Parecer de 25 de Novembro de 2005 - Segredo Profissional


A ACTIVIDADE ADMINISTRATIVA INFORMAL
DE COOPERAÇÃO

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
de 9 de Novembro de 2006 (Proc. n.° 167/05)

Pelo Dr. António Cadilha

SUMÁRIO:
I — Podendo o direito de propriedade comportar limitações, restrições ou condicionamentos no domínio do urbanismo e do ordenamento do território, o jus aedificandi não faz parte do acervo de direitos constitucionalmente reconhecidos ao proprietário, sendo antes o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico urbanístico pelo qual é modelado;
II—Assim, se particular e Câmara Municipal acertaram a abertura de uma estrada no terreno do primeiro, não podia a segunda vincular-se à prática de acto administrativo futuro de deferimento de pedido de loteamento para o terreno confinante à estrada independentemente do ordenamento jurídico em vigor na altura em que viesse a tomar a decisão; III—Neste campo, portanto, de um acordo desse tipo não derivam obrigações contratuais por não ser discricionário o poder administrativo em matéria de urbanismo, construção e planeamento do território.

Acordam na 1.ª Subsecção da 1.ª Secção do STA

I — Relatório

A… e B…, que para a acção foram habilitados por despacho de fls. 164 em virtude do falecimento da A., recorrem da sentença do TAC de Coimbra que julgou improcedente a acção para reconhecimento de direito que os seus pais … e … ali intentaram contra a Câmara Municipal de Ourém.

Nas alegações, apresentaram as seguintes conclusões:
«A — A R., através da deliberação de 21/09/1992, criou uma situação jurídica em proveito dos AA, constituindo-lhes os inerentes direitos e gerando interesses que, desta sorte, passaram a usufruir da tutela do Direito.

B — Este acto deliberatório constituiu o corolário de um processo negocial e a inequívoca manifestação de vontade da Administração.

C — E foi precedido, através dos serviços técnicos e do colégio de vereadores da R, de uma análise que serviu para verificar e ponderar (como não podia deixar de o ser) da compatibilidade da pretensão do primitivo A com a lei, com os regulamentos e com a própria realidade física do seu objecto.

D — Estes direitos, para serem concretizados, não dispensam os seus titulares de formularem uma concreta pretensão construtiva, ao abrigo da legislação urbanística em vigor à data em que for apresentada.

E — Mas com o recurso ao presente meio jurisdicional, pretendem os AA, tão só, que seja a R compelida a reconhecer os direitos de construção de que os AA entendem ser titulares por lhes terem sido conferidos pela própria R, no exercício das suas competências c depois de ter apreciado a compatibilidade da pretensão do primitivo A com a lei, com os regulamentos e com a própria realidade física do seu objecto.

F — Aliás, esse direito, surge reconhecido na própria sentença recorrida, que também reconhece que caso a sua objectivação não seja possível, assiste aos AA o direito a obterem uma outra contrapartida».

*

Alegou, igualmente a Câmara Municipal de Ourém, formulando as seguintes conclusões:
«a) A decisão não padece de qualquer vício e deve ser mantida.
b) A Câmara não pode ter outra deliberação sem violar o Plano de Urbanização ou o Plano Director Municipal.
c) A violação destes instrumentos urbanísticos gera a nulidade da deliberação.
e) Assim não pode o tribunal substituir-se à Câmara».

*

O digno Magistrado do MP opinou no sentido do improvimento do recurso.

*

Cumpre decidir.

***

II — Os Factos

A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:

«1. — O A. … e sua mulher …, são proprietários de um prédio rústico, sito no lugar de Pregueira Lomba da Égua, inscrito na matriz predial da freguesia de Fátima, sob o art. 22 781 e descrito na CRP de Ourém, sob o art. 02382/920914.

2 — Na sequência de contactos entre AA e Ré, formalizados pela carta de fls. 15 dos autos, por parte daqueles, datada de 21/9/1992, em sessão de 21/9/1992, a Câmara Municipal de Ourém, “…deliberou, por unanimidade, informar o interessado de que concorda com o pedido, devendo, todavia, serem mantidos os afastamentos previstos nas alíneas A) e B) do número dois da Informação” 93/92, sendo que esta refere que “Conforme discutido e acordado em reunião de 92-08-31, os termos de ocupação do terreno do Sr. …, com vista à realização da Estrada Municipal Ourém-Fátima, por Alvega, deverão ser os seguintes:

1. Tipo de construção—O Plano de Urbanização de Fátima em aprovação prevê, em quarteirões onde já existia esta tipologia, 4 (quatro) pisos em habitação plurifamiliar (prédio urbano), o que se verifica na zona.
2. Implantação—distâncias—A implantação deverá obedecer ao previsto no PU em aprovação com a condição de serem respeitadas as seguintes condições:
a) 5 (cinco)m para estacionamento à face da nova estrada;
b) 1,5m para passeio;
c) Índice de ocupação—previstos no PU em aprovação.
3. Infra-estruturas—A construção da Estrada Municipal é a infra-estrutura em causa pelo que mais nenhuma outra está considerada. Sugerimos que todas as infra-estruturas sejam analisadas caso a caso, conforme é usual, aquando da apresentação dos respectivos projectos de construção.

3 — Em relação ao prédio, dito em 1, em 23/08/2000, os AA requereram aprovação de loteamento para aquele prédio, que deu origem ao Proc. 3 037/00 (fls. 187).

4 — Por deliberação de 31/10/2000, a CM de Ourém decidiu manter anterior decisão de 25/7/2000, pela qual a apreciação do processo ficava suspensa até aprovação da revisão do Plano Urbanização de Fátima (fls. 188/190).

5 — Interposto recurso contencioso da deliberação, referida em 4 — RCA 33/2001—, por douta sentença de 25/5/2002, foi anulada a mesma deliberação (fls. 191).

6 — Nos presentes autos, os AA pretendem que a Ré seja condenada reconhecer-lhes o direito, emergente da deliberação de 21/9/1992, a erigirem no seu prédio construções de quatro pisos (rés do chão mais três pisos) em habitação plurifamiliar, implantadas com os seguintes afastamentos:— cinco metros para estacionamento à face da nova estrada; —1,5 metros para passeio».

