Alvos das escutas judiciais desceram mais de 28% em cinco anos
No ano passado foram registados no sistema informático que permite fazer as intercepções telefónicas, o Paragon, que se encontra na tutela da Polícia Judiciária (PJ), 10.268 alvos, menos 4122 do que os quase 14.400 contabilizados cinco anos antes, ou seja, em 2018. E a tendência parece ser sólida: há sete anos consecutivos que diminui o número de alvos interceptados.
Um alvo não corresponde necessariamente a uma só pessoa, já que é comum um único suspeito ter mais do que um equipamento sob escuta. Por sua vez, um telemóvel pode ser usado com vários cartões, cada um com um número próprio, sendo, por isso, contabilizados como alvos diferentes. Por isso, não é possível saber quantas pessoas foram escutadas num determinado ano, apenas o número de alvos, explicou a Judiciária numa resposta escrita enviada ao PÚBLICO. A nota acrescenta que um mesmo suspeito pode estar a ser escutado no mesmo telefone em dois inquéritos diferentes, sendo a intercepção registada como estando a ser realizada em dois alvos diferentes.
Convém recordar que em Portugal só é permitido realizar escutas telefónicas no âmbito de inquéritos criminais e, mesmo nesses, só para investigar determinados crimes. As escutas são pedidas por um procurador, habitualmente por sugestão de um órgão policial, tendo de ser obrigatoriamente autorizadas por um juiz de instrução. É a este magistrado que cabe o controlo e a validação das conversas consideradas relevantes para a investigação, que terão de ser depois transcritas para o processo.
Se compararmos os equipamentos interceptados no ano passado com os que estavam sob escuta dez anos antes, a redução verificada é ligeiramente mais baixa (21,5%). Em 2013, contabilizaram-se 13.075 alvos escutados através do Paragon, sensivelmente mais 2800 do que o ano passado.
Na última década, só em 2014 e 2015 é que o número de alvos escutados subiu face ao ano anterior. O pico de aparelhos interceptados verificou-se em 2015, ano em que o sistema tutelado pela PJ registou 15.441 alvos. Desde então, as intercepções desceram de forma contínua.
Os números encontram-se nos diversos relatórios anuais de segurança interna, que, contudo, não especificam quem é que executa essas mesmas escutas, já que, além da Judiciária, os outros órgãos de polícia criminal também estão legalmente habilitados a realizá-las.
O PÚBLICO questionou a Procuradoria-Geral da República e a Judiciária sobre a percentagem de intercepções realizadas quer por esta polícia, quer por outras entidades, como a Guarda Nacional Republicana, a Polícia de Segurança Pública ou o, entretanto extinto, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. No entanto, se o órgão de cúpula do Ministério Público se limitou a remeter para os relatórios de segurança interna, onde estes dados não constam, a PJ alegou “dever de reserva” para não transmitir a informação.
A Judiciária realça que nos termos da Lei de Segurança Interna, “a execução do controlo das comunicações” é da sua exclusiva competência. “Com esta atribuição pretende-se concentrar numa só entidade a competência técnica para a efectivação das intercepções telefónicas, havendo assim uma melhor gestão dos recursos públicos”, justifica a PJ. E completa: “No cumprimento desta missão, a Polícia Judiciária está sujeita ao dever de reserva, não podendo assim divulgar dados de outras entidades, como são os casos da GNR, PSP ou outros organismos.”
O PÚBLICO contactou igualmente a GNR e a PSP, mas nenhuma delas respondeu, em tempo útil, às perguntas.
Porque está a diminuir o recurso às intercepções? Talvez porque a tecnologia, ao banalizar o recurso a plataformas de comunicações como o WhatsApp, o Telegram, o Viber ou o Signal – que o sistema existente não consegue decifrar – esteja a minar a eficácia das escutas, como se admite num relatório final sobre o assunto, feito no âmbito de um mestrado na Academia Militar. O mesmo referiu um profissional da Judiciária, que destaca o enorme trabalho associado a este meio de obtenção de prova, um investimento muitas vezes sem retorno.
O relatório do militar João Mendes, datado de Setembro de 2019, salienta ainda que a constante divulgação das escutas “vem incentivar os criminosos a utilizar outros métodos para comunicarem sobre o crime e praticarem os mesmos, sem recurso aos aparelhos radiotelefónicos”.
Mas no caso de órgãos de polícia criminal, como a PSP ou a GNR, há ainda constrangimentos operacionais que podem desincentivar o recurso às intercepções. É que, como o sistema está na tutela da PJ, os terminais essenciais para ouvir em tempo real ou gravar as escutas registadas pelo Paragon estão todos em instalações da Judiciária.
Segundo a tese de mestrado O Acesso a Terminais de Intercepção de Comunicações pelos Órgãos de Polícia Criminal, de 2019, feita por Hugo Silva, no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, a PSP só conseguia utilizar os centros de controlo da Judiciária – salas onde estão os tais terminais, que têm habitualmente entrada controlada – nas cidades do Porto, Lisboa, Setúbal, Faro, Funchal e Ponta Delgada.
No caso de Setúbal, a PJ disponibilizava esse acesso só àquela divisão, pelo que as restantes unidades do comando distrital, que abarca grande parte do litoral alentejano, tinham de se deslocar a Lisboa para ouvir ou gravar escutas. Por outro lado, a Judiciária dispunha em 2019 de centros de controlo em Braga, Aveiro, Coimbra, Guarda e Leiria, mas estes não estavam disponíveis para as outras polícias. A situação é semelhante à relatada por João Mendes, relativamente à GNR.
Nessa altura, a PJ tinha salas próprias para os seus profissionais, tendo as restantes entidades de partilhar os poucos terminais existentes. Devido à afluência, escreve Hugo Silva na tese de mestrado, os investigadores da PSP, “por insuficiência da capacidade das instalações facultadas, obrigam-se a largos períodos de espera, não raras vezes superiores a três ou quatro horas, a aguardar pela libertação de um posto de trabalho”.
Quando era necessário ouvir escutas em tempo real, lê-se na dissertação, os investigadores acabavam por ter de se deslocar para as salas de intercepção “com bastante antecedência, a fim de garantirem vaga no posto de trabalho”. Tal levava a que outros utilizadores, que apenas pretendem efectuar gravações – tarefa que demora uns minutos –, tivessem muitas vezes de gastar “várias horas de serviço útil nas deslocações e nos períodos de espera”. Pior, quando havia urgência em escutar em tempo real e não havia terminais disponíveis, o investigador arriscava-se a comprometer a própria investigação.
Tanto Hugo Silva como João Mendes davam conta de que existiam zonas do país onde os investigadores da PSP e da GNR não recorriam a escutas, simplesmente por serem impraticáveis.
Confrontada com a descrição de Hugo Silva, a Judiciária garante que “desde 2019 foi desenvolvido um processo gradual de melhoria das condições de trabalho e apetrechamento tecnológico, em que a PJ investiu um montante superior a cinco milhões de euros”. E completa: “Este processo teve início nas instalações em Lisboa e tem vindo a ser alargado às demais unidades, com vista a colmatar constrangimentos e melhorar a resposta, nomeadamente às necessidades dos restantes órgãos de polícia criminal. Actualmente a situação é-nos reportada como satisfatória pelos diferentes intervenientes, sem prejuízo de se continuar a investir na melhoria das condições.”
A Judiciária não esclareceu, todavia, se os restantes órgãos de polícia criminal já podem recorrer a todas os centros com terminais existentes no país e, se não, a quais não podem aceder e porquê. PSP e GNR também não responderam às perguntas do PÚBLICO.