Estudo europeu: Portugal é o país onde alunos mais relatam assédio sexual na Universidade
Num estudo coordenado pela Universidade de Évora em sete universidades de sete países europeus - Espanha, França, Irlanda, Itália, Portugal, Roménia e Suécia - Portugal é o país onde mais estudantes relatam ser sofrido de assédio sexual (3,9%) na universidade e o segundo país quando se trata do assédio moral/bullying (14,3%), ultrapassado apenas pela Roménia (15%).
Na Suécia, Espanha e Itália a percentagem de alunos que assumiu ter sofrido assédio sexual na universidade é muitíssimo baixa; na Irlanda, Roménia e França só 1% referiram tê-lo sentido. No caso português, os funcionários não docentes da universidade foram o grupo indicado por 4,7% dos respondentes e os outros alunos por 3,8%. O pessoal docente (professores) foi indicado por 1% dos inquiridos.
Já quanto ao assédio moral/bullying, em Espanha a percentagem de alunos que disseram ter sido dele vítimas na universidade foi de 9%; em Itália e Irlanda foram 7%, em França e na Suécia 5%. Os perpetradores foram, para os alunos de Portugal, sobretudo os outros alunos (15,6%); na Roménia essa percentagem desce para 12,8% e em Espanha para 8,9%. O país onde menos se imputa bullying aos colegas de universidade é a Suécia, com 2% dos inquiridos a fazê-lo.
Os alunos romenos foram os que mais (13%) imputaram assédio moral aos professores, seguidos pelos irlandeses (11%) e pelos portugueses (8%). Entre os espanhóis foram 7% a fazê-lo, entre os italianos 6% e dos franceses 4%. Só 2% dos suecos designaram os professores como agressores. Quanto ao pessoal não docente, quem mais os aponta como autores são os alunos romenos (4%).
No que respeita ao bullying e assédio sexual fora da universidade, a Suécia é o país onde uma menor percentagem de estudantes refere sofrer de assédio moral (28,9%). As percentagens nos outros países oscilam entre 41,6% (Itália) e 51% (França). Irlanda e Portugal surgem com 50,4%, seguidos pela Roménia com 48%, da Espanha com 44,8% e da Itália com 41,6%.
No assédio “fora da universidade” - onde ocorre a maioria do assédio reportado - há duas categorias que se destacam: a da família e dos companheiros amorosos. Entre os alunos irlandeses, 19% responsabilizam a família por assédio; entre os portugueses e romenos são 16%. Seguem-se os franceses com 14%, italianos e espanhóis com 11% e suecos com 2%. Já no que respeita a companheiros amorosos, são 10% os alunos irlandeses a imputar-lhes assédio, logo seguidos pelos portugueses, com 9%.
Também no assédio sexual a categoria “família” é referida por 5% dos alunos irlandeses, seguidos pelos franceses (4%). Nenhuma surpresa, ao contrário, no facto de neste tipo de assédio os perpetradores mais mencionados serem “outros”: assim o fazem 23% dos alunos irlandeses, 19% dos suecos, 18% dos italianos e 14% dos franceses. Dos alunos portugueses, porém, só 6% apontam “outros” como os responsáveis pelo assédio sexual.
Estes dados, referentes ao ano letivo 2023/2024 e revelados ao DN pela coordenadora do estudo, Lara Guedes Pinho, docente do Departamento de Enfermagem da Universidade de Évora e investigadora do CHRC (Comprehensive Health Research Center), devem, como a própria diz, ser interpretados com a cautela devida ao facto de se referirem a apenas uma universidade em cada país, com a particularidade de se tratar de universidades em zonas de “interior”.
Ainda assim, esta investigadora considera-os muito preocupantes: “Apesar de não se poderem generalizar para os países em questão, uma vez que apenas foram colhidas respostas numa universidade de cada país, estes resultados são alarmantes, pois temos percentagens elevadas em jovens que já sofreram de assédio seja moral, seja sexual”.
“Acontece em todas as faculdades, numas mais e noutras menos”
Não é que seja exatamente uma novidade. Em abril de 2022, este jornal noticiava que um canal de denúncias de assédio criado pelo Conselho Pedagógico da Faculdade de Direito de Lisboa recebera, em 11 dias, 50 relativas a 31 docentes (10% do total do corpo docente da escola), com sete desses professores a concentrar mais de metade das queixas - as quais se dividiam em 29 de assédio moral e 22 de assédio sexual. 19 dos testemunhos referiam “práticas reiteradas”.
