Parecer da Ordem dos Advogados sobre o Projeto de Decreto-Lei que aprova o Estatuto do Pessoal do Corpo da Guarda Prisional

 

I

O objecto do projecto de decreto-lei

 

            Segundo o declarado no seu art. 1.º,  o projecto de decreto-lei tem por objecto estabelecer o regime jurídico das carreiras especiais do Corpo da Guarda Prisional (CGP), dizendo-se depois, no seu art. 2.º, que se  aplica ao trabalhadores da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) integrados nas carreiras do CGP, independentemente da sua situação funcional.

 

Porém, o projecto de decreto-lei não se limita a estabelecer e a regular o regime jurídico das carreiras especiais do Corpo da Guarda Prisional que, de acordo com o disposto no n.º 1 do respectivo art. 26.º, se agrupam, por ordem decrescente de hierarquia, nas carreiras especiais de chefe da guarda prisional e de guarda prisional, dado que também estabelece normas estatutárias sobre direitos e deveres do pessoal do Corpo da Guarda Prisional, mantendo-se, no art. 29.º do projecto de decreto-lei, a equiparação, que já vinha de trás, ao pessoal da PSP, " para efeitos de determinação da remuneração base, suplementos remuneratórios, pré-aposentação  e aposentação, transportes, proteção social e benefícios sociais. ".

 

            A matéria do projecto de decreto-lei encontra-se presentemente regulada pelo  Decreto-Lei n.º 174/93, de 12 de Maio, que Aprova o Estatuto dos Guardas Prisionais, o qual foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 100/96, de 23 de Julho, pelo Decreto-Lei n.º 403/99, de 14 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 33/2001, de 8 de Fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 391-C/2007, de 24 de Dezembro.

  

 

II

Observações e reservas sobre algumas das normas do projecto de decreto-lei

 

1-      art. 6.º ( incompatibilidades e acumulação de funções )

 

O art. 6.º do projecto de decreto-lei, com a epígrafe " Incompatibilidades e acumulação de funções", estabelece o seguinte:

1 – Os trabalhadores do CGP estão sujeitos ao regime geral de incompatibilidades, impedimentos e acumulação de funções públicas e privadas, aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas em regime de nomeação.

2 – São incompatíveis com o exercício de funções nas carreiras do CGP, todas as actividades e funções privadas que possam afetar a respetiva isenção e imparcialidade.

 

Considera-se, no entanto, que o n.º 2 do art. 6.º deverá "densificar" quais as actividades e funções privadas que podem afetar a respetiva isenção e imparcialidade , através da enunciação exemplificativa de actividades e funções privadas que o legislador considere susceptíveis de afectar a isenção e a imparcalidade dos trabalhadores da guarda prisional.

 

Tal "densificação" permite estabelecer critérios para a concretização da cláusula geral estabelecida no n.º 2 do art. 6.º e evita, dessa forma,  um excesso de zelo arbitrário que possa conduzir a considerar praticamente todas as actividades e funções privadas, como susceptíveis de afectar a isenção e a imparcalidade dos trabalhadores do CGP ou, no seu oposto, a um laxismo que não encontre no exercício de actividades ou funções privadas qualquer óbice à isenção e imparcialidade dos referidos trabalhadores.

 

 

  art. 11.º ( patrocínio judiciário )

 

No art. 11.º do projecto de decreto-lei, sob a epígrafe " Patrocínio judiciário", estabelece-se que:

Artigo 11.º

Patrocínio judiciário

1 - Os trabalhadores do CGP que sejam arguidos em processo judicial, por atos cometidos ou ocorridos no exercício ou por causa das suas funções, têm direito a ser assistidos por advogado retribuído a expensas do Estado e ao pagamento das custas judiciais, bem como a transporte e ajudas de custo, quando a localização do tribunal ou das entidades policiais o justifique.

2 - Os trabalhadores do CGP têm ainda direito a patrocínio judiciário a expensas do Estado por atos de que sejam vítimas, nos termos a definir por despacho do diretor-geral da DGRSP, exarado sobre parecer do diretor do estabelecimento prisional.  

3 – O tempo despendido nas deslocações, previstas nos números anteriores, é considerado serviço efetivo, para todos os efeitos legais.

4 – O advogado referido nos nºs 1 e 2 é indicado pela DGRSP, ouvido o interessado.

