Parecer de 17 de Junho de 2005 - A liberdade de expressão do advogado


Parecer aprovado em
17 de Junho de 2005 (Plenário)


Relator: Dr. Alberto Jorge Silva

Sumário:

1. Não preenchem a factualidade típica da infracção disciplinar de falta de correcção e de urbanidade para com o julgador, ou a de ofensa à sua honra, as afirmações dumas alegações de recurso que consubstanciam o exercício do direito de crítica objectiva da sentença recorrida, devendo considerar-se fora da área de tutela típica a que estão associados tanto aqueles deveres deontológicos como os crimes de difamação e de injúrias.


2. O “ambiente” próprio da administração da justiça pressupõe, por parte do juiz, a assunção da tolerância, humildade e disponibilidade aptas a afastar susceptibilidades exacerbadas face a comportamentos de advogados, aceitando deixar recuar os limites dentro dos quais a sua honra e consideração devem ser tuteladas pelo direito (penal ou disciplinar). Assim deve ser, em nome da liberdade de expressão e actuação no exercício do patrocínio e do mandato forense, a qual só pode ser garantida se for afastado o receio da perseguição sancionatória: sem isso, não há advocacia livre e independente nem administração da justiça adequada ao Estado de Direito Democrático.


3. Têm dignidade constitucional o direito ao patrocínio e ao acompanhamento por advogado (artº 20º/2 CRep), assim como a têm o próprio mandato e o patrocínio forenses (artº 208º), o que torna mais evidente e pressuposta a necessidade irrestrita de condições de actuação em inteira liberdade. Tanto a Constituição como a lei ordinária estipulam que a lei “assegura” aos advogados as imunidades necessárias ao exercício eficaz do mandato; imunidade que é “assegurada” pelo reconhecimento legal e garantia de efectivação do direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão (artº 114º/1 e 3/b) da L 3/99, de 13-01).


4. Nos termos do artº 31º/2/b) CPen, o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída, nomeadamente, por tal facto ser praticado no exercício de um direito. Em terrenos como os da criação artística ou do debate político, há agressões típicas da honra que, não obstante, se tornam irrelevantes em nome da liberdade de expressão. Por maioria de razão e maior valor, o efeito justificativo tem de valer também em casos do domínio do exercício do mandato e do patrocínio forense, atentos os motivos referidos.


5. De facto, não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações adequadas à defesa da causa (artºº 154º/3 CPC e 105º/1 EOA/2005) (justificação do facto em razão da defesa da causa). Assim seria mesmo que fossem inverídicas as imputações ou afirmações em causa, hipótese em que vigora a relevância da prossecução de interesses legítimos a que fazem referência os artºº 180º/2 e 181º/2 do CPen: é eficaz a presunção derivada da dignidade constitucional do patrocínio e do mandato forense reforçada pela presença da actuação de boa-fé.


6. Esta remissão para a boa-fé é coonestada pelo nº 20 dos Princípios Básicos Relativos à Função dos Advogados aprovada pela Assembleia da ONU e que diz: “Os advogados gozam de imunidade civil e penal por todas as afirmações pertinentes feitas de boa-fé, por escrito ou em alegações orais ou no âmbito das suas intervenções profissionais perante um tribunal judicial ou outro ou uma autoridade administrativa”. Visa assegurar aos advogados a representação dos seus clientes ou a defesa das suas causas sem qualquer receio de repressão ou perseguição, sendo evidente que a lei portuguesa se conforma com esta disposição e a intenção subjacente; e ela suporta a melhor interpretação das normas deontológicas apreciadas e está conforme com a circunstância de o princípio da boa-fé atravessar todo o nosso ordenamento jurídico de forma estruturante.

 

Parecer

 

1. Para “os fins tidos por convenientes” o Sr Juiz participante mandou extrair e enviar à Ordem dos Advogados (OA) certidão de várias peças dum processo em que o  … participado actuou como mandatário. Constam da certidão, além do mais, as seguintes peças:


a) Alegações de recurso para o Tribunal da Relação de …, subscritas pelo participado, interposto da sentença final proferida no dito processo pelo participante (fls 27-81);

b) Despacho proferido a fls 1528 ss dos autos no qual, em suma, o mesmo Ex.mo Juiz se insurge contra os termos das alegações que configurariam violação de deveres legais (fls 82-85).