Nos termos do art. 712.° do CPC aditam-se ainda os seguintes elementos:

7 — No STA, nos autos n.° 1646/03, em 3/02/2005, foi lavrado acórdão de improvimento do recurso jurisdicional interposto da sentença referida no ponto 5 supra (fls. 301/306).

8 — O Plano de Urbanização que vem referido no ponto 2.1 e 2.2 da matéria de facto foi aprovado em 21 de Junho de 2005 (Portaria n.° 633/95).

9 — A deliberação da Câmara de 25/07/2000 (ponto 4 supra) foi praticada no âmbito de anterior processo de loteamento apresentado em 15 de Março de 1999 pelos interessados e a que tinha sido dado o n.° 1/99 (cf. fls. 289 a 294).

10 — Em 14/06/2004 a Câmara, relativamente ao mesmo prédio referido em 1., deliberou deferir o projecto de arquitectura —agora apresentado pelos filhos dos primitivos AA— com vista à construção de um edifício destinado a habitação, comércio, serviços e estabelecimento de hospedagem no pedido de licenciamento a que fora dado o n.° 2444/02 (fls. 286 e 313, 320, 332/335).

***

III — O Direito

A sentença recorrida considerou que, independentemente da deliberação de 21/09/2002, os AA, para levarem a cabo com sucesso uma operação de loteamento, deveriam acatar o disposto nos arts. 9.° e 10.° do DL n.° 555/99, de 16/12. Neste sentido, diz, o acordo emergente de tal deliberação, por si só, não poderia conferir o direito de que se arrogam na acção, «ainda que a mesma lhes confira, em contrapartida com a cedência de uma parcela de terreno para construção de uma estrada municipal, determinado direito, que contudo tem de ser objectivado de acordo com os processos legais previstos para as operações de loteamento e licenciamento de obras particulares, ou, eventualmente, se tal não for possível, obter uma outra contrapartida» (sic).

Estes os fundamentos essenciais que levaram à improcedência da acção.
Pensamos que o tema nuclear do recurso passa, de permeio, pela análise de algumas questões essenciais.
Uma delas tem que ver com o direito de propriedade e com o ius edificandi que lhe anda associado.

Das palavras dos recorrentes depreende-se que se arrogam titulares de um direito de edificar na sequência da deliberação de 21/09/92 e que, na sua perspectiva, constitui o corolário de um processo negocial em que a vontade da Câmara se teria tornado inequívoca e manifesta.

E, portanto, constituído desse modo o direito — que agora dizem ser-lhes negado — a acção teria por objectivo compelir a Câmara a reconhecê-lo na medida exacta do compromisso assumido.

Em primeiro lugar, importa estudar muito bem a referida deliberação. Constituirá um contrato? Dela resultarão verdadeiras obrigações contratuais? Recordemos que os então AA deram o seu «acordo» (fls. 15) à abertura de uma estrada e que, em contrapartida, a Câmara concordava com o «pedido» daqueles (fls. 18) no sentido de lhes permitir a «construção contínua de uma fila de prédios de rés-do-chão, mais três pisos ao longo de toda a propriedade» (fls. 15), «respeitando os afastamentos previstos nas alí-neas A) e B) do número dois da informação 93/92» (fls. 18).

Como é sabido, em matéria de ordenamento do território os instrumentos jurídicos existentes definem com a precisão e o rigor possíveis os limites da intervenção humana. Há a esse nível um universo de normas e regras que disciplinam a acção do homem nos mais variados aspectos, em particular no que respeita à gestão e utilização do espaço no âmbito da actividade construtiva.

Costuma dizer-se que, nesse plano, a vinculação constitui a principal parcela dos poderes administrativos, reservando-se à discricionariedade um papel pouco mais que residual.

Se o particular quer construir no seu terreno, o seu interesse legítimo só se tornará direito após uma análise feita com sucesso pelos poderes públicos da conformação da sua pretensão aos mecanismos legais e regulamentares em vigor. O licenciamento assume neste contexto o reconhecimento administrativo da adequação da pretensão à ordem legal vigente.

Por conseguinte, a faculdade de construir apresenta-se como o resultado de uma concessão jurídico-pública em face dos planos urbanísticos. É este o sentido de um aresto deste tribunal sobre o tema relacionado com o ius edificandi, a que totalmente aderimos, e de que transcrevemos o seguinte trecho: «No que concerne à vertente relacionada com a hipotética protecção constitucional considera-se que não se trata de direito que se encontre abrangido pela tutela, fundamentalmente subjectiva, do direito de propriedade privada, tal como acolhido no artigo 62.° da CRP, não se entendendo, por isso, que o direito de construir se apresente, à luz do texto constitucional, como parte integrante do direito fundamental de propriedade privada. (…) entendemos que se trata aqui de um direito de natureza jurídico-pública, não existindo um direito originário à construção. Cfr., neste sentido, Rogério Soares, in “Direito Administrativo”, a págs. 116-117.

O “jus aedificandi” não é, por isso, uma faculdade ínsita no conteúdo prévio e substancial do direito de propriedade, podendo dizer-se que a realidade constitucional do direito de propriedade em matéria urbanística, de direito de construção, é juspublicisticamente condicionável e regulável. Vide, neste sentido, Osvaldo Gomes, in “Plano Director Municipal”, a págs. 197-198.

Esta é, também, a posição de Alves Correia, in “O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade” e de Carlos Ferreira de Almeida, in “Direito Económico”, II Parte, 1979, a págs. 455-457.

O Tribunal Constitucional tem, também, defendido a tese antes enunciada, como se pode constatar dos seus Acs. n.os 115/88, in DR, II Série, de 5-9-88, n.° 131/88, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 48, Dezembro de 1988, a págs. 895 e segts., n.° 52/90, in DR, de 2-4-92, n.° 329/99/T, de 2-6-99, in DR, II Série, de 20-7-99 e n.° 517/99/T, de 22-9-99, in DR, II Série, de 11-11-99. Esta tem sido, aliás, a posição seguida por este STA.

Cfr., entre outros, os Acs. de 18-6-98 — Rec. 41653, de 13-1-00 —Rec. 44287, de 15-10-98 — Rec. 42683, de 4-4-00 — Rec. 42438 e de 12-12-00 — Rec. 46738 (…) propendemos para uma perspectiva juspublicista desta questão, partindo-se, essencialmente, do texto constitucional, para se sustentar que o “jus aedificandi” não faz parte do direito constitucional de propriedade, tal como consignado no art. 62.° da CRP.

