José Miguel Júdice e João Correia - O tronco comum de formação


Pelos Drs. José Miguel Júdice e
João Correia

Uma das áreas em que mais se deve fazer sentir o esforço reformista é, sem dúvida, a da formação. Ao longo dos últimos trinta anos degradou-se claramente o nível médio da formação liceal e, como decorrência quase automática, da universitária. Mas para além da degradação, alterou-se sensivelmente o paradigma universitário, sem que a isso se tivesse prestado a mínima atenção.

Até há 30 anos, para o bem e também para o mal, o ensino era elitista e destinado a preparar os dirigentes futuros do País. A massificação do ensino fez com que a generalidade das universidades deixassem de poder desempenhar tal papel. A democratização do ensino é uma maravilhosa conquista da modernidade. A brutal diminuição de qualidade é a outra face dessa moeda, sobretudo causada pela incapacidade do sistema em se adaptar à nova e súbita realidade.

O que isto tem de grave para o que aqui nos interessa, é que as tradicionais profissões jurídicas, como a Advocacia e as Magistraturas, são e têm de continuar a ser profissões técnica e culturalmente de elite, e as complexidades do Mundo moderno cada vez mais exigem que assim seja. Do choque entre massificação e impreparação com as necessidades de elevadíssima qualidade formativa, nasceu uma realidade dicotómica que em si mesma destrói grande parte da beleza da democratização do ensino: criou-se um sistema a duas velocidades, em que a excelência de alguns (que são inteligentes, trabalhadores e caíram em melhores escolas) está paredes meias com a mais evidente falta de qualificações (dos menos dotados, preguiçosos e desmotivados, que foram parar a escolas que parecem ser do 3.° Mundo), todos no entanto obtendo do desinteresse do Estado, aliado objectivamente ao mercantilismo sem limites, um título que aparentemente habilita para a vida profissional.

Esta questão tem muitas vertentes, não sendo possível abordá--la aqui, a todas dando atenção. No quadro da série de textos com propostas reformistas para levar ao Congresso da Justiça, interessa-nos tratar sobretudo da reforma do actual sistema de formação profissionalizante que — apesar de reformas positivas e da sua utilidade inequívoca, sobretudo atentas as circunstâncias supra-mencionadas — deixa muito a desejar, em função das necessidades de criação de elites profissionais no Mundo do Direito.

Esta reflexão é tanto mais importante quanto a passagem de um sistema com poucos alunos em 2 Faculdades de Direito (realidade existente há menos de 30 anos, ainda), para um outro com mais de 20 Faculdades de Direito com muitos alunos, destruiu todo o sentido de pertença a uma comunidade que sentiam no nosso tempo todos os licenciados em Direito, fosse qual fosse a direcção para que orientavam os seus passos profissionais. Tudo isso acabou e a formação separada se encarregou de criar uma ruptura cultural, cujos efeitos deletérios se fazem sentir no dia a dia dos tribunais. Hoje, os mais jovens Magistrados e Advogados não se sentem Colegas. Nisso se revela uma tragédia e uma maldição, se não formos capazes (os que ainda nos lembramos de quando não era assim) de fazer as mudanças essenciais e urgentes.

A isto acresce que o processo de globalização e de internacio-nalização, aliado à criação de um espaço jurídico-político-cultural europeu, está a provocar profundos processos de mudança, de que a Declaração de Bolonha é fonte inspiradora, e a redução para 4 anos dos cursos universitários é uma das mais evidentes concretizações. Por tudo isto afirmamos que um programa de reforma da formação profissionalizante deve tomar em linha de conta e nunca esquecer as características e os pressupostos de que acabamos de falar. É nesse contexto que apresentamos um conjunto de propostas de reforma para reflexão e posterior contributo para os consensos essenciais:

1. As profissões jurídicas devem criar em conjunto uma Comissão de análise da adequação do ensino de Direito às suas necessidades. A Ordem dos Advogados iniciou há cerca de um ano o processo e tem, naturalmente, todo o desejo de partilhar com as Magistraturas o trabalho feito em articulação com as Universidades.

2. Tal análise deve ser instrumental do aumento do grau de exigência que as Universidades devem imprimir ao seu ensino, de modo que se não criem ilusões inúteis e prejudiciais para os próprios estudantes, com licenciados cujo nível de preparação é manifestamente insuficiente à saída, estando por vezes abaixo dos mínimos sem os quais não deveriam poder sequer entrar nas Universidades.

3. Não devem ser aceites como dando acesso à formação profissionalizante nas profissões os cursos de Direito com menos de 4 anos, acrescido de um 5.° ano (mestrado, de acordo com a tendência para que apontam os trabalhos a nível europeu na sequência da Declaração de Bolonha).

