Paulo de Pitta e Cunha - O processo de desmaterialização da moeda
Pelo Prof. Doutor Paulo de Pitta e Cunha
1. Quando, a partir da primeira guerra mundial, as moedas se desligaram do ouro e se instauraram os regimes de papel moeda (moeda de papel inconvertível), o ouro deixou de desempenhar um papel relevante nos sistemas monetários internos.
Internacionalmente, permanecia a influência do metal amarelo, como componente principal das reservas monetárias. À perda da função monetária do ouro na ordem interna contrapôs-se, assim, a perduração de tal função a nível dos mecanismos de pagamentos internacionais.
Economistas clarividentes há muito prediziam o declínio do ouro como instrumento monetário. Keynes referiu-se-lhe, em 1923, como “relíquia bárbara”, considerando absurda a prática de se desenvolverem esforços na extracção do metal das entranhas da terra para de seguida o armazenar nos cofres dos bancos centrais.
E de Keynes dimanaria, em 1944, a proposta de criação de uma moeda internacional, cuja denominação (“bancor”) ainda lembrava parcialmente o ouro, mas cuja criação não estava dependente das contingências materiais da produção do metal e se adequava às necessidades de liquidez mundial.
A moeda sugerida por Keynes não chegou a existir, pois, na constituição do Fundo Monetário Internacional, o plano de sua autoria foi preterido pelo norte-americano, que não comportava a criação de nova unidade monetária.
2. Nos anos 60 teve concretização o projecto dos Direitos de Saque Especiais, nova figura que parecia vocacionada para suplantar o ouro (e as divisas), como instrumentos de reserva internacionais.
Era mais um passo na separação das moedas em relação ao ouro, agora no plano do sistema monetário internacional: o DSE apresentava-se como complemento dos activos de reserva existentes, mas, a longo prazo, era transparente a ambição de vir a superiorizar-se ao ouro e às moedas-chave.
Os Direitos de Saque Especiais nunca estiveram à altura das aspirações subjacentes à sua criação. A sua expansão mostrou-se muito limitada: no final de 1997, os DSE representavam menos de 2% das reservas mundiais. Longe de corresponderem às responsabilidades de uma instituição emissora (como seria o caso de um banco central mundial), os DSE resultam simplesmente do consenso dos Estados em torno das regras relativas à sua aceitação.
3. A reforma monetária internacional subsequente ao aluimento do Sistema de Bretton Woods veio acentuar o declínio da função monetária do ouro, proscrito como denominador na escolha dos regimes cambiais acessíveis aos países.
Embora ainda continue presente, na actualidade, no plano internacional, parece evidente o esvaimento do papel monetário do ouro.
Já não é a moeda refúgio, cujo valor subia em flecha em face de crises políticas ou económicas internacionais. E os próprios bancos centrais que mais apreço tinham pela manutenção de reservas em forma de ouro iniciaram a política de vendas do metal. Mais do que nunca, as divisas (em particular o dólar) assumem a posição triunfante no sistema mundial de reservas.
4. No plano interno, desaparecido o ouro como meio circulante, o sistema monetário evoluiu no sentido de acelerada desmaterialização.
A moeda assumiu formas crescentemente virtuais: da consagração da base de papel (a nota de banco, assistida por moedas subsidiárias de metais menos ricos do que o ouro) passou-se à moeda assente nos depósitos bancários mobilizados por cheques e por transferências bancárias — a moeda escritural.
Curiosamente, embora esteja prevista a circulação de moedas de papel e moedas metálicas em “euros” — a nova unidade da União Europeia — estas vão nascer (em 1999) em forma desmaterializada (depósitos, transferências), só três anos depois, sendo criadas as formas convencionais de meios físicos de pagamento. O euro faz, portanto, a sua estreia através de instrumentos puramente escriturais.
5. Nas últimas décadas, o advento da informática levou a consolidar aspectos imateriais das formas monetárias.
Foi posta de parte a ideia de que o cheque é o último instrumento da cadeia de meios de pagamento. Desenvolveram-se os cartões de crédito e os cartões de débito, modalidades em que o utente faz as suas aquisições com dispensa de utilização de cheque ou numerário. Passa-se a formas cada vez mais imateriais; são criadas “moedas inteligentes”, que incorporam um microprocessador susceptível de armazenar toda uma série de informações.
É sintomático que, na recente revisão dos agregados monetários, o banco central da Alemanha tenha passado a incluir, além da representação das moedas tradicionais, as próprias moedas electrónicas.
Estamos, sem dúvida, no limiar da era da moeda electrónica, que constitui o último estádio de um longo processo de desmaterialização das formas monetárias.
Notas:
(1) O presente estudo, baseado em intervenção oral, destinou-se a figurar na obra colectiva “Estudos de Direito Bancário”, editada em 1999 pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Algumas deficiências na transcrição do registo gravado tornaram certos pontos menos compreensíveis. Por o trabalho manter actualidade, insere-se na presente publicação, depois de convenientemente revisto.