Parecer de 24 de Fevereiro de 2006 - Incompatibilidades: Membros das Forças Armadas
(MEMBROS DAS FORÇAS ARMADAS)
Parecer aprovado
em 24 de Fevereiro de 2006
Relator: Dr. Luís Laureano Santos
O Senhor Dr. …, Advogado com escritório em …, remeteu ao Senhor Bastonário, com entrada no Conselho Geral em …, um requerimento, que se dá por reproduzido, mas que se pode resumir do seguinte modo:
1. O art. 156.°-1-d) do EOA em vigor em … determinava que não podiam ser inscritos “os que estejam numa situação de incompatibilidade ou inibição do exercício da advocacia”.
2. Entre os que estavam numa situação de incompatibilidade inseriam-se os militares — art. 69.°-1-j) do EOA então em vigor.
3. O Senhor Dr. … era, na data da sua inscrição como advogado estagiário, militar das Forças Armadas Portuguesas.
4. Sabendo que estava numa situação de incompatibilidade, o Senhor Dr. … decidiu faltar à verdade e subscreveu o requerimento no qual declarou que não exercia nem nunca tinha exercido cargo ou actividade profissional de qualquer natureza.
5. O Senhor Dr. … manteve-se na Força Aérea até 1996, com a patente de capitão da Força Aérea.
6. Ocorre uma situação de inidoneidade, prevista no art. 171.°- e) do EOA, actualmente em vigor.
7. O Senhor Dr. … não tem mais credibilidade para exercer as funções que exerce neste momento na Ordem dos Advogados.
8. Requereu que o requerimento fosse remetido para o Órgão competente para iniciar o processo de verificação da inidoneidade do Senhor Dr. …, que fosse dado conhecimento ao Senhor Dr. … do teor do requerimento apresentado, que o Órgão competente para iniciar e instruir o processo de inidoneidade mande oficiar ao Senhor Comandante do Comando de Pessoal da Força Aérea para que ordene a remessa à Ordem dos Advogados do processo individual do Senhor Dr. ... e que seja convidado o Senhor Dr. … a renunciar ao cargo de … e, se o não fizer, que sejam os autos remetidos ao Órgão competente para deliberar sobre a perda do cargo.
Com este seu requerimento, apresentou certidão emitida pelo Conselho Distrital de …, pela qual se constata que, ao requerer a sua inscrição como advogado estagiário, o Senhor Dr. … declarou que não exercia e nunca exercera cargo ou actividade profissional de qualquer natureza.
O Senhor Bastonário despachou mandando cópia deste requerimento para o signatário, “nos termos e para os efeitos do disposto no EOA, nomeadamente os seus artigos 171.°-e), 172.° e 43.°-3-d)”, e também para o Senhor Dr. … “para conhecimento e porque é suscitada a questão de renúncia ao cargo de …, que actualmente desempenha”.
O Senhor Dr. …, ao receber o referido Despacho do Senhor Bastonário, dirigiu ao signatário um requerimento, com Entrada em 17 de Fevereiro corrente e que se dá por reproduzido, e — juntando cópias certificadas da “Nota de Assentos” militar que lhe respeita e de outros documentos comprovativos do seu percurso militar — salientou que à data da sua inscrição como advogado estagiário não pertencia ao Quadro Permanente da Força Aérea e pediu que, nos termos do art. 16.° do EOA, lhe seja concedida a suspensão temporária do exercício de funções enquanto …, mencionando que o seu pedido só poderá deixar de produzir efeitos se for entendido pelo Conselho Superior que a sua “permanência no exercício cargo de … até ao encerramento do processo não constitui qualquer prejuízo para a nossa Ordem”.
Cumpre apreciar e decidir, com a urgência que decorre do disposto no art. 124.° do actual EOA.
O art. 69.°-1-j) do EOA, na versão em vigor à data (…) em que o Senhor Dr. … requereu a sua inscrição como advogado estagiário, determinava que o exercício da advocacia era incompatível com as funções e actividades de Membro das Forças Armadas e Militarizadas no activo.
Vigorava então, no que interessa, o Estatuto do Oficial da Força Aérea, aprovado pelo Decreto n.° 377/71, de 10 de Setembro, diploma esse que (art. 1.°) estabelecia que o conjunto dos oficiais da Força Aérea compreende os “oficiais dos quadros permanentes” e “os oficiais de complemento (milicianos)”, sendo que (art. 2.°) os oficiais dos quadros permanentes são os que, na Força Aérea “... nela servem como profissionais, com carácter de permanência”.
Para os oficiais dos “quadros permanentes” (ou QP), eram estabelecidas (art. 58.°) quatro situações específicas: a do “Activo”, a da “Reserva”, a da “Reforma” e a de “Separados do Serviço”.
Ou seja, o estatuto de “militar no activo” constituía um conceito específico aplicável apenas aos militares profissionais dos quadros permanentes das Forças Armadas (designadamente da Força Aérea), não extensíveis aos “não profissionais” ou “milicianos”. E o regime, com as alterações subsequentes (v.g., Dec.-Lei n.° 34-A/90, de 24 de Janeiro), manteve-se, nas suas linhas gerais e no que aqui interessa, ao longo do tempo.