Foi a primeira grande revelação desta realidade nas instituições de ensino superior portuguesas. Precisamente um ano depois, a 11 de abril de 2023, foi igualmente o DN a revelar aquele que se tornou o maior escândalo de alegado assédio na academia nacional até hoje: o caso do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra e do seu fundador e então diretor emérito, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (doravante BSS). Caso que volta à ribalta esta sexta-feira, quando está marcada a primeira audiência do julgamento, em tribunal cível, de quatro das denunciantes de BSS, acusadas por este de ofensa ao bom nome.
Mas regressemos ao caso da FDUL (agora FDULisboa). No relatório sobre as referidas denúncias, ao qual o DN tivera acesso em primeira mão, não se descreviam situações concretas - os relatos tinham sido anonimizados - mas fazia-se uma espécie de “catálogo” das práticas de assédio sexual em causa.
“Repetir sistematicamente observações sugestivas, piadas ou comentários sobre a aparência ou condição sexual; realizar telefonemas, enviar cartas, mensagens ou e-mails indesejados, com texto ou imagens, de caráter sexual, de forma expressa ou insinuada; promover o contacto físico intencional e não solicitado, ou excessivo, ou provocar abordagens físicas desnecessárias; enviar convites persistentes para participação em programas sociais ou lúdicos, quando a pessoa visada demonstrou que o convite é indesejado”, exemplificava-se. E a elencagem prosseguia: “Apresentar convites e pedidos de favores sexuais associados a promessa de obtenção de vantagens académicas ou profissionais, podendo esta relação ser expressa e direta ou insinuada”.
Quanto ao assédio moral, era assim exemplificado: “Pela sua gravidade ou repetição, tentativas de intimidações ou represálias, atos provocatórios e humilhantes, comportamentos acintosos que demonstrem falta do respeito ou consideração devidos, que representam uma quebra na confiança própria da relação pedagógica e impedem a criação de um ambiente propício à aprendizagem.”
Ao DN, a então presidente da Associação Académica da FDULisboa, Catarina Preto, confessava a sua falta de surpresa com o teor e quantidade de denúncias: “Veio ao encontro do que já sabia - aliás mesmo se não tive acesso ao nome dos professores consegui identificar alguns por conhecimento de casos - embora algumas peripécias específicas me tenham chocado. De acordo com as conversas que tenho com outras associações, isto acontece em todas as faculdades, numas mais e noutras menos”, dizia. “Há que haver um basta nestas situações, que são gravíssimas numa instituição de ensino. Ninguém quer este tipo de ambiente. Os alunos têm de perceber que se está a fazer alguma coisa, temos de tentar restaurar a confiança na faculdade. É preciso avançar agora para o manual de boas práticas e para o código de conduta.”
Também a presidente do recém-formado núcleo feminista da escola, Dejanira Vidal, se manifestava no mesmo sentido: “É inadmissível as faculdades abafarem estes casos para manter ‘o bom nome dos professores’. Desde que entrei na faculdade - estou no segundo ano - que se fala do assédio moral (humilhação, comentários) e da pressão, e de casos de assédio sexual”, afirmava a jovem, então com 19 anos. “Mas toda a gente tem medo, toda a gente diz ‘não quero falar, não quero ser associada a isso’. Espero que finalmente a a direção admita que há um problema. Tem de haver uma comissão centralizada específica para o assédio na Universidade, tem de haver pessoas de fora a avaliar, com formação específica. E tem de haver apoio psicológico.”
Dois anos e sete meses depois, uma boa parte das exigências das duas alunas estão por cumprir. A começar por um “código de conduta” da FDULisboa específico para a questão do assédio e pela “comissão centralizada para o assédio” na Universidade de Lisboa (ULisboa).
“Foram poucas as ações efetivas para prevenir e combater o problema”
Demos voz a Dejanira, agora a fazer um mestrado na Universidade Nova de Lisboa. “Volvidos quase três anos depois do conhecimento de dezenas de casos de assédio na FDULisboa e do conhecimento de dezenas de casos de norte a sul do país, deveríamos já ter mecanismos e estruturas que permitam denúncias seguras por parte das vítimas, assim como medidas de apoio às vítimas, que na maior parte das vezes se encontram desamparadas.”