 

            Este art. 11.º do projecto de decreto-lei reproduz, com algumas diferenças significativas, o disposto no art. 22.º  do Decreto-Lei n.º 174/93, de 12 de Maio, que Aprova o Estatuto dos Guardas Prisionais, cujo teor é o seguinte:

 

Artigo 22º

Patrocínio judiciário

 

1. O elemento do pessoal do corpo guarda prisional que seja arguido em processo judicial, por actos cometidos ou ocorridos no exercício e por causa das suas funções, tem direito a ser assistido por advogado retribuído a expensas do Estado, bem como a transporte e ajudas de custo, quando a localização do tribunal ou das entidades policiais o justifique.

 

2. O tempo despendido nas deslocações previstas no número anterior é considerado como em serviço efectivo.

 

3. O advogado referido no nº 1 é indicado pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, ouvido o interessado, em termos a regulamentar.

 

            As diferenças residem, por um lado, na substituição de um "e" por um "ou", no tocante à expressão por atos cometidos ou ocorridos no exercício ou por causa das suas funções , o que não se afigura correcto, pois os actos devem ter sido cometidos ou ocorridos  no exercício e por causa das suas funções, uma vez que, quando cometidos ou ocorridos no exercício de funções,  podem não ter sido praticados por causa desse exercício e, portanto, não são actos funcionais.

 

Pense-se, por exemplo, num guarda prisional que, durante o respectivo período de trabalho, joga às cartas com reclusos e vem a agredir um deles. Trata-se de um acto praticado no exercício de funções, mas não por causa desse exercício e, por isso, não constitui um acto funcional.

 

Outra diferença consiste na  concessão do direito a patrocínio judiciário a expensas do Estado por atos de que sejam vítimas.

 

Esta matéria do patrocínio judiciário por factos ocorridos por motivo de serviço também é regulada no art. 60.º do Estatuto do Pessoal da Polícia de Segurança Pública ( aprovado pelo Decreto-Lei n.º 511/99, de 24 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 321/2001, de 14 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 228/2003, de 27 de Setembro e pelo Decreto-Lei n.º157/2005, de 20 de Setembro ), nos termos seguintes:

Artigo 60.º

Patrocínio judiciário

1 – O pessoal com funções policiais tem direito a assistência e patrocínio judiciário em todos os processos-crime em que seja arguido por factos ocorridos por motivo de serviço.

 2 – A assistência e o patrocínio judiciário são concedidos por despacho do director nacional, mediante requerimento do interessado, devidamente fundamentado.

3 – No despacho referido no número anterior é fixada a modalidade em que a assistência e o patrocínio são concedidos, podendo consistir no pagamento dos honorários do advogado proposto pelo interessado ou na contratação de advogado pela PSP.

 

            A previsão de normas específicas sobre a concessão de patrocínio judiciário aos guardas prisionais, embora não exclua a possibilidade de aplicação do regime geral do apoio judiciário, permite, no entanto, prescindir e não aplicar quaisquer critérios de insuficiência económica aí estabelecidos, pois é aplicável a todos os trabalhadores da guarda prisional, independentemente de quaisquer requisitos ou condições de insuficência económica, incluindo àqueles trabalhadores que, à partida e em abstacto, poderiam apresentar uma situação económica mais favorável que os excluísse do regime geral do apoio judiciário, como poderia suceder no caso dos trabalhadores da carreira especial de chefe de guarda prisional que integra as categorias de comissário prisional, chefe principal e de chefe – cfr. n.º 2 do art. 26.º do projecto de decreto-lei.

 

Esta subtracção do patrocínio judiciário ao regime geral do apoio judiciário poderá, no entanto, justificar-se e compreender-se, uma vez que, embora arguidos em processo penal, os actos ocorreram, no exercício e por causa do exercício das respectivas funções, e, mesmo nestas circunstâncias, também não pode deixar de se lhes aplicar o princípio constitucional da presunção da inocência.

 

            Todavia, o patrocínio judiciário a expensas do Estado também vai ao ponto de incluir o pagamento das custas judiciais, incluindo, portanto as custas inerentes a condenação, o que não se compreende, pois se o guarda prisional, no processo em que é arguido, vem a ser condenado no pagamento de custas judiciais é porque foi considerado culpado e, portanto, responsável pela ou pelas infracções de que foi acusado.

 

            Por outro lado, também não se afigura que o princípio constitucional da igualdade perante a lei  permita estabelecer diferenças, em matéria de patrocínio judiciário, entre o  que resulta do art. 60.º do  Estatuto do Pessoal da PSP e o que é proposto no art. 11.º do projecto de decreto-lei para os trabalhadores da guarda prisional.