De facto, a aptidão construtiva dos solos urbanos e não urbanos não está desligada do que em matéria de planeamento e ordenamento do território está previsto na CRP (cfr., em especial, os art. 65.° e 66.°).

O direito de construir não pode, consequentemente, ser visto apenas numa perspectiva que tenha unicamente em conta os interesses privados, impondo-se a consideração de outros interesses constitucionalmente condicionantes do direito de propriedade acolhido no art. 62.° da CRP. É que, tal como decorre do preceito acabado de citar, o direito de propriedade é para ser gozado “nos termos da Constituição”.

A consagração constitucional do direito de propriedade não obsta à existência de limites a este direito, resultantes, de resto, de outros direitos e princípios constitucionalmente consagrados. Cfr., neste sentido, em especial, Luís Cabral de Moncada, in “Direito Económico”, 2.ª edição, a págs. 152, G. Canotilho e Vital Moreira, in “Fundamentos da Constituição”, 1991, a págs. 164. Pode, assim, concluir-se que o uso e fruição, pelos respectivos titulares, do direito de propriedade não é livre e absoluto, antes se apresentando como juspublicisticamente enquadrado e condicionado. Ou, noutra formulação, podemos dizer não ser livre o modo de uso e fruição do direito de propriedade, na vertente relacionado com o direito de construir, dado que este direito está dependente de uma permissão administrativa prévia, que se destina, em larga medida, a aferir da compatibilidade da pretensão de construir com os interesses e necessidades públicas legalmente protegidas neste domínio, como é o caso, por exemplo, da REN.

A edificabilidade potencial dos terrenos terá, assim, de se concretizar legalmente através da emissão dos competentes alvarás, na sequência dos pertinentes pedidos de licenciamento». (Ac. do STA de 10/10/2002, Proc. n.° 0912/02).

Em suma, o direito de propriedade não é um direito absoluto, podendo comportar limitações, restrições ou condicionamentos, particularmente importantes no domínio do urbanismo e do ordenamento do território, em que o interesse da comunidade tem que sobrelevar ao do indivíduo, não fazendo o jus aedificandi parte do acervo de direitos constitucionalmente reconhecidos ao proprietário, antes sendo o resultado de uma atribuição jurídico-pública, decorrente do ordenamento jurídico urbanístico pelo qual é modelado (apud, Ac. do STA de 3/12/2002, Proc. n.° 047859; neste mesmo sentido: ac. de 11/11/2004, Proc. n.° 0873/03; e de 3/3/2004, Proc. n.° 048296, entre outros). Tudo isto para dizer, enfim, que a pretensão de construir por banda dos recorrentes não poderia, em princípio, passar ao lado do crivo juspublicístico em vigor e sem a prévia definição do direito através de um acto administrativo. Mas também é certo que no nosso ordenamento jurídico, o artigo 179.° do Código do Procedimento Administrativo acolhe o princípio da autonomia pública contratual da Administração, estatuindo que «os órgãos administrativos, na prossecução das atribuições da pessoa colectiva em que se integram, podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer».

Isto significa que, como é sublinhado em recente parecer da PGR, «… a Administração Pública pode «usar a forma do contrato para produzir o efeito jurídico de um acto administrativo (contratos decisórios que substituem actos administrativos), assim como celebrar contratos em que se compromete a praticar ou a não praticar um acto administrativo com um certo conteúdo (contratos obrigacionais)» […], apenas com as limitações decorrentes da lei ou da natureza das relações a estabelecer[…]. E continua o dito parecer: «O princípio da legalidade administrativa reclama aqui uma exigência de conformidade do contrato com a lei, já que a Administração não pode servir-se dos contratos administrativos para se subtrair ao cumprimento da lei ou para produzir efeitos de direito administrativo que, quando conformados em acto administrativo, lhe estariam vedados.

Mas o princípio da conformidade do conteúdo do contrato à lei, ou seja, a exigência de que o conteúdo inserido nas cláusulas contratuais encontre correspondência numa norma legal, não pode abranger todo o contrato [sic]; se for esse o caso, e, portanto, se à Administração não for reconhecido pelo legislador um poder próprio para desenhar certos aspectos do concreto conteúdo de uma relação jurídica (poder discricionário), não há espaço para negociação, e o contrato não é aí, em princípio, possível. A Administração pode, por conseguinte, usar o contrato administrativo no âmbito das relações jurídicas administrativas também conformáveis por acto administrativo quando for titular de um poder discricionário, em cujo exercício pode estipular o designado conteúdo administrativo extra-típico do contrato.» […]

Por conseguinte, esse tipo de vinculação contratual é possível no quadro dos pressupostos da discricionariedade da decisão.

Sintetizando, dir-se-á que a permissibilidade geral da celebração de contratos administrativos obrigacionais mediante os quais a Administração Pública se compromete juridicamente a praticar ou a não praticar um acto administrativo com certo conteúdo apenas pode operar em espaços em que existam poderes discricionários e, como salienta SÉRVULO CORREIA [144], no contexto de um exercício antecipado do poder discricionário, que não se confunde com uma disposição do poder discricionário, de onde decorre que a Administração só pode assumir essa vinculação com efeitos externos, quando os pressupostos abstractos e concretos do acto que se obriga a praticar ou a não praticar estejam já verificados» (Parecer da PGR n.° P001152003, de 23/09/2004).

E no que respeita, concretamente, ao domínio de construção e urbanismo, reflecte ainda o parecer que vimos citando:

«… deve sublinhar-se que a regra geral da admissibilidade jurídica do contrato administrativo, como forma típica da actividade administrativa pública, suscita alguma perplexidade no âmbito do ordenamento do território e do urbanismo [146], domínio jurídico que prima, como se evidenciou supra, pela densidade e detalhe da regulamentação aplicável.

O certo é que o recurso a formas de concertação de interesses através da celebração de contratos entre a Administração e os particulares está expressamente previsto na Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (artigos 5.°, alínea h), 16.°, n.° 2).