Dejanira também não gostou de ler declarações do atual diretor da escola, Eduardo Vera-Cruz (que sucedeu a Paula Vaz Freire, que estava em funções aquando da revelação das denúncias), o qual em fevereiro de 2024 aventou ao DN, a propósito do ocorrido em 2022 e do facto de o Ministério Público ter arquivado o inquérito sobre aquelas denúncias, que talvez tivesse havido “uma combinação de exageros com pessoas com sede de protagonismo”.
“Não poderia deixar de repudiar tais palavras”, diz a atual mestranda. “As queixas conhecidas em 2022 constituem um reconhecimento do assédio moral e sexual que se perpetua há décadas na Faculdade de Direito, que deve ser prevenido e combatido o mais rápido possível. Desde 2022 que o problema do assédio na academia foi reconhecido, mas foram poucas as ações efetivas para prevenir e combater o problema. Um dos exemplos mais eficazes foram as ações tomadas pelo Instituto Politécnico do Porto, que suspendeu professores e despediu um professor depois de comprovados os factos. Este despedimento demonstra o cumprimento da lei e a compreensão da gravidade do problema do assédio na academia, mas fomos agora surpreendidas por uma decisão do Tribunal Administrativo do Porto absolutamente inaceitável, que obriga a reintegrar o professor e passa a mensagem da normalização do assédio sexual.”
Raquel Oliveira, que com Dejanira fundou o núcleo feminista da faculdade, tendo sido nomeada conselheira académica em 2023 (mandato que agora termina), faz coro com ela na análise do caso do Politécnico do Porto: “É só há mais um reflexo de termos uma justiça extremamente machista. É uma situação em que qualquer pessoa percebe que houve assédio e depois temos um tribunal que obriga a que o instituto contrate de novo o assediador. Se as universidades já tendem para a inércia, uma decisão destas por parte da justiça deixa-nos entalados. Parece que às vezes quanto mais falamos do assunto mais regredimos, não é?”
Ainda assim, no que diz respeito à FDULisboa está menos descrente que a amiga. “Consegui fazer pressão para as coisas andarem, impulsionei a criação de uma comissão independente para lidar com este problema. O professor Vera-Cruz pediu-me para o ajudar nisto. Atrasou um bocado, estava à espera que tivesse começado a funcionar neste semestre, mas no início do próximo já deve estar. Confesso que me está a frustrar terminar o mandato de conselheira sem sequer ver a comissão a funcionar. É uma luta longa.”
A criação de uma instância independente, com competência específica para receber, analisar e investigar as denúncias de assédio foi, como já referido, uma reivindicação de primeira hora do núcleo feminista. A ideia era de que funcionasse para toda a universidade. Mas como a ULisboa não quis avançar, acabou por ser a faculdade a criá-la, em maio deste ano.
Constituída por Ana Nunes de Almeida, Maria João Lobo, Luís de Sousa e Susana Lourenço, tem como objetivos desenvolver um estudo sobre assédio na FDUL desde 2014, redigir um Código de Conduta e Boas Práticas, assim como “propor aos órgãos competentes da FDULisboa as medidas necessárias para prevenir e combater práticas de assédio e promover as iniciativas necessárias para uma atmosfera de segurança e conforto, que possibilite a compreensão do fenómeno e denúncia de comportamentos e situações que se possam considerar como práticas de assédio.”
“Fundamental serem estruturas absolutamente independentes a receber e analisar as denúncias”
Tudo muito bonito mas, como Raquel lamenta, ainda nada arrancou. A socióloga Ana Nunes de Almeida, que integrou a comissão que recebeu e investigou as denúncias de abuso na Igreja Católica Portuguesa, confirma ao DN que esta outra da FDULisboa ainda não se pôs em marcha, mas que recebeu por parte de Vera-Cruz a certificação de que finalmente a coisa vai avançar. “As nossas ideias foram muito bem aceites. Uma delas é pôr um inquérito online, à imagem do que fizemos na comissão dos abusos na Igreja Católica, para que quem passou por um caso de assédio possa denunciar anonimamente. Porque o medo é terrível, as pessoas têm muito medo. E começarmos a tratar do código de princípios e a receber denúncias.”
