requerente, no cumprimento da presente decisão, solicitar às autoridades policiais ou de investigação, ou ao Tribunal Judicial das Comarcas onde se revelar necessário proceder à realização de quaisquer diligências, o auxílio da força pública, nos termos das leis de processo, para dar bom e integral cumprimento à decisão ora proferida, mais se ordenando oficie ao Banco de Portugal com vista ao arresto das contas bancárias e, por último notifique os requeridos nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 385.°, n.° 5 e 388.° do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 392.° do Código de Processo Civil);
b) Por requerimento certificado a fls. 36-40, entrado em 6.1.2006 no Tribunal Judicial de Mafra, a ora agravada, com invocação do disposto nos artigos 90.°, n.° 2, 83.°, n.° 1, alínea a) e 406.° e seguintes do Código de Processo Civil, requereu contra os ora agravantes Apreensão Judicial de Bens Arrestados, nos autos de ARRESTO, que correu termos e foi ordenado por PROJURIS — CENTRO DE ESTUDOS PROCESSUAIS E CIVIS E JURISDIÇÃO — Tribunal Arbitral da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e, invocando a sentença referida na alínea anterior, solicitou o seguinte (fls. 40);
Requer-se a presença da GNR, para garantir a execução da diligência.
Requer-se se oficie ao Banco de Portugal, com vista ao arresto das contas bancárias.
Requer-se se notifique a Sociedade M., S.A., identificado no ponto h) do presente requerimento, para se abster de pagar aos requeridos quaisquer quantias em débito, que deverão ser consideradas arrestadas à ordem dos presentes autos.
Mais se requer que a execução seja feita por oficial de justiça;
c) Os ora agravantes, na qualidade de requeridos no procedimento cautelar de arresto e invocando terem sido citados para querendo deduzir oposição, apresentaram no Tribunal Judicial de Mafra o requerimento certificado de fls. 41 a 60, de oposição à providência cautelar decretada, ao abrigo dos artigos 385.°, n.° 2 e 6 e 388.° do Código de Processo Civil, o qual aqui se dá por inteiramente reproduzido, nele invocando como fundamentos de oposição a incompetência do tribunal arbitral para decretar o arresto, a inexistência e a nulidade da eventual convenção de arbitragem, a ilegitimidade dos requeridos pessoas singulares (por serem meros avalistas sem intervenção nas facturas em que alegadamente consta a cláusula compromissória), a falta de fundamentação da sentença quanto à verificação dos requisitos de que a lei faz depender o decretamento da providência, e ainda que a requerente do arresto por diversas vezes viabilizou o fornecimento da requerido, acordando no pagamento e amortização da dívida conforme as possibilidades desta última, oferecendo a final rol de testemunhas;
d) Em 24.5.2006, foi proferido o despacho ora agravado, certificado a fls. 16 a 17, do seguinte teor:
Fls. 121 e ss.: A.—, .Lda, F. e M., requeridos com os sinais dos autos, apresentaram-se a deduzir oposição à providência cautelar de arresto determinada pelo Centro de Arbitragem da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Projuris, Centro de Estudos Processuais Civis e Jurisdição), requerida por Z.—, Lda.
Estabelece o art. 388.°, n.° 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil, que quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, na sequência da notificação prevista no n.° 6 do art. 385.°, recorrer, nos termos gerais, ou “Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução”.
Analisados os autos, temos que nos mesmos apenas se dá execução material a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra que determinou o arresto de determinados bens, se necessário, para cumprimento do decidido, solicitando às autoridades policiais ou ao Tribunal das Comarcas onde se revelar necessário proceder à realização de quaisquer diligências, o auxílio da força pública.
No fundo, a situação apresenta analogia com o regime das cartas precatórias, já que se trata da solicitação da intervenção de serviços judiciários para a prática de actos processuais (art. 176.°, n.° 1 do Cód. de Proc. Civil), dirigida ao tribunal da comarca em cuja área jurisdicional o acto deve ser praticado (art. 177.°, n.° 1, do Cód. de Proc. Civil).
