“Advogados podem evitar muitos litígios às empresas”
Recém-eleito Bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano enfrenta o desafio de liderar a advocacia portuguesa num contexto de profundas transformações. Com uma agenda centrada na formação contínua, na modernização da profissão e no reforço das condições de trabalho para os advogados, João Massano pretende promover um diálogo institucional com o Governo e apostar na digitalização, sem comprometer os valores éticos da profissão. Em entrevista à “Vida Económica”, o novo Bastonário aborda as suas prioridades e os caminhos que pretende traçar para o futuro da advocacia em Portugal.
Vida Económica - Como encara os principais desafios que a advocacia enfrenta atualmente em Portugal?
João Massano - Neste momento, a Ordem está a passar por uma reformulação. Uma das questões debatidas nas eleições foi a diferença entre uma matriz liberal e outra mais próxima do contrato de trabalho da função pública, com alguma dependência do Estado. A advocacia precisa de se redefinir e de integrar uma nova forma de atuação jurídica. Vivemos uma fase em que a Bastonária anterior se identificava apenas com uma parte da classe, ignorando o restante.
Dividir uma classe como a nossa nunca será o melhor caminho. Precisamos de união e de encontrar denominadores comuns que nos permitam manter uma Ordem e não cair na anarquia.
VE - É necessário recuperar alguns princípios de sempre da profissão?
JM - Exatamente. É um pouco “back to basics”, como dizia a doutrina americana. A Ordem deve preocupar-se com os advogados, com a sua dignidade e com o prestígio que já tivemos. Devemos voltar a ser reconhecidos entre as demais classes jurídicas e perante o Governo. Esta é uma das prioridades do nosso mandato: reconstruir pontes com o poder político.
VE - Considera que a Ordem se aproximou mais de um sindicato?
JM - Creio que sim. A Ordem passou a atuar quase exclusivamente em defesa corporativa, sem se preocupar com a Justiça no seu todo. Isso levou a manifestações na rua que pouco resultado trouxeram. Sempre fomos conhecidos pela via diplomática e pela negociação, não pelo confronto.
Desigualdade no acesso a ferramentas tecnológicas
VE - A digitalização da Justiça e a inteligência artificial representam um grande desafio para a profissão?
JM - Sim. Há uma desigualdade no acesso a ferramentas tecnológicas entre advogados das grandes cidades e os da prática individual. A Ordem tem de garantir que todos tenham acesso às mesmas condições tecnológicas, e isso passa por desenvolver ferramentas em parceria com entidades tecnológicas.
Também é necessário digitalizar o relacionamento entre a Ordem e os advogados.
VE - Como avalia as dificuldades enfrentadas pelos novos advogados no acesso à profissão?
JM - Sem dúvida. Muitos colegas enfrentam dificuldades, mesmo após iniciarem a carreira. A Ordem deve apoiar os jovens no início e ao longo da profissão, dignificando a advocacia e mostrando à sociedade para que serve um advogado. Um advogado deve acompanhar o cliente ao longo da vida, como um “advogado de família”.
VE - Como vê o estágio profissional para acesso à profissão?
JM - O estágio é essencial para integrar os jovens na prática da advocacia. Não deve ser confundido com a licenciatura. Defendo um estágio dividido entre patrono e formação prática e deontológica promovida pela Ordem. A avaliação dos conhecimentos teóricos cabe às universidades. O objetivo do estágio é preparar para a prática.
VE - As universidades devem formar mais ou menos licenciados em Direito?
JM - Essa é uma questão complexa. O importante é garantir que os que querem seguir advocacia tenham futuro. Se o sistema funcionar melhor, pode haver lugar para mais. Há muitas áreas onde um licenciado em Direito pode ser útil, como a Administração Pública, forças de segurança, setor consular, empresas, entre outras.
Aconselhamento legal prévio evitaria muitos conflitos
VE - Há quem defenda a contratação obrigatória de advogados por parte das empresas. Concorda?
JM - Sim. Tal como as empresas têm medicina do trabalho, deveriam contar com apoio jurídico permanente. Evitar-se-iam muitos litígios com aconselhamento legal prévio. A legislação é extensa e complexa, e as empresas beneficiariam com esse suporte.
VE - Qual deve ser o papel da Ordem dos Advogados na reforma da Justiça?
JM - A Ordem não deve ser apenas um interlocutor técnico, mas também político, na defesa dos direitos das pessoas. A Ordem deve pronunciar-se sempre que houver risco de violação de garantias. A morosidade da Justiça exige uma análise do processo como um todo, e não a culpabilização de uma só parte.
VE - A má qualidade legislativa é também um dos maiores problemas da Justiça?
JM - Sim. Sempre que detetar falhas legislativas, a Ordem deve intervir. Deve ter comissões especializadas por área jurídica para emitir pareceres sobre a legislação. A falta de previsibilidade nas decisões judiciais é preocupante. Deve haver maior uniformização e explicação pública das decisões para que o cidadão compreenda.
VE - Qual é a mensagem que pretende transmitir à classe?
JM - Gostaria que os colegas voltassem a acreditar na Ordem e na advocacia. O divórcio entre a classe e a sua Ordem deve ser superado. Só com o apoio de todos conseguiremos ser respeitados e úteis à sociedade.