Para a socióloga, a prática, adotada em várias instituições, de as denúncias irem ter às reitorias, à direção da escola, ou a professores destacados para as receber, fá-la soltar um “por amor de Deus”: “É fundamental serem estruturas absolutamente independentes a receber e analisar, e a falar com as pessoas se estas quiserem falar, ser ouvidas.”
Mas esta ideia de instâncias independentes para tratar das denúncias, e que por exemplo o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, a que Nunes de Almeida pertence, aplica desde 2023 (já lá vamos), não parece ter sido adotada por muitas instituições. Em grande parte delas, de acordo com o que o DN conseguiu saber, as denúncias são recebidas e tratadas internamente. Do mesmo modo, nem todas as universidades têm códigos específicos sobre assédio, se bem que sejam hoje muitas mais as que os criaram do que em 2022, quando o jornal iniciou a investigação sobre esta matéria.
A ULisboa, por exemplo, publicou o seu código “para a prevenção e combate ao assédio” precisamente no início deste mês de novembro, no dia 8. Um avanço significativo desde abril de 2022, quando o jornal questionou a reitoria sobre se não considerava necessária a existência de um código deste tipo e esta respondeu negativamente: “No que diz respeito à Universidade, no seu todo, é ponto assente que a Universidade de Lisboa tem tolerância zero para todas as situações de assédio e de descriminação. Temos aprovados, desde 2015, uma Carta de Direitos e Garantias e um Código de Conduta e Boas Práticas que salvaguardam, genericamente, os aspetos acima mencionados.” A ULisboa também criou entretanto um canal de denúncias que não existia então (em 2022) e do qual nessa altura não via necessidade.
Mas esse canal de denúncias é, como foi esclarecido ao DN, “interno à instituição, sendo gerido por colaboradores especialmente indicados para o efeito”, estando “organizado em função das diferentes unidades orgânicas”.
A reitoria da ULisboa também comunicou ao jornal que “os dados mais recentes sobre denúncias de assédio sexual e moral, bem como sobre o número de processos disciplinares instaurados e que resultaram em sanção disciplinar, nos últimos cinco anos, foram comunicados à Direção Geral do Ensino Superior no âmbito do inquérito ao assédio moral e sexual no contexto académico/investigação 2024.” (Este inquérito foi efetuado no âmbito da Comissão para o Acompanhamento da Implementação das Estratégias de Prevenção da Prática do Assédio, criada pelo anterior governo e entretanto dissolvida pelo atual).
Assim, prossegue esta informação, entre 2019 e 2023 houve 37 denúncias de assédio moral; já nos últimos dois anos (era esse o pedido do DN) foram 15 em 2022 e 16 em 2023. Quanto ao assédio sexual, houve cinco denúncias em cinco anos, todas elas em 2023. Mas há ainda denúncias da prática simultânea dos dois tipos de assédio: oito ao todo, quatro delas em 2022 e duas em 2023.
Por fim, as consequências: em cinco anos houve 12 processos disciplinares por assédio moral, dois em 2022 e três em 2023, tendo cinco resultado em sanção disciplinar (dois em 2022 e um em 2023). Por assédio sexual houve apenas um processo disciplinar, e ocorreu em 2023. Não resultou em sanção disciplinar. Pela alegada prática conjunta foram instaurados sete processos disciplinares, quatro em 2022 e um em 2023. Três processos resultaram em sanção disciplinar - nenhum deles nos últimos dois anos.
“Há muita hesitação em lidar com as ovelhas negras”
Como já mencionado, a comissão criada pelo anterior governo para acompanhar a temática do assédio no ensino superior foi dissolvida; no seu lugar surgiu a Comissão de Prevenção do Assédio no Ensino Superior que, criada em maio pelo ministério da Educação e Ensino Superior (MECI), e coordenada pela professora catedrática do Instituto Superior de Economia e Gestão da ULisboa Sara Falcão Casaca (contactada pelo DN, recusou qualquer comentário), deverá apresentar o respetivo relatório em dezembro.