Em todo o caso, resulta claro que não foi este tribunal quem ordenou o arresto, não podendo funcionar como uma espécie de instância de recurso, com a apreciação de uma decisão proferida por outro tribunal, considerando, designadamente, factos e meios de prova que não tenham sido tidos em conta, por forma a proferir decisão de manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada.
Nesta conformidade, pelo exposto e de harmonia com as normas legais citadas, e, ainda, do disposto nos arts. 62.°, 108.° e 110.°, n.° 1, alínea c), todos do CPC, conheço da incompetência deste tribunal para apreciar a oposição apresentada não admitindo a mesma.
IV — O DIREITO
Relembrando, entendemos que o thema decidendum do presente recurso é, não a questão da arbitrabilidade dos meios cautelares, designadamente dos procedimentos cautelares do Código de Processo Civil e concretamente do de arresto, mas a da determinação do tribunal que deve conhecer da oposição deduzida contra o decretamento de uma tal providência.
A decisão recorrida equacionou o problema na perspectiva da competência (material), apelando para o regime contido no artigo 388.°, n.° 6 e no artigo 388.°, n.° 1, alínea b) do Código de Processo Civil, que aponta para que, optando o requerido, quando não ouvido antes do decretamento da providência, por alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução, deva fazê-lo pela dedução de oposição, a ser processada e julgada no processo da providência, dando lugar a nova decisão, de manutenção, redução ou revogação, que constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida.
Mas a oposição deduzida não se limitava a invocar factos e a requerer provas destinados a porem em causa os fundamentos da providência.
Equacionava também questões jurídicas, como a da não arbitrabilidade dos meios cautelares, apelidando-a de questão de competência, mas que na realidade é de jurisdição (v. artigo 115.°, n.os 1 e 2 do CPC), que estará reservada aos tribunais judiciais — e a da existência, validade e âmbito pessoal da cláusula compromissória invocada na própria sentença arbitral.
E, no que a estas questões substancialmente jurídicas tange, o meio processual indicado no artigo 388.°, n.° 1 é, não o da oposição à providência decretada, mas o do recurso de agravo (alínea a) do citado artigo 388.°, n.° 1 e 738.° do Código de Processo Civil).
Como a lei não permite a cumulação simultânea dos dois meios reactivos (é-lhe lícito, em alternativa, reza a parte inicial do n.° 1 do artigo 388.°), nada obsta, no entanto, a que, como pertinentemente admite Carlos Lopes do Rego(2) o faça sucessivamente, devendo apreciar-se em primeiro lugar as questões relativas aos fundamentos da providência (que traduzem o exercício do contraditório a posteriori, quer pelo aporte de factos quer pelo oferecimento de meios de prova que antes não puderam ser tidos em consideração), e só se conhecendo das restantes questões com o recurso da nova decisão, proferida no final da oposição, e que constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida(3).
Assim, e se se atender unicamente ao regime legal próprio do procedimento cautelar de arresto, e das disposições dos procedimentos cautelares comuns que lhe são aplicáveis, não restam dúvidas de que a oposição ao arresto deve ser submetida à apreciação e julgamento do mesmo tribunal que, imperativamente sem audiência dos requeridos, decretou o arresto, sob pena de se admitir que as provas de uma parte e da outra sejam prestadas perante tribunais e jurisdições distintos e se quebrar a unidade da instância cautelar.
Deve, no entanto — pois que as alegações dos agravantes trazem à colação, através da invocação da inarbitrabilidade do litígio, o regime legal da arbitragem voluntária — questionar-se se a admissibilidade da oposição deduzida não deve ser considerada à luz desse regime, mormente no que respeita à identificação do tribunal ou da jurisdição perante o qual deve ser deduzida.
Esse regime consta da chamada Lei de Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto, alterada pelo Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de Março, e cujo artigo 21.° dispõe:
1 — O tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua própria competência, mesmo que esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.
2 — A nulidade do contrato em que se insira uma convenção de arbitragem não acarreta a nulidade desta, salvo quando se mostre que ele não teria sido concluído sem a referida convenção.