4. O 5.° ano — para quem queira mais cedo ou mais tarde escolher uma Magistratura como destino profissional ou queira, como Advogado, estar habilitado a exercer patrocínio forense — deve ser um Mestrado comum, que às profissões nestes termos definidas será de acesso obrigatório. As Faculdades deverão obter do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) e da Comissão Nacional de Formação da Ordem dos Advogados (CNF) (ou do que lhes vier eventualmente a suceder) uma Certificação de Adequação, sem a qual o mestrado não será aceite como condição suficiente de ingresso.

5. O CEJ e a CNF devem disponibilizar-se para ajudar na montagem e na operacionalização destes Mestrados, se para tal forem solicitados pelas Universidades, sendo possível que no programa curricular de tais cursos se integrem matérias de Deontologia e de Boas Práticas que se avalizadas pelo CEJ e CNF serão aceites, em caso de classificação positiva na fase de formação seguinte. No final do ano lectivo haverá um prova pública — escrito e/ou oral — em que só a obtenção do resultado positivo permitirá atribuição do grau de Mestre.

6. A formação profissionalizante para os Mestres em Direito que queiram obter a autorização de exercício de cada uma das profissões (Magistrado Judicial e do MP, Juiz de Paz, Advogado) deve ser organizada no âmbito do Conselho Superior de Justiça (se vier a ser criado, como defendemos), que deve corresponder aos actuais CEJ e CNF (e a que chamaremos Comissão Nacional de Formação Judiciária—CNFJ). Deverá haver matérias comuns a todos e outras diferentes, em função das especificidades de cada profissão, devendo tal formação ser realizada de forma descentralizada nos actuais centros do CEJ, Centros de Estágio da OA, eventualmente nas Universidades e até em outras entidades aprovadas, tendo lugar todos os anos um ou dois exames nacionais escritos e, em certas condições orais, sem cuja aprovação não será possível o acesso às profissões.

7. Esta formação profissionalizante deverá incluir — entre outros trabalhos — estágios remunerados a realizar em tribunais e outras instituições judiciárias ou escritórios de Advogados, nada impedindo que a opção pelo estágio tenha forçosamente de coincidir com o destino final, pois este será determinado pela aprovação nas provas finais. Por esse motivo nada impedirá que um Mestre realize com proveito, em simultâneo ou em anos diferentes, as provas para acesso a mais de uma profissão jurídica, ficando assim em condições de, ao longo da sua vida, exercer actividade profissional como Magistrado ou como Advogado, consoante a sua vontade e as necessidades do sistema.

8. A CNFJ deve ser a coordenadora das acções de formação contínua para cada uma das profissões, sem cuja frequência mínima, quinquenal ou trienal a determinar, não será possível continuar a exercer a profissão. Deste modo os profissionais que se formaram inicialmente em conjunto e que terão tendência em número significativo para obtenção das licença para exercer mais de uma das profissões, continuarão a manter formação conjunta e aberta, para não perderem essa possibilidade, que os mecanismos de acesso aos tribunais superiores que proporemos noutro texto tornam ainda mais justificado.

9. A CNFJ deverá funcionar de forma descentralizada no território, especializada nas áreas profissionais principais e diversificada em função de cada uma das profissões. A CNFJ deve colaborar com a formação que seja feita por outras profissões próximas (notariado, conservadores, solicitadores, funcionários judiciais, etc) e com a formação que a OA fará para os que pretendem ser Advogados, mas não exercer o patrocínio forense. Esta formação diferente feita pela OA permitirá, com alguma formação complementar, a obtenção de qualquer das licenças forenses.

Não temos qualquer dúvida sobre o carácter polémico e controverso destas propostas. Cremos aliás que é essa a opção que fizemos em relação a todas as propostas reformistas incluídas nesta série de textos. Julgamos aliás que a sua polemicidade é em si mesma útil para o debate e a criação de consensos.

Mas se não temos disso dúvida, ainda menos temos em afirmar que o actual modelo de formação das profissões jurídicas é altamente inconveniente em muitos aspectos, de que salientamos (i) a sua inadequação ao Mundo moderno; (ii) a criação de barreiras culturais e intelectuais entre as profissões que dificultam o trabalho em comum e o respeito mútuo, além de reforçarem um espírito de casta; (iii) a tendência para uma formação formalista e abstracta, que não atende aos aspectos essenciais e substanciais.

A adopção deste tronco comum, seja na formação inicial seja na contínua, trará múltiplas consequências no interior das carreiras forenses, gerando condições favoráveis à comunicabilidade entre elas. Mas estes aspectos especiais serão analisados noutros textos, onde matérias como os requisitos do ingresso, da progressão e da especialização dentro de cada carreira, serão abordados.

Por isso é preciso alterar este estado de coisas, o que é muito ajudado pela feliz coincidência das Faculdades de Direito estarem num processo de reforma que se inicia para algumas em 2003/4, pelo que 2006/7 deve ser o ano em que este sistema esteja a funcionar. O que dá um cunho de urgência ao processo reformista que, se bem conhecemos o conservadorismo português, é em si mesmo uma grande sorte para todos.

27/07/2025 23:11:42