Também o Decreto-Lei n.° 380/99, de 22 de Setembro, que define o regime de coordenação dos âmbitos nacional, regional e municipal do sistema de planificação territorial, o regime geral de uso do solo e a disciplina jurídica do procedimento de elaboração, aprovação, execução e avaliação dos instrumentos de gestão territorial, faz referência à contratualização entre a Administração municipal e os particulares a propósito da execução dos instrumentos de gestão territorial (artigos 123.°, n.° 2, alíneas a) e b), e 131.°, n.° 8).

A questão fundamental é a de saber como conciliar a contratualização do ordenamento do território e do urbanismo com o princípio da legalidade, sendo que a Administração Pública não pode renunciar aos seus poderes de planeamento por via contratual—«indisponibilidade, por via contratual, do poder de planeamento» [147] —, afirmando-se a este propósito que o poder de planeamento nunca pode estar condicionado para o futuro através da celebração de contratos administrativos e deve exercitar-se conforme as exigências do interesse público com independência daqueles».

Quer dizer, em tese, não está afastada a possibilidade abstracta de se assumir obrigações contratuais entre Câmaras Municipais e particulares, nomeadamente com vista à emissão de um acto administrativo com um determinado objecto.

Todavia, essa possibilidade restringe-se a dois casos:

a) Àqueles em que a Administração dispõe de um poder discricionário e apenas quando os pressupostos (abstractos e concretos) do acto que ela se obriga a praticar, ou a não praticar, estão já verificados (neste sentido, Pedro Gonçalves, “O Contrato Administrativo”, pág. 98) — o que, manifestamente, não é o caso vertente, uma vez que o licenciamento de construções e a ocupação do solo traduzem o exercício de poderes vinculados;

b) Ou àqueles outros em que a lei prevê que as obras de urbanização sejam realizadas por contrato (art. 25.° do D-L n.° 448/91, de 29.11), sendo isso sinal de que lhe não repugna que, após a prática do acto administrativo de licenciamento, a execução das infra-estruturas seja regulada por um título obrigacional donde constem as prestações a que a Administração e o empreendedor se vinculam (sobre caso em que a Câmara se comprometeu com o particular a realizar obras de urbanização: Ac. do STA de 16/06/2004, Proc. n.° 01126/03).

Ora, se à vontade da Câmara de abrir uma estrada correspondeu da parte do proprietário do terreno uma vontade de autorizar a abertura, nesse aspecto houve um acertamento. Limitado o consenso a esse aspecto, não se vê qualquer entrave: a Câmara solicitou; o particular, no uso dos seus poderes de proprietário sobre a terra, acedeu.

Mas quanto à 2.ª parte, e pelo que acima se disse, é assaz problemática a questão.
Com efeito, não foi formalmente celebrado nenhum “protocolo”, “acordo” ou “convénio”. E mesmo que fosse, estaríamos aí, em princípio, perante aquilo a que se designa «actividade administrativa informal», caracterizada por actuação informal de cooperação dominada por um contacto entre a Administração e os particulares ou entre entidades públicas e culminada num “acordo” que do contrato se distingue, precisamente, pela ausência de “vinculatividade ou obrigatoriedade jurídica” (Parecer da PGR).

É verdade que, através da tarefa de interpretação da vontade, lá vamos descobrindo, de vez em quando em certos “acordos” mais do que simples actividade informal. Tudo dependerá das conclusões extraídas da análise da estrutura do documento, do objecto da negociação, das obrigações expressas para cada uma das partes, da exorbitância dos poderes da parte pública, da assunção das responsabilidades decorrentes da celebração e do incumprimento, etc, etc. Nalgumas dessas hipóteses haverá, porventura, um verdadeiro contrato que, frequentemente, terá natureza administrativa.

Sucede que na situação em apreço não houve qualquer documento escrito a selar a “negociação”.
Os particulares consentiram na utilização do seu terreno para a construção da estrada com esta condição: loteamento com vista à construção em banda contínua de prédios de 4 pisos ao longo de toda a propriedade.

O que fez a Câmara?
A Câmara limitou-se a concordar com a exigência através de uma deliberação, isto é, através de um acto administrativo. Só que este acto não acolheu integralmente a exigência dos particulares. Disse que concordava com o pedido, porque o Plano de Urbanização em aprovação previa para a zona a construção de prédios de quatro pisos (rés-do-chão e três andares) devendo, todavia, ser mantidos os afastamentos referidos nas alíneas a) e b) do n.° 2 da Informação 93/92.

Ora, este n.° 2 dispõe que: «A implantação deverá obedecer ao previsto no PU em aprovação com a condição de serem respeitadas as seguintes condições: a) 5 (cinco) m para estacionamento à face da nova estrada; 1,5 m para passeio…». Ou seja, em lado nenhum a Câmara assumiu a obrigação de permitir o loteamento exactamente como o pretendiam os interessados naquele momento, antes se comprometeu a autorizá-lo no futuro de acordo com as estipulações do Plano de Urbanização que se encontrava em fase de aprovação, o que só se verificaria em Junho de 1995 (ponto 8 da matéria de facto). E não o fez porque, sob pena de nulidade (Ac. do STA de 21/04/2005, Proc. n.° 01671/02), a pretensão de construir por banda dos recorrentes não poderia, em princípio, passar ao lado do crivo juspublicístico em vigor e sem a prévia definição do direito através de um acto administrativo, como acima dissemos.

Portanto, e em conclusão:

1 — Não houve, nem podia haver acordo contratual a respeito do loteamento, já que este não pode ser objecto de estipulações contratuais, mas de acto administrativo unilateral de licenciamento;

2 — A Câmara não assumiu a obrigação de emitir no futuro um acto administrativo com um determinado conteúdo, já que sobre o assunto não dispunha de poderes discricionários, e porque em matéria de licenciamento de construções e de ocupação do solo com operações urbanísticas a actuação administrativa é de natureza vinculada;

3 — Aos particulares foi apenas reconhecida a edificabilidade potencial do seu terreno, mas, ainda assim, sujeita às regras que viessem a ser incluídas no Plano de Urbanização em aprovação e, por conseguinte, só concretizada futuramente através de um pedido de licenciamento;

4 — A tais particulares não lhes foi conferido nenhum direito actual, mas somente uma expectativa legítima, da qual, porém, não poderia resultar em caso algum uma alteração da ordem jurídica estabelecida em matéria do ordenamento do território.

