Paulo Mota Pinto - O direito de regresso do vendedor final de bens de consumo



(*) Artigo escrito para os estudos em homenagem ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, organizados pela Universidade Católica Portuguesa.

(1) Expressão utilizada, não no sentido com que se fala de consumo no artigo 208.° do Código Civil, mas simplesmente no de “uso não profissional”, relevante para a qualificação do autor como consumidor, nos termos do artigo 2.°, n.° 1, da Lei de Defesa dos Consumidores (LDC—Lei 24/96, de 31 de Julho). A expressão “consumidores finais” é, como se sabe, a usada no Decreto-Lei n.° 446/85, de 25 de Outubro.

(2) Ou seja, de um conjunto de contratos sucessivos, em que é o cumprimento de cada um que permite o dos seguintes. Falaremos, por isso, por vezes de “cadeia contratual”. Conceito próximo deste é o de “cadeia de comercialização”, que encontramos no artigo 2.°, alíneas d), 3.° travessão, e e) da Directiva 92/59/CEE, do Conselho, de 29 de Junho de 1992, relativa à segurança geral dos produtos (JOCE L 228 de 11 de Agosto de 1992, pp. 24 e ss.). O artigo 8.°, n.° 2, da LDC, a propósito dos deveres de informação, fala antes do “ciclo produção consumo”.

(3) Isto é, não considerando que a definição de defeito relevante para efeitos do artigo 12.°, n.° 1, da LDC, não resulta do artigo 4.°, n.° 1 (como aptidão dos bens “a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”) — caso contrário, a definição de defeito relevante poderia ser, pelo menos, em parte, mais ampla do que a que resulta do artigo 913.°, n.° 1, do Código Civil.

(4) Note-se ainda que, segundo o artigo 4.°, n.° 4, da LDC, “o decurso do prazo de garantia suspende-se durante o período de tempo em que o consumidor se achar privado do uso dos bens em virtude das operações de reparação resultantes de defeitos originários”. Esta suspensão se não encontra prevista, pelo menos expressamente, em geral para o prazo de que beneficia o vendedor final contra o seu fornecedor.

(5) V. JOÃO CALVÃO DA SILVA, Responsabilidade civil do produtor, Coimbra, 1990, p. 202.

(6) Já poderá suscitar mais dúvidas a questão de saber se a indemnização dos danos sofridos pelo consumidor pode também ser afastada pela prova de que o vendedor desconhecia o defeito sem culpa, nos termos do artigo 915.° do Código Civil, ou se do artigo 12.°, n.° 4, da Lei de Defesa do Consumidor resulta uma responsabilidade objectiva do vendedor.

(7) Acrescente-se, ainda, que, pelo menos expressamente, a resolução prevista na LDC não depende dos requisitos a que a anulação está sujeita no Código Civil, nos termos do artigo 913.°, n.° 1 (por remissão para os artigos 905.° e 247.°) — ou seja, os requisitos de relevância do erro, que incluem, nomeadamente, a essencialidade do erro e a reconhecibilidade, pelo vendedor, da essencialidade, para o comprador, do elemento sobre que incidiu o erro. Pode, assim, acontecer que o consumidor consiga resolver o contrato com o vendedor final nos termos da citada disposição da LDC, mas que este não possa desvincular-se perante o seu vendedor. Em rigor, aliás, a LDC nem sequer exige a existência de um erro do consumidor, mas apenas que este não tenha sido previamente informado e esclarecido do defeito antes da celebração do contrato. Cf. Paulo MOTA PINTO, “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo. A Directiva 1999/44/CE e o direito português”, in Estudos de direito do consumidor, Coimbra, n.° 2, 2000, pp. 247 e ss., 266 e ss..
Note-se, por outro lado, que a posição do vendedor final de coisas defeituosas não resultava tão agravada segundo o regime do Código Civil, designadamente, porque podia excluir a reparação e a substituição da coisa e a sua responsabilidade civil provando que desconhecia sem culpa o defeito (artigo 914.° e 915.°). Apenas a anulação e a redução do contrato, devidas a defeitos da coisa causados pelo fabricante ou por vendedores anteriores eram, pois, susceptíveis de lhe causar prejuízos. Mas estes (resultantes de vender menos) podiam dizer-se em larga medida ligados ainda aos riscos da actividade do vendedor final.

(8) V., por todos, António PINTO MONTEIRO, “Contrato de agência—Anteprojecto”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.° 360 (1986), pp. 48 e ss., ID., “Contratos de agência, de concessão e de franquia (franchising)”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, vol. III, Coimbra, 1984, pp. 305 e ss., ID., Denúncia de um contrato de concessão comercial, Coimbra, 1998, pp. 33 e ss.