 

Constituindo este despacho uma participação disciplinar(1), foram cumpridas as pertinentes formalidades legais e regulamentares e determinada a apreciação liminar nos termos do artº 117º do EOA/1984. Notificado para se pronunciar sobre a participação, o Sr Advogado participado veio fazê-lo nos termos que se vêem a fls 91 e aos quais adiante voltarei.

 

Por ofício de 07-01-2005 o Conselho Distrital de … enviou a este CS nova certidão remetida do referido Tribunal por ordem do Ex.mo Juiz participante. Contém os seguintes documentos:
(i) Peça apresentada no processo judicial pelo Ex.mo Advogado participado, a qual constitui resposta à participação (fls 1551 ss desses autos) (fls 103 ss);
(ii) Cópia de acórdão da Relação de … proferido no recurso a que se reportam as alegações em 1.a) supra;
(iii) Despacho do Meritíssimo Juiz participante sobre a peça citada em 3 (i) supra.

 

Mais recentemente o … participado fez juntar cópia da sentença em causa, conforme solicitei, pois não se encontrava ainda nos autos, ao contrário do referido pelo M.mo Juiz Participante.

 

2. O Sr Juiz participante imputa ao Sr Advogado participado a violação do artº 266º-B/1 CProcCiv. E, por causa de palavras utilizadas nas suas alegações de recurso, acusa-o de “uma tremenda deselegância e uma extraordinária falta de cortesia […] passível até de responsabilidade criminal”; acrescentando não a “promover” apenas porque não acredita que ele tenha “actuado com intenção de cometer qualquer crime, sendo aqueles dizeres causados apenas por algum nervosismo e paixão desnecessária pela causa que defendem, sendo certo que as decisões judiciais podem trazer para as partes resultados menos favoráveis, sem que isso ponha em causa a isenção, rectidão, seriedade e empenho de quem as profere”.


Não obstante, o Sr Juiz considera que as expressões usadas pelo Advogado são “de uma violência incomum, a [seu] ver totalmente injustificadas, umas mais directas, outras mais subtis, que só ao fim de mais de uma década de carreira nesta nobre profissão, e depois de ter proferido muitas decisões, [teve] o desgosto de [lhe] ver dirigidas”.

Acrescenta que “esse desgosto não é pessoal, mas antes institucional”. Considera “triste constatar que […] os profissionais do foro tenham a ousadia de se dirigir nestes termos a um juiz, juiz esse que nenhuma crítica pessoal ou profissional lhes dirigiu nos autos”.


Conclui do jeito seguinte: “Parece-me que para [atacar] a decisão proferida, obviamente discutível como outra qualquer num país democrático, não era preciso tamanha agressividade”.

 

Quais são os ditos factos segundo a participação?
O Meritíssimo Juiz participante aponta os seguintes exemplos de palavras ou expressões das ditas alegações – remetendo para os seus pontos 2, 3, 5, 28-30 e 53 –, aos quais nos restringiremos por manifesta desnecessidade de perquirição mais alongada:

 

a. “A sentença não é isenta e que «isso é incomum e grave em quem julga»”(2);
b. “Maior respeito manifestaria então pelo Tribunal superior”(3);
c. “O valor por metro quadrado encontrado é primário”(4);
d. “A sentença procede de modo totalmente insensato”(5).


3. Como se referiu, o Sr Advogado participado tomou posição quanto à participação: no processo judicial em presença e nos presentes autos. Aqui, fê-lo dizendo:

 

(iv) “A posição que assumi no processo não fez, nem podia fazer, qualquer agravo ao Senhor Juiz”;
(v) “E que o fiz no meu indeclinável dever de patrocínio”;
(vi) “O incomum teor [da sentença recorrida em causa] é mais do que suficiente para a compreensão de como um Advogado digno desse nome deve reagir, como reagiu o respondente”;
(vii) As “peças do processo que o Conselho Superior conhece […] já justificam por si aquilo que foi feito”;
(viii) Informa que a sentença referida foi revogada no recurso.

