Parecer de 24 de Fevereiro de 2006 - Incompatibilidades: Funcionário ou Agente da Segurança Social


INCOMPATIBILIDADES
(FUNCIONÁRIO OU AGENTE DA SEGURANÇA SOCIAL)

Parecer aprovado em
24 de Fevereiro de 2006


Relator: Dr.a Luísa Novo Vaz

PARECER

1. Na sequência de despacho do Conselho Distrital, o Conselho de Deontologia de… deliberou, com data de 11-07-2003, instaurar o presente processo disciplinar contra a ora recorrente, com fundamento em eventual “incompatibilidade” do exercício da actividade profissional de advogada com a resultante de contrato de trabalho subordinado celebrado entre aquela e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social de …, face à informação pela mesma prestada em requerimento dirigido ao Sr. Presidente daquele Conselho Distrital, em 04-02-2002, pelo qual solicita seja justificada a sua escusa para o exercício de funções de defensora oficiosa em processo crime para que fora nomeada, por motivo de não ter tempo disponível para o efeito, dado o horário de trabalho do exercício da nova actividade de que dá notícia.

2. Foi deduzida acusação pela prática de acto violador do disposto no art. 79.° e) do E.O.A., tendo a Sr.a Advogada ora recorrente apresentado defesa, pela qual sustenta não ocorrer a falada situação de incompatibilidade.

3. Por acórdão do Conselho de Deontologia de 06-05-2005, em concordância com o parecer para o efeito elaborado, foi deliberado aplicar à Sr.a Advogada arguida ora recorrente a pena de advertência.

4. Inconformada, a Sr.a Advogada arguida interpôs recurso para este Conselho Superior, em cujas alegações conclui pela forma seguinte:

— A arguida não é funcionária nem agente pelo que não se encontra em situação de incompatibilidade.

— O Estatuto do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social prevê que o pessoal do Instituto se rege pelo Estatuto da função pública, excepto o pessoal contratado ao abrigo do contrato individual de trabalho que se rege pela Portaria 1068/99, de 14-10, e pelas normas do contrato individual de trabalho.

— Como tal à arguida não é aplicável o estatuto da função pública pelo que não é funcionária pública nem agente.

— Neste sentido entende o Dr. João Alfaia in “Conceitos fundamentais do regime jurídico do funcionalismo público”, vol. I, pág. 138 e 141; parecer do Dr. Robin de Andrade Proc. E/996; parecer E/979; parecer E-32/98.

— O Dr. João Vaz Rodrigues in B.O.A. Mai/Jun, pág. 39, vai mais longe dizendo que “muitas dúvidas existem sobre a qualificação de determinadas actividades e funções como incompatíveis com a advocacia, à luz da enumeração prevista nas alíneas do n.° 1 do art. 69.° do EOA, realidade com que temos sido confrontados perante a privatização da contratação levada a cabo por pessoas colectivas de direito público”.

— Ora, se é a própria Ordem, através do seu boletim, que admite tais dúvidas quanto à qualificação de determinadas actividades e funções como incompatíveis com a advocacia, à luz da enumeração prevista nas alíneas do n.° 1 do art. 69.° do EOA, bem como afirma que há que traçar os critérios, como pode a arguida ter praticado a infracção disciplinar que lhe é apontada?

— Primeiro há que definir e esclarecer a situação laboral dos contratados sob o regime do contrato individual de trabalho e uma vez definida é que se poderá falar em incumprimento e infracções disciplinares.

— E tanto assim é que o legislador sentiu a necessidade de alterar o regime das incompatibilidades previsto no EOA aprovado pelo DL 84/87, de 16-3, alterações introduzidas pela Lei 15/2005, de 26-1.

— De facto, o novo EOA prevê no seu art. 77.° n.°1 alínea j) que são, designadamente, incompatíveis com o exercício da advocacia “o funcionário, agente ou contratado de quaisquer serviços ou entidades que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público, de natureza central, regional ou local”.