(9) Como resulta do artigo 912.° (aplicável por força do artigo 913.°, n.° 1), o disposto sobre os direitos à reparação ou substituição da coisa (artigo 914.°) e à indemnização em caso de simples erro do comprador ou por não reparação ou substituição da coisa (artigos 909.° e 915.° e 910.°) cede perante estipulação das partes em contrário (salvo, evidentemente, se o vendedor tiver procedido com dolo e as cláusulas o beneficiarem).

(10) Sobre o regime dos contratos de adesão, antes do Decreto-Lei n.° 446/85,
v. C. MOTA PINTO, “Contratos de adesão. Uma manifestação jurídica da moderna vida económica”, RDES, Coimbra, 1973, ID., Teoria geral do direito civil, 3.ª ed., Coimbra, 1985, pp. 100-4, António PINTO MONTEIRO, Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil, Coimbra, 1984, pp. 369 e ss. Posteriormente ao referido diploma, v., designadamente, M. J. ALMEIDA COSTA/A. MENEZES CORDEIRO, Cláusulas contratuais gerais. Anotação ao Decreto-Lei n.° 446/85, de 25 de Outubro, Coimbra, 1991, António PINTO MONTEIRO, “Contratos de adesão. O regime jurídico das cláusulas contratuais gerais instituído pelo Decreto-Lei n.° 446/85, de 25 de Outubro”, ROA, 1986, PP. 733-69, JOAQUIM SOUSA RIBEIRO, Cláusulas contratuais gerais e o paradigma do contrato, Coimbra, 1990, ID., O problema do contrato. As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, Coimbra, 1999, António MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil português. I – Parte Geral, tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2000, pp. 426 e ss., e Mário Júlio de ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 8.ª ed., Coimbra, 2000, pp. 219 e ss. Para um comentário às alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.os 220/95, de 31 de Agosto e 249/99, de 7 de Julho, v. M. J. ALMEIDA COSTA, Síntese do regime jurídico vigente das cláusulas contratuais gerais, 2.ª ed., Lisboa, 1999.

(11) Para a fundamentação da diferença de regimes, v. M. J. ALMEIDA COSTA/A. MENEZES CORDEIRO, op. cit., p. 49, anot. ao artigo 20.°, e M. J. ALMEIDA COSTA, Síntese..., cit., pp. 24-5. Segundo o § 24 da lei alemã sobre as “condições gerais do contrato”, as normas que proíbem determinadas cláusulas específicas (§10 e §11) não são aplicáveis quando o aderente é empresário, apenas o sendo a “norma de recolha” consistente na proibição de cláusulas contrárias à boa fé (§ 9). E o mesmo acontece também no direito comunitário, como não deixou de lembrar a Comissão Europeia na exposição de motivos da “Proposta de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à venda e às garantias dos bens de consumo” — publicada no JOCE, C 307, de 16-10-1996, pp. 8-11—, relativamente ao direito de regresso. Pode ler-se, assim, em COM (95) 520 final, de 18 de Junho de 1996, p. 14: “As disposições nacionais aplicáveis às vendas entre profissionais são normalmente menos restritivas que as aplicáveis às vendas entre um profissional e um consumidor. Assim, frequentemente, os vendedores podem inserir nos contratos cláusulas de exoneração da sua responsabilidade relativamente à garantia legal. Tais cláusulas serão, aliás, válidas face ao direito comunitário, pois a Directiva n.° 93/13 relativa às cláusulas abusivas tem o seu campo de aplicação limitado aos contratos celebrados entre ‘um consumidor e um profissional’.”

(12) Sobre o sentido de algumas destas proibições, v. A. PINTO MONTEIRO, Cláusula penal e indemnização, Coimbra, 1990, pp. 593 e ss., e JOAQUIM SOUSA RIBEIRO, “Responsabilidade e garantia em cláusulas contratuais gerais”, separata dos Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Ferrer Correia, Coimbra, 1992.