3 — A incompetência do tribunal arbitral só pode ser arguida até à apresentação da defesa, ou juntamente com esta.
4 — A decisão pela qual o tribunal arbitral se declara competente só pode ser apreciada pelo tribunal judicial depois de proferida a decisão sobre o fundo da causa e pelos meios especificados no artigo 27.° e artigo 31.°.
Esta possibilidade de o tribunal arbitral se pronunciar sobre a sua própria competência é o que vem sendo designado de competência sobre a competência.
E fê-lo, em concreto, na sentença proferida.
A própria LAV (n.° 4 do artigo transcrito) define as vias de reacção à decisão do tribunal arbitral sobre a sua competência: a acção de anulação (artigo 27.°) e a oposição à execução da sentença arbitral (artigo 31.°).
Mas se atentar em que o tribunal arbitral se declarou competente por entender que a cláusula compromissória lhe conferia poderes para resolver pedidos de aplicação de medidas cautelares, e que a questão da arbitrabilidade não é realmente de competência, mas de jurisdição, então de igual modo pode tal questão ser suscitada tanto em via de acção de anulação (alínea a) do n.° 1 do artigo 27.° da LAV, que admite a anulação da sentença arbitral no caso de o litígio não ser susceptível de resolução por via arbitral), como por via de oposição à execução (artigo 31.°).
Ora, se a acção de anulação deve ser intentada perante o tribunal judicial (constituindo um meio processual perfeitamente autónomo), a oposição à execução deve ser deduzida perante o tribunal de 1.a instância competente material e territorialmente para a execução da providência cautelar (artigos 30.° da LAV e 90.°, n.° 2 do Código de Processo Civil).
Uma vez que o arresto veio a ser efectivado no Tribunal Judicial de Mafra, e perante o qual foi directamente apresentado pela ora agravada o respectivo requerimento, parecerá que, à luz do regime da LAV, a oposição foi correctamente interposta naquele tribunal, e o despacho agravado padece então de erro de direito.
Propendemos, no entanto, para a solução contrária.
Em primeiro lugar, a intervenção do tribunal judicial não se reveste, no caso das providências cautelares (e abstraindo da questão da arbitrabilidade destas), de carácter executivo.
As decisões arbitrais têm, é certo, a mesma força executiva das sentenças dos tribunais judiciais de 1.a instância, como diz o n.° 2 do artigo 26.° da LAV (o que afasta o sistema de exequatur, a que os agravantes fazem indevida referência no ponto 7. das conclusões(4), mas a sua execução só pode correr no tribunal de 1.a instância (artigo 30.° da LAV), o que resulta do facto de ser meramente declarativa a competência do tribunal arbitral.
Mas a questão é que — seja ou não arbitrável uma pretensão cautelar — providências como o arresto se revestem da particularidade de o seu cumprimento integrar a própria tramitação do procedimento, o que leva Fernando Amâncio Ferreira(5) a apelidá-lo, tal como à restituição provisória de posse, ao arrolamento, à entrega de coisa objecto de locação financeira e o cancelamento do respectivo registo, à apreensão de veículo automóvel e a algumas outras, de providências cautelares perfeitas, por serem de imediato realizadas pelo funcionário judicial, com ou sem o auxílio da força pública, ou pela autoridade policial, e por o procedimento só se considera(r) findo depois de a decisão judicial ser cumprida, acrescentando daí não poder o requerido obstar à sua actuação, o que significa ser aqui inviável a implementação de medidas de execução coerciva, apenas podendo reagir em momento posterior (dado que nelas normalmente não se verifica a audiência prévia), por recurso ou por oposição.
Assim, e como na nota 927 a pág. 448 o mesmo Autor claramente refere, a efectivação do arresto constitui tão só o cumprimento da decisão, integrando o próprio procedimento e não uma fase distinta e posterior de execução.
Em segundo lugar, a oposição ao arresto (como em geral a qualquer outro procedimento cautelar decretado sem prévia audiência do requerido) visa assegurar a posteriori o direito de defesa, que apenas razões de cautela da eficácia da pretensão cautelar determinaram não tivesse lugar no normal momento anterior à decisão.