No entanto quando o jornal solicitou ao MECI os dados nacionais sobre estas denúncias e sobre os mecanismos existentes nas diversas instituições para lidar com o fenómeno a resposta foi que aquando da publicação do relatório da comissão haveria “mais dados” - sendo que não foi comunicado um único. Não teve pois o DN outro remédio senão enviar emails para as reitorias das universidades públicas, solicitando, caso a caso, esses mesmos dados. Nem todas responderam; além da ULisboa, fizeram-no a universidades Nova de Lisboa, Algarve, Aveiro, Coimbra e Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
Do que o DN conseguiu perceber, em todas estas instituições as denúncias são recepcionadas e analisadas por estruturas internas. Só uma delas - a Universidade de Aveiro - não tem ainda um código de conduta atinente ao assédio (faz parte dos seus objetivos, porém); a maioria criou-o em 2024, sendo a UTAD aquela que deste grupo o fez mais cedo, em 2022, criando também uma estrutura específica para lidar com as denúncias de assédio, a Comissão de Prevenção e Controlo de Assédio, que é dirigida pelo professor associado Ricardo Barroso, do departamento de Educação e Psicologia. É esta comissão que tem acesso às denúncias que são feitas através do canal para esse efeito criado em 2023. De acordo com a informação prestada por Barroso ao DN, desde 2022 a comissão recebeu três queixas, duas de assédio sexual e uma de assédio moral.
Das universidades que enviaram respostas ao DN, aquela que recebeu mais denúncias foi a Nova, a cujo portal para o efeito, criado em abril de 2023, foram confiadas 29. Cujas características, enumera a informação para o jornal, foram as seguintes: “17 de assédio moral, cinco de assédio sexual, uma simultaneamente de assédio moral e sexual e seis de discriminação”. Todas estas denúncias, assevera a UNL, “foram analisadas, sendo que 19 foram arquivadas, três justificaram a abertura de processo inquérito/disciplinar e as restantes continuam a ser analisadas e investigadas”.
Em abril de 2023, a Lusa tinha feito um apanhado sobre denúncias junto de universidades e politécnicos, tendo concluído que em 2022 e 2023 tinham sido recebidas 154 queixas de assédio moral e sexual em 19 instituições, tendo quatro casos resultado em penalizações - três dizendo respeito a professores e um a um aluno. Também em 2023, um estudo da investigadora - já aqui citada - Lara Guedes de Pinho concluíra que em 3399 estudantes do ensino superior 34,8% disseram ter já sofrido assédio sexual e 50,2% assédio moral. Porém grande parte dessas situações ocorrera fora da universidade; os reportes de assédio na academia diziam respeito a apenas 2,2% dos casos.
Com portais de denúncia e códigos de conduta em geral tão recentes, e sobretudo com tanta variedade de abordagens e mecanismos - inclusive dentro das mesmas universidades - não é fácil fazer um diagnóstico sobre como evoluiu o tratamento do assédio no meio académico. Francisco Porto Fernandes, o presidente da Federação Académica do Porto, reconhece a dificuldade criada pela autonomia das instituições e insiste naquilo que há muito a federação defende: um canal de denúncias nacional. “A autonomia das instituições é muito importante, mas é muito difícil que as pessoas estejam à vontade para fazer uma queixa na instituição, e que seja a instituição a conduzir a investigação. A queixa ser feita a uma entidade externa é muito importante. Daí que há muito defendamos um canal de denúncia nacional. Porque o corporativismo… Aliás mesmo quando a investigação é externa depois há problemas com as sanções, porque é o reitor que tem o poder disciplinar e na hora de decidir começam a dizer ‘X foi professor toda a vida, que vai fazer se for despedido?’. Há muita hesitação em lidar com as ovelhas negras.”
“Houve o despertar para uma realidade”
Também por um canal de denúncias nacional se manifesta o Sindicato Nacional do Ensino Superior, pela voz de Romeu Videira: “O problema destes portais nas escolas é que que temos de admitir que quem abre o email pode ser o denunciado. Ou o próprio reitor ou alguém que esta à frente de uma unidade orgânica. Que fazem? E que formação têm as pessoas para lidar com essas denúncias? Que eu saiba, nenhuma.” Daí, explica este sindicalista, professor na Universidade do Porto, a defesa de “um portal nacional”. E, prossegue, “temos de ter mecanismos com capacidade de proteger as alegadas vítimas e os alegados culpados”.