 

No processo tinha-o já feito nos seguintes termos, resumidamente:

 

(ix) As expressões utilizadas “não têm o mínimo intuito de agravar o Senhor Juiz”;
(x) “Têm a ver, sim, com a crítica necessária e mais do que razoável à decisão”;
(xi) Isto porque a decisão recorrida era “incomum”, “uma sentença em estilo de alegações”;
(xii) Contém uma crítica “humorizada ou sarcástica, a que não faltam as aspas e os pontos de exclamação”, o que “não lhe confere serenidade nem a imagem de isenção que se lhe exigia”;
(xiii) A sentença manifesta “falta de consideração” para com o Perito, os expropriados e decisões precedentes; e mesmo pelo próprio participado e pelo seu trabalho desenvolvido no processo;
(xiv) Com 41 anos de exercício da profissão de advogado nunca conheceu decisão com “características estilísticas tão incomuns e tão desrazoáveis”;
(xv) Como advogado, “não abdica do seu direito de crítica às decisões judiciais e em verberar o que elas tenham de incomum, desrazoável, injusto ou iníquo”.

 

4. Os presentes autos foram, já o disse, distribuídos como de apreciação liminar, nos termos da previsão dos artºº 118º do EOA e 4º do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Advogados (Reg. nº 42/2002), publicado no DR, II Série, nº 234, de 10 de Outubro de 2002. Assim, trata-se apenas de aferir da possibilidade de a conduta participada constituir infracção disciplinar na versão relatada na participação ou de a mesma se revelar manifestamente inviável.

 

5. O advogado comete infracção disciplinar quando, por acção ou omissão, violar culposamente algum dos deveres consagrados no EOA, nas demais disposições legais aplicáveis ou nos regulamentos internos (artº 91º EOA/1984).

Ocorre obviamente, na oportunidade, o disposto no artº 87º/1 do EOA/1984: “O advogado deve, sempre sem prejuízo da sua independência, tratar os juízes com o respeito devido à função que exercem e abster-se de intervir nas suas decisões, quer directamente, em conversa ou por escrito, quer por interposta pessoa, sendo como tal considerada a própria parte”.


E bem assim o citado artº 266º-B/1 CProcCiv (supra nº 4) que estabelece o seguinte: “Todos os intervenientes no processo devem agir em conformidade com um dever de recíproca correcção, pautando-se as relações entre advogados e magistrados por um especial dever de urbanidade”.


De conferir, ainda, são as normas do novo EOA/2005, entradas em vigor posteriormente a todas essas e que, constituindo substrato importante em sede de ilícito disciplinar, terão de ser tidas em conta na medida em que suportem tratamento mais favorável ao participado.


Com elas, deixaram de estar autonomamente consagrados, em norma adrede posta, “deveres para com os julgadores” (referido artº 87º EOA/1984). Mas, por outro lado, além do mais mantém-se estipulado um “dever geral de urbanidade” que abrange os magistrados (artº 91º); e, por outro lado ainda, no capítulo das “relações com os tribunais”, um “dever de correcção” que se encontra consignado, na parte que interessa, nos seguintes termos: “O advogado deve exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade, sem prejuízo do dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente” (artº 105º/1 EOA/2005).


A bem dizer, não há nada de substancialmente novo, pois, quanto a esta última norma, praticamente apenas se substituiu a referência “em branco” à independência do advogado pela delineação dos mais precisos contornos do tal “dever de correcção”; a saber, à custa do “dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente”, despromovendo definitivamente a urbanidade e a correcção a valores não prevalentes em relação a este último: a adequada defesa dos interesses do cliente não pode ser inibida por uma estrita concepção da correcção e da urbanidade devidas, competindo obviamente ao advogado definir, em consciência e de forma responsável, os limites tanto da adequação como os das regras do comportamento interpessoal.


Parece-nos que, por acréscimo, a redução de tutela desse modo operada revoga ou torna ineficaz a referência infeliz do artº 154º/3 CProcCiv à natureza indispensável das palavras do advogado para a defesa da causa(6). E assim terá morrido uma questão que nunca deveria ter nascido.