(13) Se a aquisição pelo vendedor final estiver submetida ao regime da compra e venda comercial — cujo núcleo essencial é constituído, nos termos do artigo 463.° do Código Comercial, pelas compras para revenda —, a sua posição ficará agravada, com redução do prazo para reclamação de defeitos resultante dos artigos 469.°, 470.° e 471.° do mesmo Código (onde se incluem a maioria das compras e vendas comerciais). Nestes casos — ou seja, quer tratando-se de compra sobre amostra ou por designação de uma qualidade conhecida no comércio, quer tratando-se de compra de coisas que não estejam à vista ou que não possam designar-se por uma qualidade conhecida no comércio —, o vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das coisas no acto de entrega, salvo caso de impossibilidade (e sob pena de não poder reclamar). Quando esse exame se verificar, o prazo para reclamação pelo comprador é apenas de oito dias. Diversamente, o comprador/consumidor beneficia, porém, de uma garantia obrigatória de um ano para bens móveis não consumíveis, e de seis meses para os restantes bens móveis.
Semelhante divergência se verifica quando ao último contrato é aplicável o regime da empreitada, e estão em causa defeitos de materiais a incorporar na obra, que se repercutem nesta, materiais, esses, cuja aquisição se verificou mediante um contrato de compra e venda. A diferença entre os prazos previstos nos regimes dos defeitos na obra e da venda de coisas defeituosas pode, na verdade, colocar o empreiteiro na situação de já não poder reagir contra o vendedor de materiais defeituosos—cfr. para os defeitos da obra na empreitada, os artigos 1224.°, n.os 1 e 2 e 1225.°, n.° 1, por um lado (prazos de um ano e cinco anos), e, para a garantia do comprador, o artigo 916.°, n.° 2 (seis meses a contar da entrega ao comprador), todos do Código Civil. Semelhante “lacuna de garantia” se abre, aliás, no direito alemão — v., confrontando os prazos de cinco anos e seis meses do § 638, n.° 1, e do § 477, n.° 1, do BGB, respectivamente para o empreiteiro e o comprador, Dieter MEDICUS, “Verbraucherrecht und Verbrauchsgüterkauf in einem kodifikatorischen System—Bürgerrecht, Handelsrecht und Sonderprivatrecht”, in Stefan GRUNDMANN/Dieter MEDICUS/Walter ROL-LAND (orgs.), Europäisches Kaufsgewährleistungsrecht. Reform und Internationalisierung des deutschen Schuldrechts, Köln, 2000, p. 228, ID., “Dogmatische Verwerfungen im geltenden deutschen Schuldrecht”, n.° II, 3 (in Reiner SCHULZE/Hans SCHULTE-NÖLKE (orgs.), Die Schuldrechtsreform vor dem Hintergrund des Gemeinschaftsrechts, 2001), e J. SCHMIDT-RÄNTSCH, “Zum Stand der Kaufrechtsrichtlinie”, Zeitschrift f. Insolvenzpraxis (ZIP), 20, 1998, p. 850.

(14) Ole LANDO, “International Trends: Requirements concerning the quality of movable goods and remedies for defects under the Principles of European Contract Law”, in S. GRUNDMANN et alii, op. cit., pp. 66-7 (“the final seller a sparrow among hawks”).

(15) Impõe-se uma advertência terminológica: o “direito de regresso” de que falamos seguidamente — como se faz no artigo 4.° da Directiva 1999/44/CE — não o é necessariamente em sentido próprio, como aquele que existe nas situações de solidariedade. Na verdade, pode acontecer que o obrigado pelo “direito de regresso” esteja obrigado solidariamente (ou apenas subsidiariamente) com o vendedor final perante o comprador (v. infra). Mas normalmente estão serão antes obrigações autónomas – emergentes de relações jurídicas distintas, entre diferentes sujeitos e surgindo de diferentes factos jurídicos. Em ambos os casos falaremos, porém, de “direito de regresso” (e cf. também, por exemplo, o artigo 1226.° do Código Civil e o artigo 332.°, n.° 4, do Código de Processo Civil; e a advertência de Pedro ROMANO MARTINEZ, O subcontrato, Coimbra, 1989, p. 153).

(16) Entre as poucas excepções conta-se o artigo 25.° do livro 7 do Código Civil holandês, que prevê o “regresrecht” na compra de consumo. Segundo esta disposição (n.° 1), “se o comprador tiver exercido contra o vendedor um ou mais direitos fundados numa violação de dever nos termos do artigo 24.°, o vendedor é titular de uma pretensão de indemnização contra a pessoa à qual comprou a coisa, desde que também esta tenha actuado na conclusão desse contrato no exercício da sua profissão”. E o n.° 2 preceitua que “a estipulação sobre a exclusão ou limitação da responsabilidade referida no n.° 1 só pode ser invocada contra o vendedor se, considerando todas as circunstâncias do caso, tal for conforme à equidade”. Segundo Ewoud HONDIUS/Christoph JELOSCHEK, “Die Kaufrichtlinie und das niederländische Recht: Für den Westen kaum Etwas Neues”, in S. GRUNDMANN/D. MEDICUS/W. ROLLAND (orgs.), cit., pp. 197-216 (213), existem poucas decisões relativas à aplicação desta disposição. O artigo 1469.° quinquies do Codice Civile italiano, por sua vez, prevê, para o caso de utilização pelo vendedor de cláusulas impostas pelo seu fornecedor para as relações com os clientes, que aquele “tem direito de regresso contra o fornecedor pelos danos sofridos em consequência da declaração de ineficácia das cláusulas declaradas abusivas”. A este “regresso” reconhece a doutrina natureza substancialmente aquiliana (v. Andrea BARENGHI, in Codice Civile, a cura di P. Perlingieri, 4.ª ed., Milano, 2001, anot. 4 ao artigo 1469.° quinquies). Salientando o paralelismo entre o artigo 4.° da Directiva 1999/44/CE, a que nos vamos referir infra, e esta norma do Codice Civile, Francesco RUSCELLO, “Le garanzie post-vendita nella direttiva 1999/44/CE de 25 Maggio 1999”, in Revista Trimestral de Direito Civil, ano 2, 2001, vol. 5, pp. 163-95 (184).