Possibilita, por isso, ao requerido trazer aos autos, não só a impugnação dos factos invocados pelo requerente, como a invocação de novos factos, em impugnação motivada ou excepção peremptória e ainda oferecer provas e, decerto, a pronúncia sobre os próprios pressupostos processuais.
O que equivale a, embora postecipadamente, possibilitar completar, com o contraditório que constitui garantia de defesa essencial, o normal processado de qualquer procedimento judicial.
Ora, não faz sentido que seja outro tribunal, o de execução, a tramitar e julgar a oposição, pois que, não sendo ele instância de recurso, deverá no final emitir decisão que, como diz o artigo 388.°, constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida.
E nem sequer se poderá objectar que o tribunal arbitral esgotou o poder jurisdicional, como parece resultar do disposto no artigo 25.° da LAV, pois que igual objecção se haveria de colocar em relação ao conhecimento da oposição à providência cautelar no próprio âmbito dos tribunais estaduais, constituindo aquele meio de defesa, como já atrás foi mencionado(6), um caso de excepção em relação à regra idêntica do artigo 666.° do Código de Processo Civil.
Ora, não pode olvidar-se, como fazem os agravantes, que no articulado de oposição — que denominaram de oposição à providência cautelar decretada e não de oposição à execução da sentença arbitral — foram invocados factos novos e oferecidas provas.
E no despacho agravado tal facto foi devidamente valorado, como uma das razões pelas quais o seu autor entendeu não ter competência para conhecer dessa oposição, o que o levou a não a admitir.
Entendemos assim, pelas razões expostas, que o despacho agravado fez correcta interpretação das disposições legais aplicáveis e não merece censura.
Por último, e acerca da pretensão subsidiária dos agravantes de, caso se viesse a concluir ser perante o tribunal arbitral que a oposição deve ser deduzida, o despacho a proferir dever ser, não de não admissão, mas de ordenar a remessa dos autos para esse tribunal, não se vê suporte legal para tal.
Com efeito, ainda que se tratasse de uma questão de competência (e não é, pois que se não trata no concreto de decidir qual dos tribunais de uma mesma ordem deve, pelas regras de repartição da competência, conhecer do litígio — V. artigo 115.°, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil), e se pudesse invocar tratar-se de incompetência relativa por preterição de convenção prevista nos artigos 99.° e 100.° desse Código (o que também não é o caso), sempre a remessa para o tribunal declarado competente estaria excluída pelo disposto no artigo 111.°, n.° 3.
Assim, também nessa perspectiva é de manter inteiramente o despacho agravado, devendo, consequentemente, negar-se provimento ao presente agravo.
V — DECISÃO
Nestes termos acordam em negar provimento ao agravo, mantendo o despacho impugnado.
Custas pelos agravantes.
Lisboa, 9 de Novembro de 2006
Neto Neves
Isabel Canadas
Sousa Pinto
Recurso n.° 7991/06
Comarca de Mafra — 1.° Juízo
Notas:
(*) Colectânea de Jurisprudência, 2006-V, pp. 82 e segg.
(1) Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 6.a Edição, págs. 150-151.
(2) Comentários ao Código de Processo Civil, Volume 1, 2ª Edição — 2004,
pág. 357, onde se comenta que o sistema instituído pela redacção do artigo 388.° dada pela reforma do Decreto-Lei n.° 180/96, de 25 de Setembro, visa evitar que a parte tenha o ónus de lançar mão simultaneamente do recurso de agravo e do exercício da oposição subsequente, sempre que entenda que concorrem os pressupostos das alíneas a) e b) do n.° 1 deste preceito — o inconveniente manifesto de questões, muitas vezes conexas, estarem simultaneamente a ser apreciadas em 1.a instância e na Relação.
(3) V., neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6.7.2000, Boletim do Ministério da Justiça 499-205 e da Relação de Coimbra, de 28.11.1998, Colectânea de Jurisprudência 98, V., 30, o primeiro dos quais chega a caracterizar a decisão proferida sem contraditório como provisória, e o segundo afirmando que o sistema instituído constitui derrogação do princípio da imodificabilidade da decisão (artigo 666.° do Código de Processo Civil).
