Vítor Miragaia - Acórdão do Conselho Superior de 18 de Janeiro de 2002
Acórdão do Conselho Superior de 18 de Janeiro de 2002
Relator: Dr. Vítor Miragaia
Nos processos sujeitos a jurisdição disciplinar da Ordem dos Advogados, tem esta o poder de qualificar como criminosa, ou não, a conduta revelada pelos factos susceptíveis de integrarem infracção disciplinar, para efeitos de aplicação, ou não, das amnistias da alínea mm) do art. 1.° da Lei 15/94, de 11 de Maio, e da alínea c) do art. 7.° da Lei 29/99, de 12 de Maio.
Reunidos em Plenário, acordam os do Conselho Superior da Ordem dos Advogados:
1—No Conselho Distrital … correram termos vários processos disciplinares contra o Sr. Dr. … que, nos termos do art. 110.° do E.O.A., foram apensados ao N.° 11/D/1996.
No acórdão de fls. 109 e segs., depois de se historiar a marcha dos processos e a prova indiciária existente contra o arguido, decidiu-se no seguinte sentido:
Os factos imputados ao Sr. Dr. … foram praticados antes de 25 de Março de 1999 e estão, por isso abrangidos pela amnistia decretada pela Lei 29/99, de 12 de Maio (art. 7.°, alínea c).
Todavia, esta lei não abrange os ilícitos disciplinares que constituam simultaneamente ilícitos penais.
Daí que, passando-se à análise de cada uma das condutas imputadas ao arguido, se tenha concluído que:
a) Os factos denunciados nos processos 11/96, 16/96 e 3/97 indiciam fortemente a prática de crime de abuso de confiança.
Relativamente a estes 3 processos apenas há notícia de ter sido instaurado procedimento criminal quanto aos ilícitos denunciados no proc. 16/96, não havendo, no que concerne aos outros dois, notícia da existência de qualquer processo-crime.
Ordenou-se o arquivamento dos processos disciplinares 11/96 e 3/97, sem prejuízo da sua reabertura caso se venha a verificar a pendência de procedimento criminal pelos factos que constituem as infracções disciplinares objecto dos mesmos.
Rodapé Media URL Media Quanto ao processo 16/96 ordenou-se a sua suspensão até trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida no processo?crime pendente no Tribunal Judicial de …
b) No que respeita aos processos disciplinares 12/96 e 15/96 entendeu-se estar indiciada a prática de crime de abuso de confiança, não havendo contudo notícia da instauração de procedimento criminal.
Este já estaria prescrito, a não ter sido exercido. O certo é que, não se sabendo se o foi ou não, ordenou-se o arquivamento dos autos, em sede disciplinar, sem prejuízo da sua reabertura se se verificar que foi instaurado processo-crime e que este se encontra pendente.
2—Do acórdão acabado de resumir interpôs recurso o Sr. Bastonário que indicou sumariamente os respectivos fundamentos, nos termos do art. 70.° N.° 3 do Regulamento Disciplinar.
O recorrido não alegou.
3—A questão fulcral que se põe no presente recurso depende da resposta a dar à seguinte questão: a Administração (no caso concreto a Ordem dos Advogados) está ou não impedida de qualificar certo facto, que constitui infracção disciplinar, como integrador também de ilícito criminal, para efeitos de não aplicação, em processo disciplinar, das amnistias da alínea mm) do art. 1.° da Lei 15/94, de 11 de Maio, e da alínea c) do art. 7.° da Lei 29/99, de 12 de Maio?
4—O acórdão recorrido entendeu que tal impedimento se verifica, na esteira do que, rompendo com a sua tradicional jurisprudência (1), decidira também o Conselho Superior no acórdão proferido em 30/01/98 no processo R/52/97.
A polémica gerada em torno dessa inflexão jurisprudencial deu azo a que o Conselho Superior tivesse então divulgado uma “Nota Informativa” em que defende a bondade da sua decisão com os argumentos utilizados no acórdão de 30/01/98.