 

            Na verdade, para além de o direito a patrocínio judicário do pessoal da PSP não comportar o pagamento de custas judiciais finais, o que se afigura correcto, pois, como já se disse, estas só serão devidas se o profissional tiver cometido, culposamente, o ou os crimes de que é acusado, também não lhe é concedido patrocínio especial a expensas do Estado por atos de que sejam vítimas, como se prevê, no n.º 2 do art. 11.º do projecto de decreto-lei em relação aos guardas prisionais, para mais sem se exigir que os atos de que sejam vítimas tenham ocorrido no exercício das respectivas funções e por causa desse exercício, deixando-se assim a porta aberta para esse direito poder abranger quaisquer actos de que os guardas prisionais sejam vítimas, tenham ou não ocorrido no exercício das suas funções e por causa desse exercício.

 

            Considera-se, por isso, que, na regulação do direito ao patrocínio judiciário dos guardas prisionais, se deverá excluir o dever de o Estado lhes reembolsar ou pagar as custas judiciais em que venham a ser condenados em processo de natureza criminal e deverá ser estabelecida uma regulação normativa que, nessa matéria, preveja, em termos de igualdade perante a lei, os mesmos benefícios e condições de acesso, tanto para os guardas prisionais, como para o pessoal da PSP.

 

 art. 14.º ( direito a uso e porte de arma )

 

Este artigo 14.º do projecto de decreto-lei reproduz também, com algumas diferenças, o disposto no art. 24.º  do Decreto-Lei n.º 174/93, de 12 de Maio, que Aprova o Estatuto dos Guardas Prisionais, e o seu teor é o seguinte:

 

 

Artigo 14º

 

Direito a uso e porte de arma

 

1 - Os trabalhadores do CGP em serviço efetivo de funções têm direito ao uso e porte de arma distribuída pela DGRSP, independentemente do seu calibre e licença.

 

2 - Os trabalhadores do CGP no ativo ou aposentado [s] têm direito à detenção, uso e porte de arma, das classes aprovadas por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da administração interna, independentemente de licença, ficando obrigados ao seu manifesto nos termos da lei.

 

3 – A isenção estabelecida no número anterior é suspensa automaticamente quando tenha sido aplicada medida judicial de interdição do uso de armas ou aplicação das penas disciplinares previstas na alínea d) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro.

 

            A Lei 58/2008, de 9 de Setembro, aprova o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem funções públicas e,  na alínea d) do n.º 1 do respectivo art. 9.º, estabelece a pena disciplinar de demissão ou despedimento, por facto imputável ao trabalhador.

 

            Para além do uso e porte de armas no exercício das respectivas funções, os trabalhadores do CGP têm também direito, independentemente de licença, a uso e porte de arma, das classes aprovadas por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da administração interna.

 

O art. 24.º do Decreto-Lei n.º 174/93, de 12 de Maio, que Aprova o Estatuto dos Guardas Prisionais, estabelece o direito à posse, uso e porte de arma de defesa pessoal de sua propriedade, independentemente de licença, mas não prevê, pelo menos de forma expressa, este direito em relação aos guardas prisionais aposentados.

 

O art. 63.º do  Estatuto do Pessoal da Polícia de Segurança Pública é mais amplo, no que toca ao uso e porte de armas que sejam propriedade do agente, pois estabelece, no seu n.º 1, que "O pessoal com funções policiais tem direito à detenção, uso e porte de armas de qualquer natureza, independentemente de licença ou autorização, sendo, no entanto, obrigado ao seu manifesto quando da sua propriedade.", determinando o n.º 2 que este direito não se aplica ao pessoal a quem tenha sido aplicada a pena disciplinar de aposentação compulsiva.

 

            Quer isto dizer que o pessoal da PSP, fora do exercício das respectivas funções, pode usar e trazer consigo quaisquer tipos de armas, o que deve ser entendido, cum grono salis e com as restrições introduzidas pela Lei das Armas e suas Munições, a qual, no n.º 1 do seu art. 4.º, estabelece que São proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A e esta classe A, nos termos do disposto no n.º 2 do respectivo art. 3.º, integra,  entre outras, as seguintes:

 

a) Os equipamentos, meios militares e material de guerra, ou classificados como tal por portaria do Ministério da Defesa Nacional;

b) As armas de fogo automáticas;

c) As armas químicas, biológicas, radioactivas ou susceptíveis de explosão nuclear;

d) As armas brancas ou de fogo dissimuladas sob a forma de outro objecto;

e) As facas de abertura automática, estiletes, facas de borboleta, facas de arremesso,  

estrelas de lançar e boxers;

f) As armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias,

comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção;

g) Quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem

utilizados como arma de agressão; .../... etc. .