(4) V. Luís Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional — A Determinação do Estatuto da Arbitragem, pág. 177, e Paula Costa e Silva A Arbitrabilidade de Medidas Cautelares, em ROA 63-223.
(5) Curso de Processo de Execução 2005, 8.a Edição, pág. 447.
(6) Vide nota 3 supra.
Pelo Bastonário Mário Raposo
1. Como se mostra do transcrito Acórdão, o Tribunal Arbitral da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra — PROJURIS — Centro de Estudos Processuais Civis e Jurisdição em procedimento cautelar requerido por uma das partes proferiu, em 27.10.2005, uma sentença (sic) julgando-o procedente “e ordenando o arresto de diversos bens imóveis dos agravantes”, mais determinando “que sendo necessário deverá a requerente solicitar às autoridades policiais ou de investigação, ou ao Tribunal Judicial das Comarcas onde se revelar necessário proceder à realização de quaisquer diligências o auxílio da força pública (…) para dar bom e integral cumprimento à decisão, mais se ordenando oficie ao Banco de Portugal com vista ao arresto das contas bancárias (…)”. Mandou, por fim, notificar os requeridos para os efeitos do disposto nos arts. 385.°, 5, e 388.° do Cód. Proc. Civil (ex vi do art. 392.° do mesmo Código).
Da simples leitura deste passo da decisão do Tribunal Arbitral(1) um observador mediamente atento depreende que:
(a) A requerente do arresto adoptou uma estratégia processual que não será de aplaudir se, na verdade, tinha em vista obviar ao periculum in mora;
(b) Ao Tribunal Arbitral escapou uma correcta noção da sua natureza, dos seus poderes e do alcance, em termos de realidade, das suas decisões.
2. A clássica preocupação em obviar ao periculum in mora (é esta fórmula singularmente expressiva) esvaiu-se por completo.
Realmente, a decisão do Tribunal Arbitral foi exarada em 27.10.2005. Mas só em 6.1.2006 veio a requerente, sob custódia do art. 90.°, 2, do aludido Código e ainda dos arts. 83.°, 1, al. a) e 406.° e segg., pedir o Tribunal Judicial de Mafra a apreensão judicial dos bens arrestados, requerendo a presença da GNR para garantir a execução da diligência. Pediu ainda que fosse oficiado ao Banco de Portugal, “com vista ao arresto das contas bancárias”.
Quer dizer:
O que foi pedido ao Tribunal Judicial de Mafra não passou de uma réprise do que já tinha sido requerido — mais de dois meses antes — ao Tribunal Arbitral.
Este, tão lestamente quis actuar que o fez “sem audiência da parte contrária”(2).
Tudo faz crer que nessa altura já o requerido fora notificado nos termos dos arts. 385.°, 6(3) e 388.° do Cód. Proc. Civil.
Ou seja, o secretismo para nada serviu.
3. A opção feita pela requerente do arresto (e admitida pelo Tribunal Arbitral) foi, assim, uma opção errada. Tivesse o arresto sido directamente requerido no Tribunal Judicial e a sua finalidade ter-se-ia consumado muito tempo antes.
4. Silencia a nossa LAV sobre a competência cautelar dos tribunais arbitrais. Ainda aí segue o modelo francês.
Mas a opinião dominante propende para o reconhecimento de poderes inerentes ou implícitos, pelo que o tribunal pode decretar medidas cautelares(4).
5. Dispõe o art. 1696.°, 1, do Código Judiciário belga que o tribunal arbitral pode ordenar medidas provisórias e conservatórias a requerimento de uma das partes, à excepção do arresto.
É a única lei de arbitragem a declarar expressamente esta proibição(5).
Afigura-se, no entanto, que, designadamente no caso português, ao tribunal arbitral não deve ser reconhecida competência para decretar um arresto(6).