— Assim, esta norma tem carácter inovador não existindo norma equivalente no EOA com redacção da Lei 80/2001, de 20-7.

— Face ao exposto, é por demais evidente que na vigência do EOA aprovado pelo DL 84/84 não estava tipificado como infracção disciplinar o exercício da advocacia por aquele que a exerce sob o regime de um contrato individual de trabalho.

— Mesmo que assim não fosse sempre a arguida estaria abrangida pela excepção prevista no art. 69.° n.° 2 do EOA já que exerce funções de mera consulta jurídica.

— De facto, está expressamente previsto no contrato de trabalho da arguida que as suas funções são as correspondentes à categoria de técnico superior, integrado no grupo de qualificação I, Pessoal Técnico Superior, e que o contrato se rege pelo disposto no Regulamento Interno do pessoal específico do IGFSS aprovado pela Portaria n.° 1068/99, de 14-10 (aliás, facto dado como provado no ponto C do parecer sufragado pelo Conselho de Deontologia).

— O quadro anexo prevê como conteúdo funcional do Grupo I (Técnico Superior) grupo que a arguida integra, “funções consultivas” nas diversas áreas de gestão do IGFSS e de natureza científica e técnica respeitantes aos diversos campos da actividade, nomeadamente de investigação, concepção, estudo, consultoria, planeamento, programação, desenvolvimento, organização, metodologia, formação, gestão orçamental, financeira, auditoria e fiscalização.

— Pelo que dúvidas não restam que as funções da arguida estão expressamente previstas e que se resumem às de consulta na área para a qual se encontra habilitada — o Direito.

— Assim, encontram-se preenchidos os requisitos previstos no n.° 2 do art. 69.° do EOA, ou seja:

a) A funcionária encontra-se provida em cargo com funções exclusivas de mera consulta jurídica (conforme contrato de trabalho que remete para a Portaria 1068/99, de 14-10).
b) O cargo encontra-se expressamente previsto no quadro orgânico do correspondente serviço (quadro anexo à Portaria 1068/99).
c) Mesmo que se entenda que o cargo da arguida não se encontra previsto no quadro orgânico do IGFSS, a funcionária foi contratada para o exercício de cargo com funções exclusivas de mera consulta jurídica (conforme contrato de trabalho e Portaria 1068/99).

— O Exmo. Sr. Relator considerou no ponto E da matéria dada como provada que “o organigrama do Instituto, que integra o processo, não prevê expressamente a existência de um departamento jurídico, o que permite concluir que o respectivo quadro orgânico não contempla cargos com funções exclusivas de mera consulta jurídica.

— O parecer contém, assim, uma presunção que merece a discordância da arguida, já que não lançou mão da prova carreada para os autos pela arguida que refuta aquela presunção.

— Não pode condenar-se um arguido com base em simples presunções, que não são meios de prova, mas simples meios lógicos ou mentais.

— As presunções de culpa não são admissíveis em processo penal (note-se que ao presente processo disciplinar se aplica subsidiariamente o C.Penal e o C.P.Penal nos termos do art. 100.° do EOA) face ao disposto no art. 32.° n.° 2 do C. Rep. Portuguesa “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.

— Com a entrada em vigor do novo EOA aprovado pela Lei 15/2005, de 26-1, veio determinar-se que é incompatível com o exercício da advocacia o exercício das funções de funcionário, agente ou contratado de quaisquer serviços ou entidades que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público, de natureza central, regional ou local (art. 77.° n.° 1 al. j)).

— No entanto, o n.° 3 do art. 77.° veio permitir às pessoas supra indicadas o exercício da advocacia quando esta seja prestada em regime de subordinação e em exclusividade, ao serviço de quaisquer das entidades previstas nas referidas alíneas.

— Ora, é indubitável que a arguida exerce a actividade de advocacia em regime de subordinação mercê do contrato de trabalho que celebrou e que se encontra junto aos autos.

— Sendo igualmente verdade que o faz em regime de exclusividade.