 

6. Quais as aparências de ilícito disciplinar a que, primo conspectu, poderiam reconduzir-se as afirmações ou imputações arroladas supra, na perspectiva do Ex.mo Participante?
Este utiliza as seguintes palavras: “[pôr] em causa a isenção, rectidão, seriedade e empenho de quem profere [as decisões judiciais]” (cfr nº 4 supra).


Ou por outras palavras (a) a falta grave de isenção dum juiz, (b) a falta de respeito de um juiz da 1ª instância por um tribunal superior, (c) erros primários na apreciação crítica das provas e ou nas conclusões tiradas dos factos e (d) a insensatez duma sentença (cfr supra, nº 2).


Por conseguinte, parecerá que os valores e bens jurídicos vítimas do ataque do participado são predominantemente relacionados com a honra, a honorabilidade ou a consideração, designadamente dum juiz, titular dum órgão de soberania.


Podemos dizer que a urbanidade e a correcção devidas constituem aqui uma espécie de substrato comportamental mínimo de respeito por este bem jurídico, por parte do advogado.


Porém, é consabido que o “ambiente” da administração da justiça impõe (e pressupõe…), por sua vez e por parte do juiz, a aceitação ou assunção de uma tolerância, uma humildade e uma disponibilidade aptas a afastar do espírito e do comportamento a inclinação para permitir que se exacerbe a susceptibilidade a ofensas da honra e da consideração afinal inexistentes ou irrelevantes.


Ou seja, é necessário que o juiz tome consciência desse risco, aceite o sacrifício de tal susceptibilidade e deixe recuar os limites dentro dos quais a sua honra e consideração devem ser tuteladas pelo direito (penal ou disciplinar).

 

Perguntar-se-á: em nome de quê?
Em nome da liberdade de expressão e actuação do titular do patrocínio e do mandato forense, a qual só pode estar garantida se for afastado o fantasma da perseguição sancionatória. Sem isso não há advocacia livre e independente; e sem isso não há administração da justiça compatível com o Estado de Direito Democrático(7).


Têm dignidade constitucional o direito ao patrocínio e ao acompanhamento por advogado (artº 20º/2 CRep)(8); e bem assim o próprio mandato e patrocínio forense(9). O que torna mais evidente e pressuposta a necessidade irrestrita de condições de actuação em inteira liberdade(10).

 

7. Vimos que o texto constitucional estipula expressamente que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato”. E este é até o teor ipsis verbis do nº 1 do artº 114º da L 3/99, de 13-01; cujo nº 3 concretiza da seguinte forma o conteúdo e as garantias de tais imunidades:
“A imunidade necessária ao desempenho eficaz do mandato forense é assegurada aos advogados pelo reconhecimento legal e garantia de efectivação, designadamente:

 
a) Do direito à protecção do segredo profissional;
b) Do direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão;
c) Do direito à especial protecção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa”.

 

Como se verifica, por força da alínea b) transcrita o advogado não pode ser sancionado pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão. O que significa, na parte que nos importa agora, a consagração duma espécie de presunção legal a favor da liberdade de expressão.

 

8. Os órgãos de soberania – e designadamente as decisões dos tribunais – estão sujeitos às regras da convivência próprias do Estado de Direito Democrático, e portanto a serem alvo e objecto do exercício do direito de crítica objectiva, e maximamente da operada por força e em nome do patrocínio forense.


Nestes termos, do ponto de vista tanto penal quanto disciplinar, a crítica não tem qualquer efeito, são irrelevantes,  “por atipicidade, [os] inerentes sacrifícios da honra”(11).


Por isso que não pode pretender-se atribuir responsabilidade criminal ou disciplinar ao … participado em face do carácter obviamente moderado das expressões críticas usadas.


E mesmo que afrontassem a honra do Meritíssimo Juiz participante, seriam de tolerar, porque no exercício do patrocínio. A crítica objectiva da sentença a que o Sr Advogado procedeu concretizou-se em afirmações contendo juízos de valor para lá da pessoa do juiz, dirigidas à decisão e portanto “à margem da factualidade típica”(12) da tutela da honra ou do respeito devido. É ostensivamente a sentença que preocupa o mandatário: ela é que seria não isenta, incomum e insensata; seria outra e não aquela a melhor maneira de manifestar respeito por tribunal superior; primário (friamente algébrico) era o valor por metro quadrado encontrado, visto ser exigida, “uma fixação justa” dum valor indemnizatório (para além da frieza algébrica).