Bruno Oppetit caracteriza com nitidez a distinção, neste aspecto, entre a justiça estatal e a justiça arbitral. Releva a 1.a de um serviço público, dotado de meios humanos e coercivos para a pôr em acto:
“a ordem judiciária”. A 2.a não exprime uma função de soberania.
Disto resulta que o juiz arbitral não dispõe de imperium.
“Il ne peut ordonner des mesures conservatoires ou de sauvegarde, telle que des saisies”(7).
O que está efectivamente em causa é a dualidade jurisdictio-imperium. Para Charles Jarrosson traduz-se o imperium no conjunto de prerrogativas pertencentes ao Estado, decorrentes da soberania. É do imperium que despontam “les pouvoirs de commandement et de contrainte, et qui se concrétise de diverses manières”, sendo uma delas a utilização efectiva da força pública(8).
Foi a questão retomada designadamente por Pierre Mayer. As decisões conservatórias destinadas a tornar indisponíveis certos bens carecem, para ser eficazes, da intervenção de uma autoridade, do recurso à força pública. E conclui Pierre Mayer: “Assim, em direito francês, um árbitro não será competente para autorizar um arresto”(9).
Não será, pois, por acaso que passa como moeda corrente a ideia de que os tribunais arbitrais são desprovidos de competência para decretar medidas antecipatórias e conservatórias e, portanto, in casu, o arresto(10).
6. Dá-se, para mais, a circunstância de no tocante ao arresto não ser dissociável uma fase declarativa e uma fase executiva. Para Andrea Carlevaris (e não só) nos ordenamentos que demarcam as duas fases a execução do arresto ou medida afim cabe sem hesitação ao tribunal judicial. Mas a fase da pronúncia (sic) poderá ser atribuível ao tribunal arbitral(11).
Não cremos, entretanto, que seja assim. E pensamos que o nosso ordenamento não comporta aquele faseamento.
Curiosamente, no Acórdão em análise (que nos parece ter sido vítima e não agente dos lapsos que compendia) regista-se que “providências como o arresto se revestem da particularidade de o seu cumprimento integrar a própria tramitação do procedimento”, o que temos como exacto(12).
7. Entretanto, mesmo quando se hipotise o faseamento a conclusão não será alterada. O arresto arbitral correrá sempre o risco de ser desprovido da eficácia necessária. “Primeiro, porque a execução da decisão do árbitro carece da intervenção da autoridade judiciária, o que mostra que o árbitro não é o mais indicado para actuar com urgência. Depois porque o efeito de surpresa é indispensável à eficácia das medidas”(13).
8. Esta busca de surpresa que levou o tribunal arbitral a decretar o arresto sem audiência dos requeridos (art. 408.°, 1, Cód. Proc. Civil) fracassou por completo, como se viu. E o contraditório é um princípio basilar do processo arbitral (art. 16.° LAV) cuja preterição determinará, em princípio, a anulação do processo (art. 27.°, 1, al. c). A questão, quer em tese, quer na sua aplicação a diversos sistemas, é delongadamente encarada por Andrea Carlevaris(14).
9. Em conclusão:
9.1. O Tribunal Arbitral ordenou o arresto de bens móveis e imóveis. E foi mais além. Atribuiu “competência” à requerente para solicitar às autoridades policiais ou de investigação (sic) ou aos Tribunais Judiciais das comarcas onde se revelasse necessário proceder à realização de quaisquer diligências o auxílio da força pública.
9.2. Ora, é sabido que diferentemente do juiz estatal que é um órgão do Estado (um órgão de soberania) “E QUE PODE SOLICITAR A COOPERAÇÃO DA FORÇA PÚBLICA PARA FAZER EXECUTAR AS SUAS DECISÕES, O ÁRBITRO, PESSOA PRIVADA, NÃO PODE PEDIR ESSA COOPERAÇÃO” (Mohammad–Ali Bahmaei, ob. cit., p. 22).
9.3. Como corolário desta falta de imperium, não poderá o árbitro impor medidas cautelares que “sont en fait l’expression d’un pouvoir de contrainte dont l’Etat seul a le monopole. C’est le cas des mesures de saisie” (ob. cit. p. 23). Esta noção passa como moeda corrente em todos os sistemas jurídicos europeus, excepto, em certa medida, na Alemanha (cfr., no entanto, o que sobre esta solução doutrinária diz Paula Costa e Silva, est. cit., maxime pp. 217 e segg).