— Tal circunstância tem o significado de se ter operado uma verdadeira “despenalização” da conduta da arguida quando praticada nas circunstâncias em apreço, que tem como consequência que essa mesma conduta passou a integrar uma conduta legítima à luz da Ordem dos Advogados.

— Se uma nova lei deixa de penalizar factos que a lei anterior incriminava, significa isso que o legislador entendeu, em mais adequada e actual visão das coisas, que tais factos não eram censuráveis.

— Não faria, em tais termos, sentido persistir na incriminação, pelo que não há necessidade de aplicar a lei anterior, devendo aplicar-se a lei da prática do último acto.

— Ora, conforme já se mencionou, o novo Estatuto é mais favorável à arguida pelo que deverá ser aplicado ao caso em apreço.

— O Exmo. Sr. Relator Dr. Bolota Belchior afirma a determinada altura que com a entrada em vigor do novo EOA aprovado pela Lei n.° 15/2005, de 26-1, veio permitir-se o exercício da advocacia às pessoas indicadas na alínea j) do n.° 1 do art. 77.° quando esta seja efectuada em regime de subordinação e em exclusividade ao serviço dessas entidades.

— Refere ainda que a arguida, mesmo à face actual do EOA, continua em incompatibilidade, uma vez que não exerce a advocacia para a sua entidade patronal, mas também funções inerentes às de técnica superior, pelo que a entrada em vigor do actual EOA em nada beneficia a Sr.a arguida.

— Discorda a recorrente porquanto as funções de técnica superior são as correspondentes às funções consultivas e ao exercício do mandato judicial na área para a qual se encontra habilitada, conforme quadro anexo à portaria 1068/99, pelo que não exerce a arguida quaisquer outras funções.

— Ora, exercendo a arguida a advocacia em regime de subordinação e em exclusividade que resulta do facto da arguida ter celebrado com a sua entidade patronal um contrato de trabalho que confere a subordinação exigida por lei e ter declarado exercer em exclusividade, está a mesma em condições para beneficiar do regime previsto no novo EOA.

— O que o legislador quis foi que a advocacia fosse exercida em exclusividade ao serviço das entidades referidas na alínea j) e não para outras que não sejam entidade patronal do advogado, ou seja, este não pode cumular funções de contratado e profissional por contra própria onde presta funções para outras entidades.

— É por demais evidente que a arguida não cumula funções exercendo a advocacia unicamente ao serviço da sua entidade patronal pelo que é falso que a arguida se encontre numa situação de privilégio em relação aos outros colegas, potenciando a angariação de clientela.

— De facto, a arguida assumiu perante a sua entidade patronal exercer a actividade em regime de exclusividade, estando a cumprir pontualmente essa obrigação como pessoa de boa fé que é.

— Assim, deve a arguida ser abrangida pela excepção constante do n.° 3 do art. 77.° do novo EOA e absolvida da prática de qualquer infracção.

5. No acórdão recorrido, foram considerados assentes os seguintes factos:

a) A Senhora Dr.a … encontra-se inscrita como Advogada, desde 22-9-2000, tendo domicílio profissional em …

b) Em 9 de Julho de 2001, a Senhora Advogada arguida celebrou com o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social um documento escrito denominado “contrato individual de trabalho”, nos termos do qual se obrigava a prestar ao Instituto “as funções correspondentes à categoria de Técnico Superior, integrado no grupo de qualificação I, Pessoal Técnico Superior”.

c) A relação laboral, de acordo com aquilo que ficou estabelecido no ponto oitavo do contrato, rege-se, para além das cláusulas e condições expressamente acordadas, “pelo disposto no Regulamento Interno do pessoal do quadro específico do I.G.F.S.S. aprovado pela Portaria n.° 1068/99, de 16 de Setembro de 1999 e demais legislação que rege o contrato individual de trabalho”.