Por isso se entendeu, ao longo dos anos, que a incompatibilidade do art. 69.°-1-j) do EOA, decorrente do Dec.-Lei n.°. 84/84, de 16 de Março — ao reportar-se a “Membro das Forças Armadas e Militarizadas no activo” — incidia apenas sobre os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas (designadamente da Força Aérea) e não aos restantes, designadamente aos “de complemento” ou “milicianos”. E assim se entendeu, além do mais em obediência ao princípio constitucional de que nenhum cidadão pode ser prejudicado na sua colocação ou no seu emprego permanente por virtude do cumprimento do serviço militar ou do serviço cívico obrigatório, sendo que o serviço militar obrigatório, portanto fora dos quadros permanentes das Forças Armadas, não pode ser considerado como “actividade profissional”, no que aqui releva, em sentido técnico e restrito, mas mero cumprimento de ónus de cidadania.
A “Nota de Assentos” militar do Senhor Dr. … revela que, em …, era titular do posto de Alferes da Força Aérea, fora dos quadros permanentes. Logo, no momento em que requereu a sua inscrição como Advogado Estagiário, não ocorria a incompatibilidade assinalada pelo participante. O Senhor Dr. …, ao declarar, quando requereu a sua referida inscrição, que “não exercia nem tinha exercido actividade profissional de qualquer natureza” — aliás, respeitando minuta pré-elaborada, fornecida pelos Serviços da Ordem aos candidatos a advogado estagiário —, pelo menos no confronto com os factos denunciados, não parece, sem mais, que tenha produzido declaração falsa.
Afirma o participante que o participado se manteve na Força Aérea até … Efectivamente confirma-se pelo requerimento do Senhor Dr. … e pela “Nota de Assentos” e demais documentos militares por este fornecidos, que este se desligou e deixou definitivamente a Força Aérea em …, com o posto de capitão, integrado no quadro da especialidade de juristas, acessível a “oficiais graduados admitidos entre licenciados em Direito inscritos na respectiva Ordem como advogados”, como decorre do art. 282.° do Dec.-Lei n.° 34-A/90, de 24 de Janeiro.
Este norma do diploma citado (art. 282.° do Dec.-Lei n.° 34-A/90, de 24 de Janeiro) foi altamente controversa. Mas essa controvérsia incidiu sobre n.° 2 desse dispositivo, ao consagrar a possibilidade de integrarem esse “quadro” (da especialidade de oficiais juristas) também militares dos quadros permanentes que tivessem as necessárias qualificações e o requeressem.
Ou seja, previa-se e aparentemente contemporizava-se com uma situação de manifesto conflito: por um lado, os oficiais dos quadros permanentes estavam em situação de incompatibilidade com o exercício da advocacia [art. 69.°— 1-j) do EOA, na versão em vigor na altura] e, por outro, estabelecia-se, como condição de ingresso, que os oficiais do quadro permanente fossem titulares, simultaneamente, de inscrição em vigor na Ordem, como advogados.
Este conflito mereceu sucessivos reparos da Ordem. Recordamos um dos mais recentes, inserido no Parecer do Conselho Geral E-20/2000:
A situação vertente sugere três questões distintas: (1) saber se o disposto no artigo 282.°, n.° 1, do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Dec.-Lei 34-A/90, de 24 de Janeiro, revogou, ou derrogou, a norma do artigo 69.°-1-j) do EOA e a consagração de incompatibilidade aí estabelecida, (2).
Vejamos cada uma destas questões.
A primeira foi já abordada desenvolvidamente pelos Conselhos Geral e Superior da Ordem em vários processos de inscrição respeitantes a licenciados em Direito que são também Oficiais da Força Aérea no activo. E a orientação da Ordem a respeito é hoje uniforme a pacífica, na linha do Parecer que, em processo de inscrição sujeito a recurso hierárquico, foi aprovado por Acórdão do Conselho Geral de 5 de Junho de 1992, publicado na ROA, Ano 52, Abril de 1992 (Tomo I, 1992). Aí se ponderou e decidiu que é
“incompatível com o exercício da advocacia a qualidade de Oficial da Força Aérea no activo, não tendo a norma do art. 282.° do Estatuto dos Militares das Forças Armadas a virtualidade de derrogar o disposto no art. 69.°, número 1, alínea j) do EOA, aprovado pelo Dec.-Lei 84/84, de 16 de Março, ao abrigo de autorização legislativa”.
O Relator deste Parecer desenvolve argumentação diversa e convincente para atingir a sua conclusão acima transcrita. Perfilhando tal fundamentação, que permanece actual, aqui damos por reproduzido o teor desse Parecer.
E entre os argumentos aduzidos sobressai este, a nosso ver mais que suficiente para abonar a tese que partilhamos:
“(…) Por outro lado, o instituto da revogação tem, igualmente, em conta a hierarquia das normas jurídicas.