 

9. Mas vamos supor que estamos perante efectivas ofensas típicas ad hominem, à honra do Sr Juiz, quer dum ponto de vista disciplinar, quer para efeitos disciplinares.


O Código Penal constitui direito subsidiário em sede disciplinar da Ordem dos Advogados (artº 100º/a) do EOA/1984). Nos termos do artº 31º/2/b) CPen, o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída, nomeadamente, por tal facto ser praticado no exercício de um direito.


É consabido que, em terrenos como os da criação artística ou do debate político, há agressões patentemente típicas da honra que, todavia, se tornam irrelevantes em nome da liberdade de expressão.


Ora, por maioria de razão e maior valor, o efeito justificativo tem de valer também em casos como o que nos ocupa, isto é, no domínio do exercício do mandato e do patrocínio forense, atentos os motivos já invocados, nomeadamente a localização constitucional da sua consagração.


Além disso, já vimos que a actual “leitura” do preceito do artº 154º/3 do CProcCiv – não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações adequadas à defesa da causa – consagra uma justificação do facto por efeito da defesa da causa.


Por conseguinte, também por isso não poderia haver responsabilização penal ou disciplinar do Sr Advogado participado.


Assim seria mesmo que fossem inverídicas as imputações ou afirmações em causa, hipótese em que vigora a relevância da prossecução de interesses legítimos a que fazem referência os artºº 180º/2 e 181º/2 do CPen(13).  É a eficácia, ao fim e ao cabo, da presunção derivada da dignidade constitucional do patrocínio e do mandato forense reforçada pela presença da actuação de boa-fé.
Ora, a boa-fé do Sr. … é absolutamente ostensiva na integralidade das alegações por ele subscritas.

 

10. Melhor conclusão não poderíamos achar do que esta remissão para a boa-fé. Registemos as seguintes palavras: “Os advogados gozam de imunidade civil e penal por todas as afirmações pertinentes feitas de boa-fé, por escrito ou em alegações orais ou no âmbito das suas intervenções profissionais perante um tribunal judicial ou outro ou uma autoridade administrativa”.


É o nº 20 dos Princípios Básicos Relativos à Função dos Advogados adoptados pelo 8º Congresso das Nações Unidas Para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes. Foram aprovados pela Assembleia Geral da ONU na sua Resolução nº 45/166 de 18-12-1990. Os Princípios Básicos “contêm sugestões pragmáticas relativas ao exercício quotidiano da advocacia” e dão especial atenção a questões como a do “direito dos advogados de assegurarem a representação dos seus clientes ou a defesa das suas causas sem qualquer receio de repressão ou perseguição” (itálico acrescentado)(14).


É evidente que a lei portuguesa se conforma com esta disposição e a intenção subjacente: está conforme com a circunstância de o princípio da boa-fé atravessar todo o nosso ordenamento jurídico de forma estruturante; e suporta a melhor interpretação das normas deontológicas apreciadas.


Ora, de certeza que o Meritíssimo Juiz participante não gostaria que o Advogado …, em vez de pôr naturalmente ao serviço dos interesses que entendia legítimos o seu talento em verbalizar conceitos, concepções e convicções, antes se tivesse deixado guiar pelos seus temores, pelo “receio de repressão ou perseguição”: poderia ter produzido escrito mais agradável ao Ex.mo Juiz participante, mas ter-se-ia porventura desonrado perante a sua própria consciência.

 

11. Tudo visto, proponho que o Pleno do Conselho Superior da Ordem dos Advogados ordene o arquivamento liminar do processo instaurado contra o Sr. … por participação do Sr. Dr. …, Meritíssimo Juiz da …

 

À próxima sessão do Pleno.

 

Braga, 28 de Maio de 2005.

 

O Vogal Relator,

 

(Alberto Jorge Silva)



Notas:

(1) A participação foi apresentada contra dois advogados. Porém, a competência era e é do Pleno do Conselho, quanto a um, e das secções, quanto ao outro. Houve lugar, por isso, à necessária separação de processos.