d) A Senhora Advogada arguida foi contratada no pressuposto de esta ser advogada, com inscrição em vigor, uma vez que a Segurança Social necessitava de quem a representasse em juízo, nomeadamente, nos processos de falência e fiscais.

e) O organigrama do Instituto que integra o processo, não prevê expressamente a existência de um departamento jurídico, o que permite concluir que o respectivo quadro orgânico não contempla cargos com funções exclusivas de mera consulta jurídica.

f) Não obstante, a Sr.a Advogada arguida não suspendeu no prazo de 30 dias a sua inscrição na Ordem dos Advogados, após ter iniciado aquelas funções.

g) Em 4-2-2002, a Sr.a Advogada arguida deu notícia de tais factos ao Sr. Presidente do Conselho Distrital de …, ao requerer-lhe escusa de nomeação como advogada oficiosa, tendo em conta o horário de trabalho que se obrigara a cumprir, por via de tal contrato.

h) A Sr.a Advogada arguida não tem averbada na sua ficha individual a prática de qualquer infracção disciplinar.

Concordamos com a fixação destes factos, como provados, sem prejuízo de referências a outros elementos do processo que, eventualmente, venham a ser consideradas pertinentes.

6. Face ao exposto, cumpre apreciar e decidir:
Os factos descritos ocorreram no domínio do E.O.A. introduzido pelo Dec.-Lei n.° 84/84, de 16-3, pelo que será pela aplicação do regime estabelecido por este diploma que a questão em recurso se apreciará, em primeiro lugar.

Começamos por referir que a competência para a verificação da existência de incompatibilidades caberia aos Conselhos Distritais ou Geral, nos termos do art. 70.° daquele diploma (e continua a pertencer, como se determina no art. 79.° do novo E.O.A., Lei n.° 15/2005, de 26-1).

Tal circunstância não impede que, no caso presente, os Conselhos de Deontologia e Superior apreciem a questão de incompatibilidade, sem a prévia intervenção do C. D. ou C. G. pois que, tratando-se de um instituto cujo regime se mostra contemplado expressamente na lei, haverá, então, que dele se conhecer para efeito de se decidir da eventual violação de dever profissional.

Assim, vejamos se ocorreu ou não tal situação que deu origem ao presente processo.

Sem dúvida que a discussão sobre esta questão tem sido merecedora de alguma reflexão, por vezes motivadora de opiniões discordantes — remetemos para os já inúmeros arestos publicados, a muitos dos quais se faz referência no acórdão recorrido e nas alegações da Sra. Advogada arguida, para se concluir que sobre esta questão se discutiu longamente, nomeadamente em relação a casos idênticos ao versado no presente processo ou seja, em que se aponta a ocorrência de uma situação de cumulação entre o exercício da advocacia com o de trabalho subordinado para o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

Não deixaremos, no entanto, de seguir a posição que, com predominância (para não dizermos com uniformidade) tem sido seguida, nomeadamente neste C. S. e que nos parece ser a mais consentânea com o espírito do legislador, dentro de uma lógica jurídica sempre imanente ao texto escrito e na perspectiva do sistema jurídico em geral (indica-se, entre outros e sobre esta concreta questão, o Acórdão de 08-03-2003, que perfilhou bem fundamentado “Parecer” do Sr. Dr. Luís Teixeira e Melo, publicado em “Jurisprudência do Conselho Superior — Triénio de 2002-2004”).

Estão em causa as normas contidas nas alíneas i) e o) do n.° 1 do art. 69.° do E.O.A. (Dec.-Lei 84/84, de 16-3), pelas quais se determina que “O exercício da advocacia é incompatível com as funções e actividades seguintes: i) Funcionário ou agente de quaisquer serviços públicos de natureza central, regional ou local … o) Funcionário ou agente da segurança social …”