Assim, o Estatuto da Ordem dos Advogados Portugueses foi aprovado pelo Decreto-Lei 86/84, de 16.3, precedido da autorização legislativa concedida pela Lei n.° 1/84, de 15.2, de acordo com o então disposto no art. 168.°, n.° 1, al. t), da Constituição (…). O Estatuto dos Militares (…), por seu turno, foi aprovado por um simples Decreto-Lei do Governo, de carácter regulamentar, decretado «No desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.° 11/89, de 1 de Junho (…)». Não poderia, assim, ocorrer a revogação invocada pelo recorrente, improcedendo, por isso, a primeira conclusão do recurso (…)”
Esta perspectiva veio a ser acolhida mais tarde pelo Tribunal Constitucional.
Importa agora considerá-la apenas para se sublinhar que, não obstante a incompatibilidade consagrada ao tempo pelo EOA
[art. 69.°— 1-j)], não pode deixar de se admitir que tivessem ocorrido situações de militares dos quadros permanentes da Força Aérea que, precisamente por se julgarem ao abrigo do regime do referido art. 282.° do Dec.-Lei 34-A/90, de 24 de Janeiro, se tivessem lealmente colocado em defesa de pretensa regularidade da sua situação pessoal, sem que daí se possa concluir, sem mais, indício de infracção disciplinar ou manifestação de falta de idoneidade moral.
O conflito estava nas normas e era legítima a perspectiva que, ao abrigo da lei, melhor defendia os interesses profissionais dos oficiais abrangidos pelo regime resultante das regras em conflito.
Já se viu que não há razões para admitir que o Senhor Dr. … terá produzido a declaração pretensamente falsa assinalada na participação. Mas outras razões acrescem para ser de desatender o que com a mesma participação se pretende.
Os factos participados abrangem um período temporal que terminou em 1996. Decorreram mais de nove anos. O que significa que qualquer infracção de natureza deontológica que pudesse ter sido cometida (e, na verdade, na factualidade descrita e sem mais, nenhuma se indicia com um mínimo de viabilidade) estaria obviamente prescrita, à luz dos regimes e prazos decorrentes quer do EOA/1984 (e alterações subsequentes) quer do EOA/2005.
Não faz sentido iniciar agora um processo de averiguação de eventual falta de idoneidade moral para o exercício da profissão quando não existe, com actualidade relevante, qualquer indício que afecte a imagem e a personalidade do Senhor Dr. …, particularmente no quadro exigível para quem exerce as funções de … Pelo contrário, a imagem e a personalidade do Senhor Dr. … surgem como as de um Advogado distinto, probo, respeitável e respeitado, sem faltas às regras da Deontologia impostas à generalidade dos advogados pelo seu estatuto profissional e tem mostrado, ao longo de mandatos já sucessivos, uma dedicação, empenhada e notável, aos interesses da sua Ordem através dos cargos que nela tem vindo a desempenhar.
Não faria nem faz sentido proceder agora a averiguações mais detalhadas sobre pretérita factualidade — à partida, como se assinalou, de expressão irrelevante para se concluir pela existência de indícios de violação de obrigações de natureza deontológica — já que tais diligências sempre iriam incidir na procura de hipotéticos dados cujos efeitos estariam necessariamente prejudicados pela ocorrência de prescrição, e que, em qualquer caso, só poderiam revestir utilidade como reforço para a convicção actual de que, no conjunto com outras ocorrências porventura não prejudicadas pela prescrição, se justificaria um eventual juízo consistente de inidoneidade. Esse factores, com ou sem actualidade relevante, pura e simplesmente não existem.
A participação do Senhor Dr. … afigura-se, assim, manifestamente infundada e inviável, pelo que proponho o seu arquivamento, nos termos dos arts. 118.°-3 e 139.°-5 do EOA/2005, dando-se cumprimento à notificação a que se refere a primeira destas normas.
Na sua participação, o Senhor Dr. … refere-se ao participado afirmando que ele foi “um autêntico Chico esperto”, tendo conseguido “pela via da mentira e do logro o que muitos outros.. não conseguiram”.
Estas expressões não revelam qualquer utilidade para a sustentação da perspectiva que o participante procurou defender e são objectivamente desprimorosas e ofensivas dos direitos de personalidade do Senhor Dr. …, tal como [ele] delas se queixa no requerimento que dirigiu ao signatário. Proponho, assim, que seja extraída certidão de todo o presente expediente e que essa certidão seja remetida ao Conselho de Deontologia de …, para efeitos de instauração de processo destinado a apurar as atinentes responsabilidades disciplinares do Senhor Advogado Participante.
No contexto que se deixa descrito, não ocorre o menor fundamento que justifique a suspensão do exercício de funções do Senhor Dr. …, pelo que, em conformidade, proponho ainda que o Plenário do Conselho Superior indefira o pedido que, nesse sentido, foi por ele formulado.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2006.