9.4. Decretou o Tribunal Arbitral o arresto sem audiência da parte contrária. Agiu em conformidade com a regra do Cód. Proc. Civil, mas afrontou — e para mais “ingloriamente” — o princípio do contraditório.
9.5. No caso de um arresto, a intervenção do Tribunal Judicial, logo no início da providência, seria indispensável e teria obviado a todas as distorsões reveladas no Acórdão (embora a este não atribuíveis). Em geral a intervenção do juiz estatal no foro cautelar arbitral tem um carácter subsidiário. Mas no tocante à aplicação de medidas conservatórias (assim, o arresto) é indispensável.
Aliás a competência do juiz limita-se à esfera cautelar, não implicando qualquer intromissão quanto ao fundo do litígio (Poudret – Besson, ob. cit., p. 556).
9.6. Nenhum risco haveria assim de o Tribunal Arbitral ficar amputado da sua competência decisória.
E uma vez decretada a sentença arbitral ela é por regra aceite e cumprida. Quando muito um dos árbitros poderá manifestar quanto a ela a sua inconformidade intelectual, traduzida numa opinião dissidente. E esta, que parecia estar em declarada queda pelo menos nas leis mais modernas,(15) “reapareceu” agora na lei da República da Sérvia de 25.5.2006(16).
Notas:
(1) Decisão e não sentença. A esta designação apenas poderá corresponder a decisão final. Cfr. art. 27.°, 1 e 3, LAV.
(2) Como se pasa em processo civil (art. 408.°, 1). Só que o decretamento da providência inaudita altera parte ou ex parte tem, como regra, uma evidente especificidade no domínio da arbitragem, como adiante se justificará.
(3) E não, como por lapso evidentemente material se escreve no Acórdão,
art. 385.°, 5.
(4) Em sentido contrário, ou seja, no de que o tribunal arbitral “só terá competência para decretar tais medidas quando as partes lhe conferirem expressamente esse poder” cfr. Bento Soares — Moura Ramos, Contratos Internacionais…, Almedina, 1986, p. 382. No sentido afirmativo v. Mário Raposo, Tribunais Arbitrais e Medidas Cautelares, em Estudos sobre Arbitragem Comercial…, Almedina, 2006, pp. 37-49. Autores há que fazem coincidir, num ponto de vista doutrinal, os poderes inerentes e os poderes implícitos. Mas não será assim. Os poderes inerentes radicam na própria função arbitral, tal como a lei a configura. Os poderes implícitos promanam da vontade tácita das partes (Craig-Park-Paulsson, International Chamber of Commerce Arbitration, 3.a ed., Oceana, Nova Iorque, 2000, pp. 460 — 461).
(5) Isto, obviamente, quanto aos sistemas legislativos que, em geral, admitem a aplicação, pelos tribunais arbitrais, de medidas cautelares. Sistemas há em que estas lhes são expressamente vedadas. Assim a Concordata Suiça de 1969, operante no direito interno (art. 26.°, 1) e o Cód. Proc. Civil italiano, mesmo depois da substancial reforma de 2.2.2006 e contra a opinião unânime da melhor doutrina (art. 818.°). À genérica proibição do sistema italiano apenas se continua a abrir “la modesta eccezione” do Dec. legisl. 5/2003, pelo qual o árbitro pode suspender a eficácia de deliberações sociais (Sérgio La China, L’Arbitrato. Il sistema e l’esperienza, 2.a ed., Giuffrè, 2004, p. 112 e, mais detidamente, pp. 243 e segg).
(6) Mario Raposo, ob. cit., p. 40.
(7) Bruno Oppetit, Justice étatique et Justice arbitrale, em Études Pierre Bellet, Litec, 1991, pp. 415 e segg., maxime p. 423.
(8) Jarrosson, Réflexions sur l’imperium, em Études Pierre Bellet, pp. 245 e segg, maxime p. 278.