Como se tem entendido, a intenção do legislador ao estabelecer esta norma, é a de evitar que o advogado, através de uma actividade inerente a serviço subordinado à ordem de algumas daquelas entidades, se coloque numa posição de supremacia ou vantagem em relação aos advogados que não se encontram em tal situação, nomeadamente com vista a angariar clientes; por outro lado, a norma visará, ainda, obstar a que esses funcionários ou ex-funcionários possam actuar contra os serviços públicos a que estiverem vinculados, servindo-se, eventualmente, de conhecimentos e dados adquiridos enquanto no efectivo exercício de funções. Em correspondência com o estabelecido no art. 68.° do mesmo diploma, são princípios de independência e dignidade da profissão que determinam, no final de contas, a proibição de exercer, cumulativamente, a profissão liberal de advogado e de profissional ao serviço de entidade que explore serviços públicos … o que, na perspectiva do legislador, não acontecerá, quando o advogado se limita a exercer, ao serviço de alguma daquelas entidades, funções meramente de consulta jurídica (n.° 2 do mesmo normativo).
Deste modo, na consideração de que a Sr.a Advogada arguida seja, face ao contrato de trabalho por si celebrado, funcionária ou agente do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, não há dúvida alguma de que incorreu numa situação de incompatibilidade, tal como se prevê nos dispositivos legais apontados.

A Sr.a Advogada recorrente sustenta, no entanto, que não é funcionária nem agente do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, por forma a se encontrar abrangida pela proibição daquela norma do art. 69.° do E.O.A., pois que as suas relações de trabalho subordinado resultam directamente de um contrato individual de trabalho, segundo o qual passou a exercer funções de “Técnico Superior”, ao abrigo do quadro específico (I) previsto no art. 4.° da Portaria n.° 1068/99, de 14-10, e do art. 34.°, n.° 2 do Estatuto do I.G.F.S.S (Dec.-Lei n.° 260/99, de 7-7).

Com todo o respeito, afigura-se-nos que não é assim, pelos seguintes fundamentos:

No art. 30.° daquele Dec.-Lei n.° 260/99, diz-se o seguinte:
“1: O pessoal do Instituto rege-se pelo estatuto da função pública, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2: Para o desempenho de funções que, pela sua natureza, exijam qualificação e experiência profissional específicas, poderá ser contratado pessoal ao abrigo do regime do contrato individual de trabalho”.

Por sua vez, o art. 2.° da aludida Portaria n.° 1068/99, estabelece que:

“1— O regime aplicável ao pessoal que integra o quadro específico é definido pelas normas constantes do presente regulamento e pelos princípios e normas que regem o contrato individual de trabalho”.

Seja qual for o regime a que a Sr.a Advogada recorrente esteja submetida uma coisa é certa: desempenha funções de trabalho subordinado no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social de … que, como parece evidente, são de natureza administrativa ou seja, aparentemente idênticas às de qualquer funcionário (público) ao serviço daquela entidade no exercício de cargo semelhante.

Como refere o Dr. Robin de Andrade, in B.O.A. n.° 3/94
“A compatibilidade decorre, no nosso entender, da prevalência, em caso de eventual conflito, dos deveres legais como Advogado, sob quaisquer deveres como trabalhador emergentes do contrato celebrado… Exceptuam-se aquelas funções, mesmo exercidas por quem não tem a qualidade de funcionário público ou agente, que são funções administrativas, em áreas consideradas sensíveis”.

Quer dizer:
Sendo ou não sendo funcionária (pública) ou agente, a ora recorrente exerce funções administrativas numa área que, dada a natureza de serviço público que caracteriza a actividade, tem de ser considerada sensível.

Na verdade, é incompatível com a advocacia a actividade levada a cabo por quem exerça qualquer função equivalente à de “funcionário público” ou “agente”, desde que o seja de quaisquer serviços públicos de natureza central, regional ou local (neles se incluindo os Institutos que prosseguem fins públicos, como é o caso presente). Importa, apenas, que a actividade seja exercitada da mesma forma dos que a exercem com o estatuto de funcionários públicos e ainda os que a praticam por forma correspondente ao núcleo essencial dessa funções.

