Maltratar animais continuará a ser crime, diz Constitucional de uma vez por todas

Depois de várias decisões em sentido contrário, os juízes do Tribunal Constitucional decidiram esta terça-feira manter, de uma vez por todas, em vigor a lei que criminaliza os maus tratos e o abandono dos animais de companhia.

Até aqui, o assunto apenas tinha sido debatido nas diferentes secções do tribunal. Desta vez, o tema foi apreciado em plenário, por todos os conselheiros, na sequência de um pedido de fiscalização abstracta sucessiva feito pelo Ministério Público, tendo a maioria escolhido para relator do acórdão um conselheiro, Teles Pereira, que sempre entendeu que a lei aprovada na Assembleia da República em 2014 e afinada em 2020 está em conformidade com a Constituição.

Esta decisão, que não foi tomada por unanimidade, não impede, porém, que a Justiça portuguesa não possa continuar nalguns casos a ilibar agressores. Depende do entendimento de cada juiz sobre a matéria.

No cerne deste dilema tem estado o princípio segundo o qual só os atentados aos valores constitucionalmente protegidos constituem crime, podendo por isso ser punidos com prisão – como, por exemplo, o direito à vida e à integridade física e moral, à liberdade e à segurança, à propriedade privada e à liberdade de expressão. Entre os juízes do Palácio Ratton não tem existido consenso sobre qual o bem jurídico com expressão constitucional que é violado quando alguém mata ou maltrata um animal de companhia.

Chamado em 2022 a apreciar o caso de um cão maltratado pela dona em Braga, Teles Pereira argumentou que é preciso interpretar à luz da actualidade o artigo 66.º da Constituição, segundo o qual “todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”, cabendo ao Estado assegurar esse direito.

Com seis meses de idade, o cão de Braga era mantido preso com uma corrente de 63 centímetros. Nalguns pontos do pescoço, a corrente tinha criado ferida e sido absorvida. Quando ali chegou, a GNR deparou com o bicho confinado a um logradouro “conspurcado pela sua própria urina e por excrementos frescos e secos de vários dias”, descreve a acusação do Ministério Público.

Na declaração de voto que deixou inscrita no acórdão deste processo, o conselheiro encarregado de agora se pronunciar sobre o assunto de forma geral e abstracta chama a atenção para o facto de a domesticação de cães, gatos e de outros animais, por capricho dos seres humanos, os ter tornado incapazes de sobreviverem sozinhos na natureza. “Na verdade, o que se reconhece na Constituição é que os elementos do mundo natural – aí incluídos os animais – são não só objecto de deveres de protecção do Estado, como também de deveres de protecção de todos os cidadãos”, escreveu.

No seu voto de vencido – já que a maioria dos colegas se pronunciou na altura pela inconstitucionalidade da lei –, Teles Pereira citava o filósofo espanhol Fernando Savater: “Em linguagem ontológica, os animais domésticos não são ‘em si’ nem ‘para si’, mas sim para nós, os humanos.” Daí que “tenha sentido questionar se a forma como os tratamos corresponde a determinados padrões de decência ou de fair play”.

Estando os bichos “sob a protecção – e em certa medida são responsabilidade – dos humanos, podemos reconhecer-lhes um certo tipo de ‘interesse’ em que não lhes sejam impostos padecimentos que estejam para além do serviço que prestam ao ‘intruso’ humano, ou que exprimam esse mesmo interesse em termos supérfluos ou exagerados”.

Mas a questão que mais discordância levantou entre os conselheiros nesta fase terá sido outra: decidir se os conceitos que constam da lei são suficientemente precisos, ou se se revela necessária uma alteração da redacção do Código Penal – e já não da Constituição, como entendiam alguns deles – para os definir melhor. “Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a um ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.” Texto legal que levanta dúvidas de interpretação a alguns juízes: pode um cavalo ou um porco ser encarado como animal de companhia? Que motivos são esses de que fala a lei que podem legitimar os maus tratos? E em que consistem esses maus tratos? Será lícito cortar a causa ou as orelhas a um cão por motivos estéticos?

A chegada desta discussão ao Tribunal Constitucional foi desencadeada pelo caso de um homem a quem foi aplicada a primeira pena de prisão efectiva em Portugal por crimes deste tipo, depois de ter esventrado a sua cadela grávida e colocado as respectivas crias no lixo. Tudo aconteceu na Venda do Alcaide, concelho de Palmela, distrito de Setúbal, há cerca de sete anos. Pantufa foi deixada num canto da casa após a intervenção, sem assistência veterinária. Morreu dois dias depois. O dono foi sentenciado a 16 meses de cadeia, mas recorreu e a pena foi suspensa. No final de 2021, o Constitucional anulou-lhe a pena.

A decisão desta terça-feira de validar a lei dos maus tratos não alterará a situação deste homem, nem a dos restantes arguidos ilibados na sequência de decisões proferidas pelo Palácio Ratton. Caso a lei tivesse sido declarada inconstitucional, os tribunais ficariam impedidos de condenar quem quer que fosse por este crime ou pelo de abandono. A sua validação, pelo contrário, não obriga nenhum juiz a seguir o mesmo entendimento, podendo os magistrados de qualquer tribunal criminal recusar-se a condenar os arguidos acusados deste tipo de delito.

09/05/2025 15:38:05