(2) Em parte nenhuma se lê que a sentença “não é isenta”. O que as alegações dizem, nos pontos que interessam, é exactamente o seguinte: “Após tantos anos de profissão, é a primeira vez que o signatário lê uma sentença em estilo de alegações. […] O estilo incomum da decisão recorrida, ao enveredar pela crítica, humorizada ou sarcástica, a que não faltam as aspas e os pontos de exclamação não lhe confere nem a serenidade, nem a imagem e isenção que se lhe exigia. Não se tratará apenas de desconsiderar o laudo do Sr. Perito designado pelos Exp.dos, de desconsiderar as alegações dos Exp.dos e os argumentos por estes usados, de desconsiderar as decisões judiciais precedentes (embora referindo-as), de desconsiderar a decisão final no processo paralelo da PARCELA 1. É mais do que isso: trata-se de manifestação expressa de falta de consideração para com todos aqueles. E isso é incomum e grave em quem julga” (pontos 1, 2 e 3 das alegações).

(3) O contexto da frase é o seguinte: “e, já agora, alguma consideração deveria ter merecido ao Mer.mo signatário da sentença o Sr. Perito dos Exp.dos, ao menos que fora por poder também verificar que fora este o primeiro a chamar a atenção […] para a inconstitucionalidade do art. 33.° CExp., como assim mesmo veio a declarar o 1.° acórdão do Tribunal da Relação de …; e, porventura, por dever tomar em conta que este foi o único que manteve sempre o mesmo laudo, ao contrário, pois, de todos os outros Srs. Peritos !!! Ademais, em vez de chamar o seu lado, com menosprezo e entre aspas e a itálico, de «papel» […] e de apodar a sua «postura», a itálico de «olímpica indiferença» […], melhor teria feito em reputar de credível o laudo deste Senhor Perito, na senda do já considerado pelo acórdão do Tribunal da Relação que a sentença executava […] Maior respeito manifestaria então pelo Tribunal superior!” (n.° 5 das alegações).

(4) Mais uma vez, o essencial das palavras efectivamente escritas é isto (ponto 28 das alegações: “Se bem que seja primário — numa fixação justa de valor — apenas uma conta de dividir por um tanto por metro quadrado, basta ler aquela decisão final para verificar que, aí, nas proporções devidas, o valor da indemnização se cifra em cerca de Esc. 10.000$00/m2, enquanto na sentença recorrida o valor, primário como se disse, não passa dos Esc. 3.2114$40/m2!!! “

(5) O participado alongou-se nas alegações a explicitar porque considera “insensato” mudar um juízo sobre cada um dos laudos só porque se tratou de dividir em duas sub-áreas o todo da área expropriada (n.os 49-56).

(6) Dizia o preceito: “Não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”. Deve ler-se agora que “não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações adequadas à defesa da causa”.

(7) Sobre a problemática aqui patente, ver DIAS, Jorge Figueiredo-, e ANDRADE, Manuel da Costa-, Limites do Direito de Defesa — O Direito de Defesa em Processo Penal (Parecer – Dezembro 1990), ROA 52.°-I-473. Nessa doutrina tentei sustentar-me, no texto.

(8) Trata o art. 20.° do “acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”, dizendo na íntegra: “1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. – 2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.– 3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça. – 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. – 5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”

(9) Artigo 208.°: “A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.

(10) Mesmo à custa da chamada “redução da tutela da honra” do juiz: cfr op. loc. cit.

(11) Cfr op e loc cit, p 286.

(12) Expressão dos AA. que vimos referindo, p. 291.

(13) Assim: “A conduta não é punível quando […] a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente […] tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”.

(14) In Compilação das Normas e Princípios das Nações Unidas em matéria de Prevenção do Crime e de Justiça Penal, p 204. Os Princípios estão a pp. 243 ss. Trata-se de edição da Procuradoria-Geral da República – Gabinete de Documentação e Direito Comparado, suplemento do BMJ, 1995. Citado por ARNAUT, António-, Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado, 8.ª ed., reimpressão, Coimbra Editora, 2004, p. 108. O Ilustríssimo Advogado autor da obra em boa hora resolveu incluir nela, como anexo, o texto dos Princípios (pp. 329 ss), assim o tornando mais acessível.

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