Com efeito, como se estabelece no n.° 2 daquele art. 69.° do E.O.A. “As incompatibilidades… verificam-se qualquer que seja o título de designação, natureza e espécie de provimento e modo de remuneração e, em geral, qualquer que seja o regime jurídico das respectivas funções …”

Deste modo, não é difícil concluir que a Sr.a Advogada recorrente, porque exerce uma actividade coincidente com as funções de um funcionário público, tem de ser considerada “funcionária” para efeitos daquele art. 69.° do E.O.A.

A Sr.a Advogada recorrente sustenta, ainda, que as suas funções junto do I.G.F.S.S. são de mera consulta jurídica, colocando-se, assim, ao abrigo da excepção prevista na parte final do n.° 2 daquele art. 69.° do E.O.A.

Afigura-se-nos que esse entendimento não pode ser seguido, em virtude de os autos não conterem elementos tendentes à sua demonstração.

Como já se referiu, do contrato individual de trabalho celebrado entre a ora recorrente e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (cuja cópia foi junta a fls. 19) consta que a Sr.a Advogada arguida foi contratada, por tempo indeterminado, com um horário de trabalho de 35 horas por semana, para exercer as funções correspondentes à categoria de Técnico Superior, integrada no grupo de qualificação I, Pessoal Técnico Superior — para o efeito ali se fez constar, ainda, que a esse contrato se aplica o regime constante do Regulamento Interno do pessoal do quadro específico do I.G.F.S.S., aprovado pela Portaria n.° 1068/99, de 16-9, e demais legislação que rege o contrato individual de trabalho.

Deste contrato escrito não consta qualquer referência ao específico trabalho da recorrente, nomeadamente, quanto ao pretenso exercício de funções de consulta jurídica e muito menos com exclusão de outras funções inerentes ao cargo que desempenha.

Por sua vez, recorrendo ao organigrama vertido na mencionada Portaria, pode ver-se que o cargo do Técnico Superior comporta um certo número de actividades que passamos a descrever:

“Funções consultivas nas diversas áreas de gestão do I.G.F.S.S. e de natureza científica e técnica respeitantes aos diversos campos de actividade, nomeadamente de investigação, concepção, estudo, consultoria, planeamento, programação, desenvolvimento, organização, metodologia, formação, gestão orçamental, financeira, auditoria e fiscalização”.

Trata-se, pois, de uma actividade com funções diversificadas e que, com toda a evidência, ultrapassa o exclusivo exercício de consultoria jurídica e antes se integra no mais amplo exercício de funções gerais próprias de um cargo de chefia.

Em todo o caso, se bem analisarmos o referido organigrama, facilmente concluímos que dele nem sequer consta qualquer referência à função de “consulta jurídica” (embora não duvidemos que fará parte das respectivas funções).

Sendo certo que, perante a referida norma do art. 69.° n.° 2 do EOA, se admite como compatível com o exercício da advocacia o exercício de funções exclusivas de mera consulta jurídica, a verdade é que não é isso que resulta nem do contrato de trabalho que a recorrente outorgou com o I.G.F.S.S., nem dos restantes elementos factuais constantes dos autos.

A Sr.a Advogada recorrente sustenta que exerce, com exclusividade, as ditas funções ao serviço do I.G.F.S.S, colocando-se, assim, ao abrigo da norma contida no art. 77.° n.° 3 do novo E.O.A. (introduzido pela Lei n.° 15/2005, de 26-1).

Pretende, pois, que, com o novo regime legal que, expressamente, veio admitir, como excepção ao aludido regime das incompatibilidades, o exercício de funções de trabalho subordinado ao serviço das mencionadas entidades, quando em exclusividade, que a sua eventual infracção disciplinar já não deverá ser punida, em virtude de os factos integrantes terem deixado de constituir infracção.