Miguel Lemos, o ex-professor da FDULisboa que em 2022 impulsionou a criação do canal de denúncias que lançou o debate nacional sobre assédio na academia (tendo na sequência dessa ação sido submetido a um processo disciplinar que acabaria arquivado e saído da escola por não lhe terem renovado o contrato) hesita no balanço.
“Acho que do ponto de vista institucional há mais atenção para o problema, houve o despertar para uma realidade”, diz o jurista ao DN. “Os alunos estão muito mais atentos. Mas não vejo que a resposta institucional vá ao encontro do que os estudantes pedem, não vejo que se tenha conseguido ultrapassar a lógica corporativa. Porque são sempre colegas a instruir o processo. E não se consegue ultrapassar a dimensão pessoal que há nestes ambientes. As faculdades são ambientes muito pequeninos, em que as pessoas se estão sempre a proteger umas às outras. É sempre uma coisa muito endogâmica.” E conclui: “Acho que a solução passa por externalizar”.
Foi essa mesma, como já referido, a opção do ICS/ULisboa, que em 2023 criou uma Provedoria que, como se lê na respetiva página, se destina a “acolher de forma sigilosa, averiguar e dar seguimento a queixas de membros do pessoal investigador, não investigador e de estudantes do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, relativamente a situações ou acontecimentos que as pessoas queixosas considerem constituir assédio moral ou sexual, abuso ou discriminação.” Com três elementos - Isabel Leal, Pedro Bacelar de Vasconcelos e Rita Garcia Pereira - a provedoria do ICS está a funcionar desde maio de 2023.
Pedro Magalhães, presidente do Conselho de Escola desta instituição, explicou ao DN que quando se começou a discutir o assunto, “no final de 2021 ou início de 2022, a auscultar pessoas de dentro e de fora do ICS, e a procurar exemplos de instituições semelhantes, concluiu-se rapidamente que seria melhor que os membros da Provedoria fossem exteriores ao Instituto, e mesmo exteriores à ULisboa”. Isso porque, argumenta, “é muito importante que uma pessoa que tenha queixas a fazer sobre este tipo de situações - assédio moral ou sexual, abusos de poder ou discriminação - sinta que as pode transmitir sem ser sujeita a potenciais represálias ou pressões subsequentes de qualquer espécie. Mesmo com um sistema de queixa anónima, como o permitido pelos Canais de Denúncia que agora existem em todo o lado, a pessoa queixosa vai estar sempre a pensar qual é o tipo de detalhe que pode dar sobre a situação que evite que esse anonimato seja comprometido. Por isso pareceu-nos melhor que quem tivesse queixas soubesse que há pessoas completamente externas com quem pode, antes de mais, conversar sobre a queixa que tem. Este último aspecto também me parece muito importante: uma pessoa que tem uma queixa quer antes de mais ser ouvida, ter alguém a quem possa colocar os problemas, ter aconselhamento e apoio na construção conjunta de uma estratégia de ação para lidar com o problema. Não me parece que isso seja de todo possível com provedorias internas. E exige um grau de comunicação e interacção com elas que um canal de denúncia não permite”.
Ao longo de 2023, a Provedoria recebeu três queixas, tendo duas sido arquivadas, porque, explica Pedro Magalhães, “as matérias não cabiam no quadro ‘assédio moral ou sexual, abuso ou discriminação com base nos fatores em que a mesma é constitucionalmente proibida’, que é o âmbito da Provedoria. A terceira era uma queixa no âmbito de ‘abuso de poder e assédio moral’”. Em resultado da qual, adianta, foi feita uma recomendação.
Que balanço faz o ICS deste ano e meio de funcionamento desta estrutura? A reacção é ambivalente, responde o presidente do Conselho de Escola. “Por um lado fico aliviado por haver poucas queixas, e especialmente nenhuma de assédio sexual ou de assédio moral dirigido a investigadores mais jovens ou juniores, que é sempre um risco presente onde há assimetrias de poder, como em qualquer organização. Mas por outro lado fica-se sempre com aquela dúvida sobre se este sistema é suficiente para que quem tenha tido queixas se tenha sentido totalmente à vontade para as fazer à Provedoria. Espero que sim, mas nunca se pode ter a certeza.”