 

 

            É certo que o n.º 5 do art. 1.º da Lei das Armas e suas Munições estabelece que " A detenção, uso e porte de arma por militares dos quadros permanentes das Forças Armadas e por membros das forças e serviços de segurança são regulados por lei própria.".

 

            Todavia, sendo a disciplina do nosso sistema jurídico, no sentido de limitar a detenção, uso e porte de armas e de estabelecer a sua utilização, em acções policiais, em condições restritivas,  como resulta do disposto no Decreto-Lei n.º 457/99, de 5 de Novembro, que aprovou o Regulamento do Uso da Arma de Fogo, pelos órgãos e autoridades de polícia criminal, não se compreende que, fora das situações de serviço, seja consentido quer aos guardas prisionais, quer ao pessoal da PSP e de outras polícias o uso e porte de arma, sem a correspondente licença, e muito menos que esta situação de isenção de licença se estenda às situações em que o trabalhador já não se encontra no activo, como sucede com o expressamente previsto, no n.º 2 do art. 14.º do projecto de decreto-lei, para os trabalhadores da guarda prisional que se enontrem aposentados.

 

            Considera-se, por isso, que a detenção, uso e porte de arma, fora das situações de serviço, por parte de elementos da guarda prisional,  das forças policiais ou de outras entidades, como por exemplo, de militares das forças armadas ou da GNR, deverão ser objecto de ponderação sobre se se justifica ou não a dispensa de licença e, em qualquer caso, de uniformização legal, pois,  ainda que previstos e regulados nos respectivos estatutos profissionais, não deverão apresentar discrepâncias entre si, mas obedecer aos mesmos critérios e requisitos.

 

 

III

Em conclusão

 

            A Ordem dos Advogados considera que

 

1-       O art. 6.º do projecto de decreto-lei deverá "densificar" quais as actividades e funções privadas, cujo exercício, pelos trabalhadores da guarda prisional, pode afectar a respectiva isenção e imparcialidade.

 

2-       Pois tal "densificação" permite estabelecer critérios para a concretização da cláusula geral estabelecida no n.º 2 do art. 6.º e evita, dessa forma,  um excesso de zelo arbitrário que possa conduzir a considerar praticamente todas as actividades e funções privadas, como susceptíveis de afectar a isenção e a imparcalidade desses trabalhadores ou, no seu oposto, a um laxismo que não encontre no exercício de actividades ou funções privadas qualquer óbice à isenção e imparcialidade dos referidos trabalhadores.

 

3-       Na regulação do direito ao patrocínio judiciário dos guardas prisionais a expensas do Estado, deverá exigir-se que os actos de que venham a ser arguidos ou de que sejam vítimas tenham ocorrido no exercício das suas funções e por causa desse exercício e não ou por causa de tal exercício, como se prevê, no n.º 1 do art. 11.º do projecto de decreto-lei.

 

4-       E deverá ser excluído o direito de o Estado lhes reembolsar ou pagar as custas judiciais em processo de natureza criminal em que venham a ser condenados, pois se o guarda prisional, no processo em que é arguido, vem a ser condenado no pagamento de custas judiciais é porque foi considerado culpado e, portanto, responsável pela ou pelas infracções de que foi acusado.

 

5-       Devendo, em qualquer caso, ponderar-se uma regulação normativa que, em matéria de patrocínio judiciário, preveja, em termos de igualdade perante a lei, os mesmos benefícios e condições de acesso, tanto para os guardas prisionais, como para o pessoal da PSP.

 

6-       A  detenção, uso e porte de arma, fora das situações de serviço, por parte de elementos da guarda prisional, das forças policiais ou de outras entidades, como por exemplo, de militares das Forças Armadas ou da GNR, deverão ser objecto de ponderação sobre se se justifica a dispensa da correspondente licença.

 

 7-       E, em qualquer caso, deverá ser criada uniformidade legal, nessa matéria, pois, ainda que a detenção, uso e porte de arma, fora das situações de serviço, possam ser previstos e regulados, nos respectivos estatutos profissionais, não deverão apresentar discrepâncias entre si, mas obedecer aos mesmos critérios e requisitos.

 

Lisboa, 10 Setembro 2013

 

 

A Ordem dos Advogados

A. Marinho e Pinto


Relator: Conselho Geral

23/07/2025 09:00:08