Ora, sendo isto assim, isto é, se a recorrida desde sempre relegou para o Plano de Urbanização (ainda em aprovação em 1992) a apreciação da pretensão dos AA, parece evidente que não poderão obter, pela presente via da acção de reconhecimento de direito, aquilo que só por acto pode ser conferido.

***

IV — Decidindo

Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes.
Taxa de justiça: 400 euros.
Procuradoria: 200 euros.

Lisboa, STA, 18 de Maio de 2006.

Cândido de Pinho (relator) — Azevedo Moreira — Costa Reis.


ANOTAÇÃO

Pelo Dr. António Cadilha

1. Está em causa, no presente caso, uma acção de reconhecimento de direito, através da qual um particular pretendia que lhe fosse reconhecido o direito a levar a efeito uma operação de loteamento urbano num determinado prédio nas condições que foram acordadas, em processo negocial, com uma câmara municipal. Da matéria factual subjacente a tal pretensão, e com interesse, importa sublinhar os seguintes elementos:

i) em Setembro de 1992, a autarquia acordou com o autor da acção, através de contrato não reduzido a escrito, que este cederia uma parcela do seu terreno para construção de uma estrada municipal, tendo como contrapartida a possibilidade de lotear o terreno confinante à estrada para construção de habitações plurifamiliares de 4 pisos (a implantar com afastamento de 5 metros para estacionamento à face da nova estrada e 1,5 metros para passeio);

ii) em 21 de Setembro de 1992, a câmara municipal proferiu uma deliberação concordando com a pretensão do particular ao loteamento, mas determinando que a sua “implantação deveria obedecer ao previsto no plano de urbanização em aprovação”;

iii) tendo o referido plano sido aprovado em Junho de 1995, foi requerido o competente pedido de loteamento para o prédio em causa, em Agosto de 2000, o qual nunca veio a ser aprovado.

Neste condicionalismo, o acórdão em anotação entendeu, em resumo, não ser de reconhecer o direito ao loteamento por parte do autor, por este “não poder passar ao lado do crivo juspublicístico em vigor em matéria de ordenamento do território e da prévia definição através de um acto administrativo”. Quanto ao processo negocial que decorreu entre as partes, considerou o Tribunal que, não tendo sido formalmente celebrado nenhum “protocolo”, “acordo” ou “convénio”, estamos perante aquilo a que se designa “actividade administrativa informal”, desprovida de efeitos vinculantes. Acrescentando que de um acordo deste tipo “nunca poderiam derivar obrigações contratuais por não ser discricionário o poder administrativo em matéria de urbanismo, construção e planeamento do território”.

No que respeita à deliberação camarária de 21 de Setembro de 1992, entendeu ainda o aresto que, através dela, ao particular foi apenas reconhecida a “edificabilidade potencial do seu terreno”, mas, ainda assim, sujeita às regras que viessem a ser incluídas no Plano de Urbanização em aprovação e, por conseguinte, só concretizada futuramente através de um pedido de licenciamento.

2. Em primeiro lugar, importa chamar atenção para as duas realidades distintas que, em abstracto, poderiam fundar a vinculação da entidade administrativa ao reconhecimento de uma faculdade de utilização urbanística do terreno ao particular, de acordo com os parâmetros edificativos por este invocados.

Tal vinculação poderia, por um lado, resultar da deliberação camarária de 21 de Setembro de 1992, a qual, representando um compromisso assumido pela Administração, perante um sujeito exterior, de vir a actuar num determinado sentido, poderá caracterizar-se como uma promessa administrativa. Quanto a nós, a categoria dos actos promissórios, enquanto verdadeiros actos administrativos, não representam apenas parâmetros de aferição da invalidade das futuras actuações administrativas que os contrariem, apresentando também uma força positiva própria, que se traduz numa vinculação ao seu cumprimento, decorrente do ordenamento jurídico, e que pode, em certos casos, fundar uma condenação judicial na prática de acto devido (artigo 71.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos). Sucede que, na situação vertente, a referida deliberação remetia as condições concretas de exercício da faculdade urbanística para o disposto no futuro plano de urbanização(1). Inexistem, pois, razões para se considerar verificada uma auto-vinculação administrativa que condicionasse a ulterior intervenção da Câmara a ponto de se poder afirmar que a única decisão juridicamente admissível era o deferimento do pedido de loteamento do particular nas específicas condições a que ele alegava ter direito.

A outra circunstância que poderia alicerçar a pretensão jurídica deduzida em juízo decorre do anterior acordo negociado entre a câmara e o demandante, pelo qual a aprovação de um específico projecto de loteamento surgia como uma contrapartida da cedência de uma parcela de terreno para a construção de uma estrada municipal. É neste acordo, na sua caracterização e efeitos, enquanto figura integrada na actividade informal cooperativa da Administração, que iremos centrar o objecto da presente anotação.

3. Ao longo do séc. XX assistimos a profundas mudanças no que respeita ao posicionamento do Estado perante a sociedade, as quais se traduziram no alargamento do campo da actividade administrativa, que passou a integrar, ao lado da tradicional administração de autoridade, a chamada administração de prestação, administração constitutiva ou administração infra-estrutural. No âmbito da Administração contemporânea prestadora, conformadora e encarregada das mais diversas tarefas económicas, sociais e culturais, tornaram-se evidentes certas circunstâncias em que a actuação da Administração através de instrumentos formais podia revelar se inadequada a priori, ou, então, claudicante a posteriori, do ponto de vista da respectiva execução e dos resultados que se pretende alcançar.

No Direito Administrativo do Ambiente, do Urbanismo, da Economia, dos Valores Mobiliários, do Consumo, a actuação administrativa assume, afinal, formas muito distintas, que passam pelo aparecimento de outros tipos de actos e contratos administrativos, que não os normais e nominados. Nestes domínios, marcados pela complexidade dos interesses a harmonizar, pela rigidez da normação aplicável e pela necessidade de recorrer à colaboração activa dos privados através de instrumentos flexíveis, a antiga Administração de polícia, essencialmente reactiva e sancionatória, conjuga-se com modalidades pactuadas de aplicação de normas jurídicas, com técnicas de informação, persuasão e negociação, que relativizam os esquemas de decisão (legal) pré-fixados(2).