Sustenta-se aí, em resumo, que:
- — “a qualificação de um facto como constituindo ou não infracção penal é reserva exclusiva da jurisdição penal” (…) (“Sendo assim, como nos parece, nenhum facto pode ser prejudicialmente qualificado em processo disciplinar como constituindo ilícito disciplinar e, consequentemente, não existindo nos autos prova da decisão em processo penal sobre tal qualificação, o processo não deve prosseguir”.
— “a opção entre o “jus pruniendi” e o “jus non pruniendi” depende nomeadamente da qualificação jurídica — como criminosos ou não — que for feita no plano das certezas, aos factos imputados (…) sendo que tal qualificação se encontra reservada à competência exclusiva da jurisdição penal e, assim, aos Tribunais Judiciais — conf. designadamente arts. 32.°-2, 202.° e 203.° da Constituição da República Portuguesa.
— Nenhuma outra entidade poderá, a tal respeito, formular quaisquer juízos de certeza e sem esta não é aceitável, a qualquer prisma, a punição de quem quer que seja, no âmbito criminal ou no plano disciplinar”.
Daí que se tenha concluído que a apreciação, pelos órgãos disciplinares da Ordem, da relevância ou irrelevância criminal dos factos imputados ao arguido, para efeitos de aplicação ou desaplicação da amnistia, constitui usurpação de um poder que a Constituição reservaria aos Tribunais.
5—Sem quebra do devido e merecido respeito, afigura-se que a razão não está ao lado da tese que fez vencimento em 1998, acolhida no acórdão recorrido, mas sim na inversa, que sempre foi a dos órgãos disciplinares da Ordem, frequentemente chamados a pronunciar-se sobre o problema aquando de sucessivas amnistias e da sistemática aplicação que ao longo dos anos fizeram do N.° 2 do art. 99.° do E.O.A..
Sempre foi esse também o entendimento do S.T.A., ressalvada uma ou outra excepção de que se conhece o acórdão de 28/06/79, em que se abona a decisão proferida no processo R/52/97 (2).
Nas mesmíssimas águas navega a Procuradoria-Geral da República, cuja opinião está plasmada no notável parecer de 07/12/95, disponível em http://www.dgsi.pt (Pareceres do Conselho Consultivo, N.° convencional: PGR00000743).
Voltou também a ser essa a posição deste Conselho Superior, iniciado que foi o triénio corrente, tendo-se assim decidido em todos os acórdãos proferidos em recursos para ele interpostos, de que está publicado o de 26 de Maio de 2003 (3).
6—Impõem elementares cautelas que se desconfie duma interpretação da lei que conduza a resultados que o sentimento de justiça e o bom senso manifestamente repudiam.
Vem isto a propósito de a tese perfilhada no acórdão de 30/01/98 conduzir aos seguintes resultados, que se indicam a título meramente exemplificativo:
a) Não poderiam ser disciplinarmente punidos os advogados que tivessem praticado condutas cujo procedimento criminal dependesse de participação sempre que o lesado, por esta ou por aquela razão, tivesse resolvido confiar só na justiça da Ordem dos Advogados e não tivesse, por isso, participado criminalmente (v.g. para não trazer o seu caso para a praça pública).
Entre esses advogados contar-se-iam, por exemplo, os que inclusive no exercício das suas funções ou por causa delas, tivessem cometido crimes tão graves como uma violação, um furto, um abuso de confiança ou uma burla de valor não superior a 60 Ucs (hoje 960.000$00).
b) Ficariam disciplinarmente impunes todos os advogados, por mais graves que fossem os crimes por si cometidos, se a acção penal nunca tivesse sido exercida.
c) Todos os processos disciplinares pendentes na Ordem dos Advogados, cujo Estatuto não prevê pena superior à de suspensão (conf. art.˚ 1 03.˚), ficariam suspensos até que decorressem todos os prazos de prescrição do procedimento criminal, para, só então, se considerarem amnistiados os factos neles denunciados.
