Maria de Fátima Fernandes Ferreira - O pagamento aos credores e o rateio parcial em processo de falência
Pela Dra. Maria de Fátima Fernandes Ferreira
A presente reflexão resulta de uma cuidada análise teórica de todo o Capítulo VIII do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, que trata da fase do pagamento aos credores em processo de falência, e do confronto com a sua tradução prática em vários processos.
Neste desiderato, foram eleitos como processos de falência a analisar aqueles em que havia, no mínimo, dois tipos de credores: credores hipotecários (privilegiados) e credores comuns e, dentro desses processos, somente aqueles em que houve rateio parcial seguido de rateio final.
O objectivo é provar que, em certas e frequentes circunstâncias, o princípio da proporcionalidade e da igualdade dos credores é violado.
Para esse efeito, analisou-se detalhadamente um dos processos de falência no âmbito da pesquisa efectuada, tomando os seus números por aproximação, e confrontando a solução adoptada de rateio parcial seguido de rateio final com a de apenas um rateio, a final.
A conclusão a que se chega, salvo melhor opinião, é a de que o procedimento referido supra e prática corrente nos autos falimentares é a prova efectiva da violação daqueles princípios.
O pagamento aos credores: rateios, a regra da proporcionalidade e o princípio da igualdade dos credores no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência
Uma das fases do processo de falência é a do pagamento aos credores.
Uma vez liquidados os bens do falido (art. 179.° e seguintes), apreendidos (art. 175.° e seguintes) em processo de falência, há que dar destino ao produto da venda procedendo aos pagamentos (art. 209.° e seguintes) devidos aos credores que viram os seus créditos verificados (art. 188.° e seguintes) e graduados.
Mas no decurso da falência há despesas e constituem-se sempre obrigações necessárias para as operações de conservação e liquidação. Neste caso temos, então, dois tipos de obrigações: obrigações da massa e obrigações contraídas pelo falido que originam a concorrência a esta. Nesta concorrência à massa podem ainda existir créditos com garantia real a concorrer com créditos com as mesmas garantias e com créditos comuns. Aí, e por força do art. 209.° e seguintes, é imediatamente realizado o pagamento dos créditos garantidos. Quando estes créditos não fiquem integralmente pagos, determina o mesmo preceito legal que sejam logo incluídos pelo saldo entre os credores comuns, independentemente de qualquer outra formalidade. Esgotado o produto da venda que lhes deve ser afecto sem plena satisfação do credor, o remanescente concorre, como crédito comum, no rateio do restante património do devedor.
Ratear significa distribuir proporcionalmente, podendo então definir-se o rateio como a distribuição proporcional do valor total da massa falida, passível de distribuição — dada a retenção obrigatória em processo de falência de montante afecto às custas e encargos da massa, a saírem precípuas — pelos credores concorrentes à massa falida. Assim, havendo rateio, terá de ser respeitada a regra da proporcionalidade.
Esta distribuição, quando o saldo em depósito o permita e satisfeitas as exigências legais que a possibilitem, terá de respeitar — por aplicação analógica do processo de recuperação — também um outro princípio fundamental, patente no normativo legal do instituto falimentar: o princípio da igualdade dos credores. Este princípio exige a consideração e tratamento de todos os créditos em termos de igualdade, isto é, ele não exclui o atendimento das preferências legais que, com garantias reais, terão primazia na sentença de graduação dos créditos sobre bens onerados, apenas significa que não pode existir discriminações infundadas. Assim, devem ser tratadas em termos semelhantes, as situações dos credores com posições equivalentes. Então, dentro da mesma categoria — privilegiada ou comum — com igualdade de posições, não pode haver lugar a distinções entre credores.
Não curando aqui do processo de recuperação e das decisões, para o efeito, adoptadas pelos credores, salvaguardar-se-á apenas a protecção dos credores acautelando os seus interesses para efeitos da elaboração de rateios e futuros pagamentos em processo de falência na exposição prática seguinte (que traduz a prática corrente na administração de massas falidas) e onde se patenteia a
violação da regra e do princípio supra referidos.