Neste âmbito, surgem, progressivamente, novos e variados meios de intervenção das entidades administrativas, que obrigam a dogmática a proceder à readaptação dos seus conceitos-chave, de modo a compreender um Direito Administrativo funcionalmente diversificado. Uma dessas novas formas de actividade, não reconduzíveis a categorias legais existentes, são as actuações administrativas informais, as quais podem assumir carácter unilateral ou cooperativo.

A actividade informal compreende, em primeira análise, uma diversidade de figuras, que não são reconhecíveis nos quadros tradicionais do Direito Administrativo formal:

i) as negociações prévias e informais nos procedimentos autorizativos e as predeterminações de planos urbanísticos(3);
ii) a substituição de actos de autoridade do tipo injuntivo por simples recomendações ou avisos(4);
iii) os acordos informais de execução de normas jurídicas no Direito do Ambiente;
iv) as informações e comunicações sem carácter vinculante (Auskünfte und Mitteilungen ohne Bindungswirkung)(5), no âmbito do Direito da Economia ou do Urbanismo.

Perante esta heterogeneidade, não é fácil definir, com precisão, critérios materiais que permitam catalogar um novo tipo de actuação administrativa plenamente autónomo. Contudo, é possível enunciar alguns elementos característicos que aproximam os diferentes actos informais, facilitando a sua identificação.

Em primeiro lugar, a informalidade é observável por referência às formas arquetípicas do sistema de actos jurídico-públicos, sendo a actividade administrativa informal toda aquela que não se desenvolve segundo formas jurídicas conhecidas. Neste sentido, actos informais da Administração são aqueles que não estão fixados juridicamente, nem são adoptados segundo um procedimento decisório formalizado.

Informalidade significa também ausência de efeitos jurídicos vinculativos, pontuais ou duradouros. As actuações administrativas informais são manifestações de conhecimento ou desejo provenientes da Administração, com carácter cooperativo, exortativo ou indicativo, insusceptíveis de provocar directamente consequências na realidade jurídica(6). Tal resulta da circunstância de esta actividade se desenvolver em formas de actuação praeter legem, não expressamente previstas em regulações legais que as moldem quanto aos seus pressupostos e consequências jurídicas(7).

Assim, embora contendo um dos elementos típicos do acto administrativo — a individualidade ou concretude —, as actuações informais distinguem-se desta forma típica de actividade administrativa por não serem idóneas a definir, com carácter externo e imperativo, o direito aplicável a uma situação concreta. Noutro plano, a ausência de vinculatividade significa que a informalidade não vale para toda e nem sequer para a maior parte da actuação concertada ou de cooperação da Administração, pois, quando os intervenientes pretendam a criação de efeitos válidos de direito administrativo, a via essencialmente informal e desprendida de enquadramento normativo específico não bastará, sendo necessário recorrer ao contrato administrativo(8).

4. Efectuado este necessário enquadramento teórico, importa agora justificar porque consideramos o acordo, no caso, firmado entre as partes, como susceptível de integrar o âmbito da actividade administrativa informal.

Sabe-se que aquilo que caracteriza as actuações informais cooperativas é a utilização de mecanismos de acção flexíveis e não formalizados, orientados para a procura da aceitação e criação do consenso, mas desprovidos de efeitos vinculativos. É esta falta de obrigatoriedade que constitui o critério para a identificação de tais condutas, delimitando-as face aos contratos administrativos.

Na medida em que inexiste um princípio de taxatividade das formas de acção administrativa — e que, portanto, o facto de um determinado acordo não ter um específico fundamento legal habilitante não é decisivo para o descaracterizar como instrumento fundador de um comprometimento jurídico—há que identificar alguns índices que permitam discernir quando deve ser reconhecida a um determinado acto consensual aptidão para a produção de efeitos jurídico administrativos válidos.

Neste contexto, o elemento que, no acórdão em anotação, foi considerado decisivo para caracterizar o acordo em causa como uma actuação informal e não como um contrato administrativo — o facto de não ter sido formalizado por escrito — não nos parece ser, por si próprio, factor determinante. Na verdade, nada impede que a actividade informal consensual se exteriorize através de um suporte formal. E embora os contratos administrativos tenham, em regra, forma escrita, não existe uma exigência legal nesse sentido.

O que sucede é que, perante a ausência de redução a escrito do acordo, se torna difícil reconstruir a vontade dos contraentes por forma a determinar se houve uma efectiva intenção de estabelecer um compromisso jurídico dotado de coercibilidade. Os restantes factores de ponderação da vinculatividade — como sejam as referências às obrigações das partes e à sua natureza, a estrutura do acto, a previsão de responsabilidades decorrentes do incumprimento —ficam assim dependentes da apresentação de outros elementos de prova que, inexistindo — como sucede na situação vertente —, nos levam a concluir pela falta de juridicidade vinculativa do acordo.

Quanto a nós, na hipótese em consideração, o acordo estabelecido entre as partes configura uma modalidade de actuação informal administrativa em matéria urbanística (que tem sido designada por convenção de planeamento), e que consubstancia num compromisso entre a Administração e um proprietário do solo através do qual aquela concorda em atribuir — no correspondente trâmite de elaboração, modificação ou revisão de um plano urbanístico—determinada faculdade de utilização do solo, e, em contrapartida, este efectua certas cessões de solo ou outras contraprestações a favor do ente público(9). Com efeito, na situação vertente, o particular cedeu à Câmara uma parcela do seu terreno para a construção de uma estrada, com a contrapartida de esta entidade vir a aprovar um determinado projecto de loteamento—sendo que, estando a decorrer um procedimento de aprovação de um plano de urbanização, a confirmação de tal contrapartida estava dependente da previsão de um determinado uso e intensidade de aproveitamento urbanístico do solo para aquele local.

Este tipo de acordo pode reconduzir-se a um instrumento informal de concertação para o intercâmbio de edificabilidade por solo: através dele, a Administração recebe um terreno que necessita para uma determinada finalidade pública, sem ter de recorrer ao mecanismo de expropriação —o qual, para além de sujeito a diferentes vicissitudes e dilações, exige disponibilidade de meios financeiros; e o particular obtém um tratamento urbanístico vantajoso para os seus interesses, que se estima, por ambas as partes, como compensatório da cessão efectuada.

5. Neste quadro, importa registar que a ausência de eficácia vinculante de um acordo como aquele que foi celebrado no caso em apreço — a qual impede o particular de exigir judicialmente o seu cumprimento — radica na informalidade daquela actuação concertada, e não numa impossibilidade absoluta de o poder administrativo em matéria urbanística poder ser objecto de estipulações contratuais.