Cremos que, também neste caso, não tem razão.
Sufragando o entendimento (por muitos já anteriormente defendido) de que o advogado deverá poder optar livremente por exercer a advocacia, por conta própria ou por conta de outrem, o novo E.O.A. veio a consagrar, naquele art. 77.° n.° 3 que “É permitido o exercício da advocacia às pessoas indicadas nas alí- neas j) e l) do n.° 1, quando esta seja prestada em regime de subordinação e em exclusividade, ao serviço das entidades previstas nas referidas alíneas …”.

Deste modo, a Sr.a Advogada recorrente, estaria abrangida por esta excepção ao regime de incompatibilidades previstas no aludido art. 77.° n.°1, caso demonstrasse que exerce a função de funcionária subordinada, ao serviço do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, em regime de exclusividade.

No entanto, dos autos não consta qualquer elemento factual que mostre essa realidade.
O contrato individual de trabalho não refere que a recorrente se tenha vinculado a esse regime; no requerimento que motivou este procedimento disciplinar, a recorrente, muito embora se reporte à indisponibilidade de tempo para exercer as funções próprias de defensora oficiosa nomeada, não faz alusão a essa circunstância… o que poderia ter feito, manifestando, nomeadamente, a intenção de não exercer o mandato judicial ao serviço de outrem que não fosse a sua entidade patronal.

Deste modo, inviável se torna podermos concluir pela forma pretendida, já que nem com recurso a alguma ilação a extrair da situação profissional da recorrente se poderá entender em sentido inverso — bem poderá acontecer que a recorrente, apesar de tudo, mantenha clientela própria, exercendo a advocacia em regime liberal.

Por outro lado, afigura-se-nos que não será pela circunstância de a recorrente se poder encontrar, actualmente, em situação que a coloque ao abrigo da dita excepção, que a conclusão a extrair pode ser diversa.

Na verdade, diz-nos o art. 2.° n.° 2 do C. Penal (aplicável por força do art. 100.° do E.O.A. revogado e do art. 121.° do E.O.A. vigente) que “O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma nova o eliminar do número das infracções”.

Ora, quais eram os factos puníveis, na circunstância de o advogado violar os deveres profissionais para com a Ordem dos Advogados, em desobediência ao que se dispunha na alínea e) do art. 79.° daquele E.O.A.?

“Não suspender imediatamente o exercício da profissão” e “não requerer, no prazo máximo de 30 dias, a sua suspensão da inscrição na Ordem dos Advogados quando ocorresse incompatibilidade superveniente”.

Tais deveres continuam a vigorar, como se extrai do art. 86.° alínea d) do novo E.O.A., ou seja, os específicos deveres que a Sr.a Advoga recorrente, como temos vindo a expor, não respeitou … e não um dos pressupostos da sua aplicação que não se encontra contemplado na norma violada: deste modo, a infracção em análise subsiste por vir contemplada no novo regime disciplinar contido no actual E.O.A.

Como referimos inicialmente, a situação de incompatibilidade resulta directamente da lei, não dependendo, por isso, da sua prévia declaração, nomeadamente por órgão competente para sobre ela se pronunciar.

Quem se coloca em situação de incompatibilidade é que terá de assumir a obrigação de agir em conformidade com o regime legal constante do E.O.A., satisfazendo o comando contido naquela norma do art. 79.° do EOA de 1984 ou do art. 86.° do actual.

Os “Acórdãos” emitidos pelos órgãos do O.A. não são “constitutivos” de deveres ou direitos dos Advogados, mas meramente “declarativos” face ao significado e alcance das normas do E.O.A., na sequência da sua aplicação aos casos concretos e a eles submetidos a apreciação.

Por isso, a Sr.a Advogada recorrente também não tem razão quando pretende encontrar, na diversidade de opiniões formuladas a respeito das questões ora versadas, bem como na exigência de “carteira profissional” adoptada pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social aquando da sua candidatura, justificação para a sua conduta – como resulta do disposto no art. 6.° do C. Civil, “a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”.

Pelo exposto, proponho que se negue provimento ao recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.

À próxima sessão da 2.a Secção.
Viana do Castelo, 8 de Fevereiro de 2006

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