O rateio parcial e a violação da regra da proporcionalidade e do princípio da igualdade dos credores. Tradução prática do problema
Da análise do Capítulo VIII do CPEREF que trata da fase do pagamento aos credores em processo de falência, arts. 209.° a 218.°, e da constatação da sua aplicação prática em processos em vários tribunais, pode concluir-se que o RATEIO PARCIAL seguido de RATEIO FINAL, quando no conjunto de credores sociais haja credores com garantias reais e credores comuns, distorce a regra da proporcionalidade e o princípio da igualdade de credores, beneficiando, a final, os credores hipotecários e, como tal, privilegiados, em prejuízo dos credores comuns, sempre que 75% do produto da venda dos bens hipotecados não seja suficiente para pagar integralmente aos credores hipotecários e sempre que o total das custas e demais despesas da falência não esgote o valor retido em cumprimento do art. 211.°.
Afirma-se neste momento que, em certas e frequentes circunstâncias, o RATEIO PARCIAL viola a regra da proporcionalidade e o princípio da igualdade de credores.
Prove-se, então, esta afirmação.
Determina o art. 209.°: “liquidados os bens onerados com garantia real, e sem prejuízo do disposto nos artigos 211.° e 213.°, é imediatamente feito o pagamento ao respectivo credor, o qual, não ficando integralmente pago, é logo incluído pelo saldo entre os credores comuns”.
E o art. 211.° vem dizer: “Os pagamentos aos credores com garantia real e os rateios parciais devem ser efectuados de modo que fiquem sempre em depósito 25% do produto de cada um dos bens liquidados, para garantia das custas e demais despesas que forem contadas a final”.
Da conjugação destes dois artigos resulta uma clara obrigatoriedade de pagar de imediato ao credor hipotecário com 75% do produto da venda do respectivo bem hipotecado, podendo verificar-se uma de duas situações:
- 1. O credor fica integralmente pago, uma vez que o valor do crédito é igual ou inferior a 75% do produto da venda;
2. O credor não fica integralmente pago porque o crédito é superior a 75% do produto da venda, determinando o art. 209.° que, nesta situação, o credor é logo incluído pelo saldo entre os credores comuns.
E é aqui, nesta segunda situação que, havendo rateio parcial, é violada a regra e o princípio supra referidos. Para constatar e se entender, na prática, esta violação, vai exemplificar-se, tomando números aproximados de um caso concreto que serve de base a todo este raciocínio daqui em diante.
Considerando que:
- a) a massa falida é constituída pelo produto da liquidação de bens imóveis;
b) existe um credor privilegiado;
c) existem credores comuns;
d) foi feita a retenção dos 25% exigidos pelo art. 211.°;
e) há em deposito quantia que assegura uma distribuição não inferior a 5% do valor dos créditos comuns, satisfazendo se a condição do art. 210.°.
f) para simplificação, não se consideram adiantamentos feitos para pagamento de despesas e remuneração do liquidatário.
e,
- 1. O BANCO X tem um crédito de 320000 contos sobre a falida EMPRESA A, garantido com hipoteca;
2. O produto da venda do bem hipotecado foi de 240000 contos;
3. O conjunto dos outros credores comuns (toma-se o seu valor em conjunto para facilitar a exposição) adiante designado por CREDOR C, detêm créditos sobre a EMPRESA A que totalizam 586 000 contos;
4. A venda dos bens não onerados ascendeu a 94000 contos;
5. As custas e demais despesas da falência atingiram o montante de 43500 contos.
Temos todos os elementos para elaborar o Plano e Mapa de Rateio Parcial.
Assim, perante estes dados, e aplicando o determinado pelo Código no capítulo acima referido, vai elaborar-se um Rateio Parcial seguido de Rateio Final, e a seguir confrontar-se os resultados obtidos com os que se obteriam se houvesse apenas a elaboração de um rateio, a final.
Em cumprimento do art. 209.°, foi pago de imediato ao credor com garantia real, o BANCO X, o valor de 180 000 contos (= 75% x 61605; 240 000), ficando em depósito o valor de 60 000 contos (= 25% x 61605; 240 000) para cumprimento do art. 211.°. Este credor, como não ficou integralmente pago, passou a ser incluído entre os credores comuns pelo valor de 140 000 contos — art. 209.° — isto é, pelo valor correspondente à diferença entre o seu crédito e o que recebeu do produto da venda (= 320 000–180 000);
Também em cumprimento do art. 211.° se reteve em depósito o valor de 23500 contos correspondente a 25% do valor de venda dos bens não onerados (= 25% x 61605; 94 000). Então agora e relativamente ao produto da venda dos bens, vai elaborar-se um quadro síntese que evidencia, além do valor da venda, a retenção de 25% em depósito e o valor a distribuir em rateio parcial.