Na verdade, e em primeiro lugar, não concordamos com a tese sufragada no acórdão em anotação, segundo a qual de um acordo deste tipo “nunca poderiam derivar obrigações contratuais por não ser discricionário o poder administrativo em matéria de urbanismo, construção e planeamento do território”. Desde logo, no domínio da execução dos instrumentos de gestão territorial, são inúmeros os casos em que as normas deixam à Administração um espaço de auto-determinação, designadamente no preenchimento de conceitos jurídicos indeterminados que não depende de meras operações hermenêutico-subsuntivas, mas exige um juízo valorativo, com forte intervenção de elementos de prognose, assente em parâmetros extra-jurídicos(10). Também ao nível da elaboração e modificação dos instrumentos de gestão, a actividade administrativa é caracterizada por uma significativa liberdade de conformação —que se designa por discricionariedade de planeamento (“Planungsermessen”) —, dispondo a entidade planificadora de um alargado poder discricionário na escolha das soluções que considera mais adequadas no contexto do desenvolvimento urbanístico de um determinado território(11).

Concluindo-se que o poder de definir, de modo genérico ou concreto, a ordenação urbanística não tem obrigatoriamente natureza vinculada, e inclui antes espaços de avaliação e decisão da responsabilidade própria da Administração, importa avaliar se a impossibilidade de tal poder ser objecto de estipulações contratuais pode resultar do princípio da indisponibilidade das faculdades administrativas em matéria urbanística. Este princípio, que tem vindo a ser reconhecido pela doutrina portuguesa(12) e surge também invocado, como obiter dictum, no acórdão em anotação, determina que a Administração nunca pode dispor, por via contratual, dos poderes discricionários para planificar o ordenamento urbanístico em geral ou estabelecer a classificação urbanística dos prédios em particular—com a importante consequência de que poderia sempre o ente público desligar-se licitamente dos acordos celebrados neste âmbito(13).

A nosso ver, o princípio da indisponibilidade pode efectivamente servir para delimitar o âmbito da admissibilidade dos convénios urbanísticos que incidam sobre o exercício de faculdades discricionárias, mas não permite exclui-los totalmente. Com efeito, importa considerar que esse princípio não é um fim em si mesmo, mas um mecanismo de garantia que pretende assegurar que a Administração respeite os limites e condições dentro das quais a lei lhe atribuiu o poder discricionário(14). É à luz deste critério geral que se deve determinar o campo de incidência do princípio da indisponibilidade: assim, serão de excluir todos aqueles pactos que prevejam a alienação, cessão ou extinção de um poder urbanístico, ou que subordinem o seu exercício aos interesses de um outro sujeito, conduzindo a Administração a introduzir uma modificação na ordem jurídica independentemente da sua adequação ao interesse público; mas já será muito duvidoso afastar a admissibilidade de acordos que, antecipando o exercício de um poder discricionário para um caso concreto, sirvam para garantir que, através da cooperação de um particular, se reúnem os pressupostos necessários para uma solução jurídica que satisfaça reciprocamente os interesses públicos e privados em presença.

Em qualquer caso, na medida em que este princípio não vem proclamado em qualquer preceito jurídico, antes sendo induzido pela doutrina a partir da origem normativa do poder administrativo e da posição constitucional da Administração (que deve actuar exclusivamente ao serviço do interesse geral), não nos parece que o seu eventual desrespeito possa determinar a invalidade dos acordos em causa, devendo apenas matizar a sua eficácia vinculante (isto mesmo quando as partes tiveram intenção de lhes atribuir efeitos jurídicos obrigatórios).

6. Verifica-se, portanto, que o acordo celebrado no caso em apreço, integrando-se no âmbito da actividade informal cooperativa da Administração, não pode ser declarado como ilícito apenas pelo facto de implicar o exercício antecipado de poderes discricionários em matéria urbanística; unicamente, está intrinsecamente desprovido de vinculatividade jurídica, em termos de permitir que o particular possa exigir judicialmente o seu cumprimento.

Não dispondo o interessado da possibilidade de impor à câmara municipal o reconhecimento da sua faculdade de utilização do solo, parece evidente, contudo, que a sua posição é digna de tutela jurídica, devendo merecer algum tipo de compensação indemnizatória, na medida em que aquele cumpriu a sua parte no acordado e se viu efectivamente privado de uma parcela do terreno de que era proprietário.

Uma possível via de obtenção de tal indemnização será com fundamento em responsabilidade civil da Administração por acto ilícito. Na verdade, a circunstância de, através da actividade informal, se desenvolver entre a Administração e os particulares uma relação jurídica paralela e desprocedimentalizada, da qual não emana uma eficácia jurídica obrigatória, não significa que aquela não possa, no plano dos factos, condicionar e modelar o comportamento daqueles sujeitos. Com efeito, todas as condutas comunicativas geram alguma auto-vinculação, que pode determinar, de forma mais ou menos intensa, o comportamento posterior da Administração. Neste sentido, à luz dos princípios da confiança e da boa-fé (artigo 6.º-A do Código de Procedimento Administrativo)(15), esta deve adoptar uma atitude responsável e ponderada, consciente das expectativas que gera junto dos destinatários da acção informal. Se não o fizer, tal não implica, por si só, a invalidade dos actos formais contrários a actuações informais anteriormente assumidas, nem permite fundar uma acção de condenação para determinação judicial da prática do acto acordado, mas poderá ter consequências ao nível da responsabilização civil da Administração pelos prejuízos causados.

No caso, houve uma iniciativa da Administração que induziu o particular a autorizar a utilização do seu terreno como contrapartida do aproveitamento urbanístico do restante espaço, dentro de certo condicionalismo. Deste modo, constituiu-se na esfera jurídica dos particulares uma situação de confiança justificada numa actuação subsequente da Administração que criasse as condições necessárias para o exercício do direito. Houve, nesses termos, um investimento de confiança, traduzido na cedência da parcela de terreno para fins de interesse público, que assentava na legítima expectativa de obtenção de uma situação jurídica favorável que pudesse revestir um carácter compensatório. Neste contexto, sendo a câmara municipal a entidade primordialmente responsável pela elaboração dos planos de urbanização, parece representar uma inadmissível frustação da confiança a ulterior opção de não prever no ordenamento jurídico urbanístico a referida potencialidade edificativa.

