Técnicos têm maior dificuldade em trabalhar com vítimas pertencentes a minorias

As instituições da rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica não dispõem de todos os recursos de que necessitam para prestar apoio ajustado às necessidades das pessoas de contextos minoritários. Esta é a principal conclusão de um novo estudo desenvolvido na Universidade do Minho com financiamento do Observatório Social da Fundação ”la Caixa”.

O estudo – intitulado Desafios, competências e qualidade de vida dos profissionais que prestam apoio a vítimas de experiências de trauma e violência em Portugal – teve como investigadora principal Mariana Gonçalves, do Centro de Investigação em Psicologia, Escola de Psicologia da Universidade do Minho. O repto lançado pelo Observatório em 2021 era perceber como é trabalhar como profissional de apoio à vítima em Portugal.

Um questionário online foi enviado a todas as instituições da rede nacional tutelada pela Comissão para Cidadania e a Igualdade de Género (CIG). Por essa via, a equipa obteve uma amostra “significativa” (503 profissionais).

São mulheres na sua maioria (91%), reflexo da feminização da profissão. Trabalham em diferentes áreas (psicossocial, saúde, justiça). Prestam apoio sobretudo a vítimas de violência doméstica (76%) e de abuso sexual (38%), mas também de assédio sexual, assédio laboral, mutilação genital feminina e tráfico de seres humanos.

Portugal é um país cada vez mais diverso. E isso nota-se nos casos que lhes chegam.

Muitas profissionais reportam maior dificuldade em trabalhar com vítimas de minorias culturais, com destaque para migrantes (52%) e para pessoas de etnia cigana (49%). Uma parte considerável reconhece dificuldade em trabalhar com pessoas idosas (53%), menos favorecidas (35%), transgénero (30%), do género masculino (26%), não-binárias (23%), homossexuais (20%).

Os inquiridos mencionam obstáculos de dois tipos: institucionais e culturais. No primeiro caso, apontam para o problema do acesso a serviços de tradução (44%), a falta de supervisão (39%), a escassez de recursos financeiros (31%), a ausência de formação actualizada (23%), a insuficiência de articulação (21%). No segundo, aludem às barreiras linguísticas (67%), à imprevisibilidade das situações (49%), à dificuldade de estabelecer relações de confiança (45%) e de compreender diferentes contextos culturais (42%).

Julgam-se capazes de analisar e compreender outras culturas e de reconhecer os seus próprios preconceitos. E até acreditam que têm competências necessárias para ajustar a sua prática profissional às necessidades de populações multiculturais. Mas admitem falta de conhecimento e de apoio organizacional, por exemplo, para formação.

Nada disto surpreende a investigadora Mariana Gonçalves. “Estes resultados vêm dar visibilidade às dificuldades que os profissionais encontram no terreno”, resume. “As pessoas que fogem à norma, como os migrantes que têm especificidades linguísticas e culturais, são mais desafiantes para estes profissionais.”

No seu entender, este estudo importa “para que decisores políticos tenham consciência” do que estes profissionais precisam para apoiar vítimas com necessidades cada vez mais diferenciadas. Ocorre-lhe o exemplo das mais idosas. “É muito difícil trabalhar esta população pela falta de respostas específicas.”

Este estudo incorpora um mais abrangente que envolveu entrevistas a 715 pessoas com uma história de vitimação. Essa parte, já divulgada pelo PÚBLICO, revela que um terço dessas pessoas sentiu alguma forma de discriminação em estruturas de atendimento a vítimas e um quarto em estruturas de acolhimento.

“É importante que haja uma especialização por parte dos profissionais”, considera Mariana Gonçalves. “As instituições não são capazes de proporcionar todas as oportunidades de formação de que os profissionais precisam. A formação que existe é pontual e muitas vezes depende da proactividade dos profissionais.”

A investigadora não defende que todas as instituições tenham de ser capazes de responder a todas as tipologias de vítima. Sustenta, sim, que o país deve aumentar o número de respostas especializadas.

Há 133 estruturas de atendimento, 29 acolhimentos de emergência, 39 casas-abrigo, quase todas destinadas a mulheres, acompanhadas ou não por filhos menores de idade. As excepções contam-se pelos dedos: três estruturas de atendimento e uma unidade de acolhimento de emergência para vítimas LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo), duas estruturas de atendimento para mulheres vítimas de violência sexual, uma estrutura de atendimento para homens vítimas de violência sexual, uma casa de abrigo para mulheres com deficiência e outra para homens. No final do ano passado, o Governo anunciou a abertura de uma casa-abrigo para idosas.

Mariana Gonçalves lembra que esta é uma área profissional exigente, com elevada precariedade, baixo salário, pouca perspectiva de progressão na carreira. E que estas pessoas lidam com falta de recursos e com casos complexos, que não raras vezes exigem envolvimento emocional, amiúde em detrimento da vida pessoal.

Apesar de tudo, os profissionais que responderam ao inquérito reportam níveis reduzidos ou moderados de stress traumático secundário e burnout. Ao mesmo tempo, dão conta de níveis moderados (64%) a elevados (36%) de satisfação por compaixão. “Sentem-se satisfeitos por poderem ajudar as vítimas com as quais trabalham. Para trabalhar nestas áreas, a compaixão tem de existir.”

Os cuidados informados pelo trauma estão a emergir nas instituições que enformam a rede nacional. Metade dos participantes, porém, considera-os insuficientes no sítio onde trabalham.

Explica a investigadora que prestar cuidados informados pelo trauma implica “mostrar respeito pelos utilizadores de serviços e estabelecer relações de confiança com eles”. A violência tem um efeito duradouro e “o sistema judicial e de protecção muitas vezes não é capaz de lidar com as vítimas respeitando as consequências”.

Não é uma questão de somenos importância. “É importante os profissionais terem formação sobre como lidar com pessoas expostas ao trauma”, salienta. “Isto melhoraria a qualidade do atendimento, as respostas de apoio. E diminuiria a revitimização no sistema.”

01/06/2025 20:56:05