Quadro I — (Un: contos) *
Da análise do quadro anterior, verifica-se que o valor retido em depósito é de 83.500 contos e o valor a poder ser distribuído em rateio parcial é de 70 500 contos.
Relacionem-se de seguida os credores comuns para o rateio parcial:
Quadro II — (Un: contos) *
O art. 210.°, no seu n.° 1, determina que: “Sempre que haja em depósito quantias que assegurem uma distribuição não inferior a 5% do valor dos créditos comuns, o liquidatário judicial apresentará, com o parecer da comissão de credores, para ser junto ao processo principal, o plano e mapa de rateio que se entenda dever ser efectuado.”
Dos cálculos acima, verificamos que o valor de 70 500 contos disponível para distribuir pelos credores comuns, representa 9,7107438% (= 70 500 : 726 000 x 61605; 100) do valor dos créditos comuns, havendo, portanto, condições para efectuar um rateio parcial uma vez que o valor disponível é superior aos 5% exigidos pelo art. 210.°. Assim, pode pagar-se aos credores comuns, em rateio parcial, 9,7107438% do seu crédito. Calculem-se esses valores:
Quadro III — (Un: contos) *
Neste rateio parcial, o BANCO X (aqui credor comum) recebeu mais 13 595 contos além dos 180 000 que tinha recebido por força do art. 209.°, e o CREDOR C recebeu 56 905 contos, transitando para rateio final com os créditos comuns de, respectivamente, 126 405 contos e 529 095 contos.
Assim, o BANCO X ainda tem como crédito o valor de 126 405 e o CREDOR C ainda tem como crédito o valor de 529 095.
Nestas condições, pode passar-se sem delongas à elaboração do Mapa de Rateio Final.
Pela análise do Quadro I (constituição do valor retido em cumprimento do art. 211.°) verifica-se que o produto da venda dos bens com garantia real a favor do BANCO X contribuiu com 71,86% (= 60 000 : 83 500 x 61605; 100) do total e que o produto da venda dos bens não onerados contribuiu com 28,14%
(= 23 500 : 83 500 x 61605; 100) desse mesmo total.
Após o pagamento das custas e demais despesas da falência, agora a efectuar com precipuidade nos termos do art. 208.°, o saldo em depósito passou a ser de 40 000 (= 83 500 – 43 500 ) contos.
Este valor em saldo (e que foi no inicio retido) terá de ser distribuído pelos credores, mas parte dele resulta da venda de um bem sobre o qual existia hipoteca, pelo que não pode entrar no rateio final em benefício dos credores comuns.
Assim sendo, ter-se-á de repartir este saldo de 40 000 contos calculando o valor que deve ser pago ao BANCO X, credor com privilégio, e o valor que deve ser distribuído em rateio final pelos credores comuns.
Aplicando ao saldo em depósito (40 000) as percentagens resultantes do Quadro I, determina-se qual o montante em saldo que teve origem no produto da venda do bem hipotecado, a ser pago ao BANCO X, e o que teve origem no produto da venda dos bens não onerados, a ser distribuído em rateio final pelos credores comuns.
Assim, tem-se que o valor de 28 744 contos (= 71,86% x 40 000 ) deve ser pago ao BANCO X (credor privilegiado)
e
o valor de 11 256 contos ( = 28,14% x 40 000 ) deve ser distribuído aos CREDORES COMUNS em rateio final. O total dos créditos comuns para rateio final é, como evidencia o Quadro III, de 655.500 contos.
O valor a distribuir é, na sequência do parágrafo anterior, de 11 256 contos, ou seja, 1,717% do total dos créditos comuns (11 256 : 655 500 x 100).
Isto é, cada credor comum irá receber em rateio final mais 1,717% do seu crédito e, como tal, também o BANCO X, pois passou a integrar o saldo comum pela não satisfação da totalidade do seu crédito.
Assim,
Quadro IV — (Un: contos) *
Tem-se que, em rateio final, o BANCO X recebeu mais 2 171 contos e o CREDOR C recebeu mais 9 085 contos.