Tal conduta, sendo violadora dos ditames da boa-fé, que salvaguardam os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionam, pode ser geradora de responsabilidade civil da Administração por facto ilícito.

7. Ainda que se entendesse não se encontrarem verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil delitual, parece-nos que, na situação vertente, sempre se poderia recorrer ao instituto subsidiário do enriquecimento sem causa. Esta figura, prevista no artigo 473.º do Código Civil como fonte autónoma de obrigações, pressupõe apenas a verificação de uma deslocação patrimonial para outrem sem um fundamento jurídico legítimo. Ela parece ter aplicação em casos como aquele que aqui nos deparamos, em que um contraente privado cumpriu uma prestação no âmbito de um contrato que — como o Tribunal reconhece — se revela ineficaz(16). Com efeito, nesta situação, o facto de a Administração obter um benefício económico utilizando um bem disponibilizado pelo particular, e não realizar a contrapartida acordada, constitui um manifesto locupletamento injusto à custa do co-contratante.

Neste quadro, e sendo impossível a restituição do objecto da deslocação patrimonial operada, tem o particular direito ao ressarcimento do valor equivalente, nos termos do artigo 479.º do Código Civil.

8. Finalmente, sublinhe-se que o facto de considerarmos que o particular teria fundado direito a uma pretensão indemnizatória, quer seja por via da responsabilidade civil extracontratual, quer seja por aplicação do instituto do enriquecimento sem causa — pretensão que o Tribunal poderia ter reconhecido, no quadro da apreciação, em termos gerais, da questão jurídica suscitada —, não significa que esse direito pudesse ser efectivado no âmbito da presente acção.

Com efeito, constitui obstáculo inultrapassável à emissão de uma pronúncia condenatória, com qualquer dos referidos fundamentos, a circunstância de se ter deduzido, no caso, um pedido de reconhecimento de direito ou interesse legítimo — que corresponde a uma acção de simples apreciação —, e não a pretensão relativa ao ressarcimento de danos (artigo 37.º, n.º 2, alínea f), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) ou à restituição por enriquecimento (artigo 37.º, n.º 2, alínea i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).


Notas:

(1) Ainda que não o fizesse, e na medida em que o acto administrativo é sempre regido pelas normas vigentes à data da sua emissão, devia considerar-se implícita no próprio tipo de obrigação assumida a sua submissão à condição resolutiva de modificação da legislação em termos que tornem ilegal o acto prometido antes da sua emissão. Cfr. SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, p. 753.

(2) Cfr. PIERRE MOOR, Droit Administratif, vol. II, 12.ª ed., 2002, pp. 47 e ss.; PEDRO LOMBA, “Problemas da actividade administrativa informal”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 41, n.º 2 (2000), pp. 822 e ss..

(3) Cfr. PEDRO LOMBA, Problemas cit., p. 858.

(4) Cfr. SUZANA TAVARES DA SILVA, “Actuações urbanísticas informais e medidas de diversão em matéria de urbanismo”, in CEDOUA, III-1, p. 55.

(5) Cfr. WOLFF/BACHOF/STOBER, Verwaltungsrecht, vol. I, 10.ª, 1994, pp. 849 e ss..

(6) Cfr. Cfr. YVES GAUDEMET, “Actions administratives informelles”, in Revue Internationale de Droit Comparé, Paris, a. 46, n.º 2 (Avril-Juin 1994), p. 648; PEDRO LOMBA, Problemas cit., p. 840.

(7) O que não significa que as actuações informais contrariem as implicações irrenunciáveis do princípio da legalidade, pois deve admitir-se que a Administração, constitucionalmente vinculada aos fins do Estado, disponha de um poder de valoração fáctica que lhe permita usar, licitamente, a informação e o acordo, mesmo quando deles não resultem irrenunciáveis obrigações jurídicas.

(8) Cfr. PEDRO GONÇALVES, “Advertências da Administração Pública”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, 2001, pp. 756 e 757.

(9) Sobre estes “convénios urbanísticos atípicos”, comuns no direito espanhol, cfr. JOSÉ MANUEL ARREDONDO GUTIÉRREZ, Los convenios urbanísticos y su regímen jurídico, 2.ª ed., 2003, pp. 59 e ss. e ALEJANDRO HUERGO LORA, Los convénios urbanísticos, 1.ª ed., 1998, p. 83.

(10) São inúmeros os exemplos de Acórdãos em que o STA, no domínio do licenciamento de operações urbanísticas, qualificou o preenchimento de conceitos indeterminados como uma actividade de discricionariedade técnica, insusceptível, salvo erro manifesto, de sindicabilidade contenciosa, por implicarem um juízo de mérito segundo regras técnicas ou científicas. Assim, quanto aos conceitos de “condições estéticas” e “solidez das construções” (Acórdão do STA de 09/03/1995, processo n.º 33371) e de “cércea dominante do conjunto em que se insere” (Acórdão do STA de 17/02/2004, processo n.º 47882).

(11) Na verdade, a actividade de planificação é uma tarefa de previsão, na qual o juízo de prognose sobre a evolução futura dos processos urbanísticos — o qual se caracteriza por avaliações projectadas no futuro (sobre o desenvolvimento económico, demográfico, etc.) — desempenha um papel primordial — cfr. FERNANDO ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, vol. I, Coimbra, 2001, pp. 402 e ss..

(12) Cfr., por exemplo, FERNANDA PAULA OLIVEIRA, Sistemas e instrumentos de execução dos planos, CEDOUA, 2002, p. 51.v
(13) O que justificaria este princípio seria o facto de estas competências jurídico-públicas serem irrenunciáveis, devendo exercitar-se sempre segundo as exigências do interesse público e de acordo com regras de boa administração, por forma a obter a melhor ordenação urbanística possível.

(14) Cfr. ALEJANDRO HUERGO LORA, Los convénios cit., p. 130.

(15) O qual é aplicável a “toda e qualquer actuação da Administração Pública”, nos termos do n.º 5 do artigo 2.º do CPA.

(16) Neste sentido, ALEXANDRA LEITÃO, O Enriquecimento sem Causa na Administração Pública, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1998, p. 137.

10/11/2024 14:46:18