É que se, como se escreve no acórdão de 30/01/98, “a qualificação de um facto como constituindo ou não infracção penal é da reserva exclusiva da jurisdição penal”, à Ordem estaria vedado pronunciar-se sobre a relevância ou irrelevância criminal de toda e qualquer conduta e, consequentemente, não poderia aplicar ou desaplicar a amnistia enquanto os Tribunais não se pronunciassem com trânsito em julgado, sobre a natureza criminosa ou não criminosa dessa mesma conduta. A alegada intromissão da Ordem na função jurisdicional, reservada pela Constituição aos Tribunais (4), seria, com efeito, exactamente a mesma quando qualificava um comportamento como criminoso ou como não criminoso.
6.1—Consequências destas seriam intoleráveis, altamente desprestigiantes para a Ordem dos Advogados e para a Advocacia, sendo de rejeitar liminarmente que possam ter sido queridas pelo legislador, por muito insensato que este às vezes seja. Acresce que ao intérprete compete corrigir um ou outro desvario que aquele cometa (art. 9.° N.° 3 do Código Civil).
Não se desconhece, é certo, o cada vez mais polémico art. 8.° N.° 2 do Código Civil. E, sobretudo, não se esquece que o dever de obediência à lei não admite tergiversações se ela for a lei fundamental.
Isso em nada obsta a que se continue a entender que a tradicional e actual jurisprudência deste Conselho não viola qualquer norma ou princípio constitucional.
Não se vai aqui repetir o que já foi exaustivamente exposto no acórdão de 26 de Maio de 2000 e no parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 07/12/95, para cujas fundamentações se remete.
Dir-se-á única e sucintamente que:
a) O direito disciplinar é independente, autónomo, do direito criminal, sendo diferentes os fins e fundamentos das suas jurisdições. Neste âmbito não se coloca sequer o princípio “ne bis in idem”.
No direito disciplinar protegem-se os valores deontológicos por que se rege, neste caso, o exercício da advocacia, enquanto no direito criminal se punem as ofensas intoleráveis dos valores ético-sociais ou dos interesses fundamentais da vida em sociedade (5).
b) Nos processos sujeitos à jurisdição disciplinar da Ordem dos Advogados cabe no poder de apreciação deste o exame da relevância ou irrelevância criminal dos factores denunciados.
c) A qualificação desses factos como integradores ou não dum tipo legal de crime deve ser feita pelos órgãos com competência disciplinar da Ordem para efeitos de aplicação ou desaplicação da amnistia às infracções disciplinares.
d) A mesma qualificação deve ser feita para aplicação do art. 99.° N.° 2 do E.O.A..
e) Sem quebra de respeito, o acórdão recorrido confundiu o direito de punir criminalmente (esse, sim, reservado pela Constituição aos Tribunais) com o direito de qualificar uma conduta como criminosa.
Ao qualificar um facto como integrador dum tipo de crime, os órgãos da Ordem não estão a agir em sede de aplicação de qualquer sanção penal, mas antes, ao abrigo da autonomia do procedimento disciplinar, a enquadrar esses factos tendo em vista o mero exercício do seu poder disciplinar.
f) Nada impede sequer que um advogado seja disciplinarmente punido pela prática de factos considerados não aprovados em sede criminal (6).
É que a sentença penal absolutória penal constitui mera presunção da inexistência dos factos imputados ao arguido, ilidível mediante prova em contrário.
Já assim era no domínio do art. 154.° do C.P.P. de 1929 e assim continua inequivocamente a ser depois da entrada em vigor do art. 674.°-B do C.P.C., sem que o deixasse de ter sido na vigência do actual Código de Processo Penal que, propositadamente, deixou à doutrina e à jurisprudência a tarefa de preencherem a lacuna que abriu ao abster-se de regulamentar a eficácia do caso julgado.
7—Do exposto resulta que, regressado que seja ao Conselho Distrital, o processo deve prosseguir os seus termos.
O mesmo é dizer que, pelos fundamentos expostos, se concede provimento ao recurso, anulando-se o acórdão recorrido.
Notifique-se e registe.
Lisboa, 13 de Julho de 2001