(9) Pierre Mayer, Imperium de l’arbitre et mesures provisoires, em Études Jean-François Poudret, Fac. de Direito de Lausana, 1999, pp. 437 e segg., maxime p. 452. Discordando, ou precisando, Thomas Clay (L’Arbitre, Dalloz, 2001, p. 96) caracteriza o imperium como o “poder de ordenar”, que não se confunde com “o auxílio da força pública, que é ulterior e acessório”. A não existência de imperium tem apenas como consequência privá-lo do poder de autoridade. Fica-lhe a potestas judicandi. Entretanto, esta posição nuancée, embora provinda de um qualificado especialista, em nada altera os dados efectivos do problema.
(10) Cfr., por ex., Luciana Laudisa, Arbitrato internationale e tutela cautelare, na Riv. dell’ Arbitrato, 2005, pp. 455-474, maxime p. 458. Observe-se que a generalidade dos autores alemães considera que o § 1041, 1, ZPO confere aos árbitros o poder de decretar um arresto (dinglicher Arrest). Assim, Poudret-Besson, Droit Comparé de l’Arbitrage International, Bruylant, L.G.D.J., Schulthess, 2002, pp. 552 — 553. Entende-se, no entanto, que a atribuição (doutrinal) desta competência vale apenas para o dinglicher
Arrest e não para o personlicher Arrest, que é uma medida de carácter pessoal “muito específica e pouco usada”. Em A arbitrabilidade de medidas cautelares, na R.O.A., 2003,
pp. 211-235, Paula Costa e Silva alude ao caso alemão e faz uma análise aprofundada (até então inédita entre nós) da competência cautelar arbitral.
(11) Le tutela cautelare nell’arbitrato internazionale, Cedam, 2006, p. 439.
(12) Cita o Acórdão a 8.a ed. do Curso de Processo de Execução de Fernando Amâncio Ferreira. Na 9.a ed., de 2006, mantem-se a mesma posição (p. 470). Não será um critério pacífico entre os autores mas por ele optamos.
(13) (Mohammad – Ali Bahmaei, L’intervention du juge étatique des mesures provisoires et conservatoires en présence d’une convention d’arbitrage, L.G.D.J., 2002,
p. 39.
(14) ob. cit., pp. 342 — 378. A conclusão revela, sobretudo, as hesitações com que o reconhecimento do poder cautelar dos árbitros ex parte é encarado — e a sua escassa utilização. Significativamente, uma das mais recentes leis de arbitragem comercial (a austríaca, de 13.1.2006) impõe expressamente ao tribunal arbitral a audição do requerido antes de ordenar o arresto. Assim o art. 593.°, 1, do Cód. Proc. Civil: “(…) o tribunal arbitral parte, a requerimento de uma das partes, pode decretar medidas (cautelares) em relação à outra parte, depois de a ter ouvido”. Lembra Andreas Reiner, La réforme du droit autrichien de l’arbitrage, na Revue de l’Arbitrage, 2006, pp. 401-427, maxime p. 416: “as medidas ex parte são expressamente excluídas”. O problema era já encarado na doutrina. Por ex., Vittorio Pozzi, Arbitrato e tutela cautelare, profili comparististici, na Riv. dell’Arbitrato, 2005, pp. 17 – 44, maxime p. 30. Cfr., porém, mais alargadamente, Poudret — Besson, ob. cit., p. 567 e nota 451. Sobre o recente direito austríaco pondera Christian Auschauer, Il nuovo diritto dell’arbitrato austríaco, na cit. Rivista, 2006, pp. 237-264, maxime 249: “se la misura cautelare deve essere emanata ed eseguita inaudita altera parte bisogna sempre rivolgersi al giudice statale”.
(15) Mário Raposo, em A Sentença Arbitral, em Estudos cits, pp. 18 e segg.
(16) Art. 52.° (“O árbitro que não estiver de acordo com a decisão ou com a motivação da sentença pode emitir por escrito uma opinião dissidente, que é notificada às partes com a sentença,- se o arbitro o solicitar”).