Veja-se, então, quanto recebeu o BANCO X, credor com privilégio no final com a elaboração dos dois rateios:
• Pagamento após a venda do bem onerado (art. 209.°) 180 000 contos
• Valor após rateio parcial 13 595 contos
• Valor da retenção (art. 211.°) não utilizado 28 744 contos
• Valor após rateio final 2 171 contos
TOTAL RECEBIDO 224 510 contos
E, veja-se agora, para se provar aquilo que tenho vindo a afirmar, a situação da elaboração de apenas um rateio final e quanto receberia o BANCO X, credor privilegiado, se só tivesse havido este rateio.
Determina-se, primeiro, o valor que o BANCO X recebeu como resultante do produto da venda do bem hipotecado e, em consequência, qual o saldo do seu crédito que entra como crédito comum para o único rateio a fazer:
• Valor total do crédito do BANCO X 320 000 contos
• Pagamento após a venda do bem onerado (art. 209.°) 180 000 contos
• Valor da retenção (art. 211.°) não utilizado 28 744 contos
• Total recebido do bem onerado 208 744 contos
SALDO PARA CRÉDITO COMUM DO BANCO X 111 256 contos
Relembrem-se também os valores anteriores para se proceder ao único rateio a fazer no final, após conhecimento das custas e demais despesas da falência:
- 1. O CREDOR C detém créditos comuns no valor de 586 000 contos;
2. O valor a distribuir pelos credores comuns é de 81 756 contos, resultante da soma do valor de 70 500 contos ini-ciais (Quadro I) com o valor de 11 256 contos que ficou disponível após pagamento das custas e demais despesas da falência;
3. O crédito comum do BANCO X é de 111 256 contos conforme cálculos acima.
O total dos créditos comuns é, agora, de 697 256 contos
(= 586 000 + 111 256) e o valor de 81 756 contos a distribuir representa 11,72539% (81 756 : 697 256 x 61605; 100) do total dos créditos comuns, pelo que cada credor recebe em rateio 11,72539% do seu crédito.
Têm-se agora todos os dados para elaborar o quadro do rateio final:
Quadro V — (Un: contos) *
e para determinar quanto receberia o BANCO X nesta hipótese de haver um único rateio no final:
• Pagamento após a venda do bem onerado (art. 209.°) 180 000 contos
• Valor da retenção (art. 211.°) não utilizado 28 744 contos
• valor após único rateio a final 13 045 contos
TOTAL RECEBIDO 221 789 contos
Conforme resulta claro, o credor privilegiado (com hipoteca), o BANCO X, recebeu 224 510 contos em consequência de rateio parcial seguido de rateio final e receberia apenas 221 789 contos se apenas houvesse, a final, um único rateio. Isto é, o credor privilegiado recebeu, por força de rateio parcial seguido de rateio final, mais 2 721 contos do que receberia se apenas fosse elaborado um único rateio, a final.
Isto prova que, a regra da proporcionalidade e o princípio da igualdade dos credores foram postos em causa.
Conclusões
- 1. Se no decurso de uma acção falimentar forem reclamados créditos com garantias reais, estes são verificados e graduados como credores privilegiados;
2. Se se der cumprimento ao art. 209.° seguido de rateio parcial nos termos do art. 210.° e seguintes;
3. Se o rateio final é, assim, precedido de rateio parcial;
4. Se o saldo retido ao abrigo do art. 211.° não se esgota com o pagamento das obrigações da massa a que está destinado;
Será, então, de todo legítimo afirmar, pela demonstração precedente, que se distorce a regra da proporcionalidade e consequentemente se viola o princípio da igualdade dos credores.
E esta distorção da regra da proporcionalidade e da violação do princípio da igualdade de credores, será tanto maior quanto maior for o crédito do credor privilegiado e o peso relativo do seu crédito como comum no total de créditos comuns
e
quanto maior for o valor a distribuir, em rateio final, resultante do saldo dos valores retidos em cumprimento do art. 211.°,
isto é, quanto menor for a absorção, em função do pagamento dos encargos da massa falida, do valor retido (25%).
Por esta via se prova que o RATEIO PARCIAL seguido de RATEIO FINAL, quando no conjunto de credores concorrentes haja credores com garantias reais e credores comuns, distorce a regra da proporcionalidade e viola o princípio da igualdade de credores, beneficiando, a final, os credores hipotecários em prejuízo dos credores comuns, sempre que 75% do produto da venda do bem hipotecado não seja suficiente para pagar integralmente ao credor hipotecário, e sempre que as custas e demais despesas da falência não esgote o valor retido em cumprimento do art. 211.° do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.