(17) A disposição mais próxima que nele encontrámos não permite, na verdade, cobrir todos os casos visados, embora deixe ver que o problema do prazo não foi ignorado pelo legislador num dos casos de “encadeamento” contratual mais frequente. Trata-se do artigo 1226.° do Código Civil, que prevê o direito de regresso do empreiteiro contra os subempreiteiros, fixando como dies a quo para o prazo de caducidade de trinta dias o momento da recepção da denúncia dos defeitos pelo dono da obra (cf., porém, P. ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações. Contratos, Coimbra, 2000, p. 385, segundo o qual, se os vícios da parte entregue pelo subempreiteiro não podem ser destacados da obra, o prazo de garantia da subempreitada só começa a contar a partir da entrega ao dono da obra). E nem a admissão de um direito de regresso em geral no subcontrato resolveria o problema, já que nos casos analisados estamos antes perante contratos sucessivos—v. P. ROMANO MARTINEZ, O subcontrato, cit., pp. 80 e ss., 153 e ss.

(18) Note-se que não está em questão nos casos que referimos uma responsabilidade do vendedor final perante o consumidor por violação de deveres de informação, como a prevista no artigo 8.°, n.os 2 e 5 da LDC (nos quais, aliás, também não se prevê um direito de regresso, mas antes uma responsabilidade solidária perante o consumidor).

(19) Na verdade, a responsabilidade delitual exige em geral a culpa e, segundo a posição dominante também entre nós, deixa por ressarcir os “danos puramente patrimo-niais” (v., por todos, Jorge SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações e informações, Coimbra, 1989, pp. 187 e ss., e Manuel CARNEIRO DA FRADA, Contrato e deveres de protecção, Coimbra, 1994, pp. 153 ss., 173 e ss.). Uma pretensão restitutória por parte do vendedor final pressuporia a vinculação directa do obrigado ao regresso perante o consumidor, o mesmo se podendo dizer do instituto da gestão de negócios (v. estas objecções, para o direito alemão, em Martin SCHMIDT-KESSEL, “Der Rückgriff des Letztverkäufers”, Österreichische Juristenzeitung (ÖJZ), 18, 2000, p. 672). Por outro lado, nem sempre existirá entre causador do defeito e vendedor final um contrato, e parece artifi-cioso fundar o direito do vendedor final no facto de este, alegadamente, estar a prestar um serviço ao causador do defeito. Cf., porém, invocando, directamente ou por analogia, o regime do contrato de gestão de interesses alheios (“Geschäftsbesorgungsvertrag”— § 675 do BGB), e defendendo, por conseguinte, que não seria necessária qualquer transposição do direito de regresso para o direito alemão através de alterações legislativas, Friedrich Graf v. WESTPHALEN, “Die Umsetzung der Verbrauchsgüterkauf-Richtlinie im Blick auf den Regress zwischen Händler und Hersteller”, Der Betrieb, 1999, pp. 2553-7. Como D. MEDICUS, “Verbraucherrecht...”, cit., p. 229, salienta, tal enquadramento, mesmo que fosse de aceitar, não resolveria os casos em que o obstáculo ao regresso é a prescrição ou a falta de denúncia do defeito.

(20) Não encontrando esse direito de regresso do vendedor final hoje paralelo legalmente previsto no direito português, as consequências nefastas daí resultantes para o vendedor provavelmente apenas serão evitadas pela prática, muitas vezes contratualmente prevista (mas não obrigatória por lei) em vários sectores, de o produtor retomar os bens com defeito ou de garantir o seu “bom funcionamento”.

(21) Salientando também a finalidade de protecção mediata do consumidor, pela redução do risco de insolvência do pequeno empresário vendedor final, Francesco A. SCHURR, “Die neue Richtlinie 99/44/EG über den Verbrauchsgüterkauf und ihre Umsetzung — Chancen und Gefahren für das deutsche Kaufrecht”, Zeitschrift für Rechtsvergleichung, 1999, p. 227; cf. também Wulf-Henning ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung im Kontext des Europarechts”, pp. 225 e ss., in Wolfgang ERNST/Reinhard ZIMMERMANN (orgs.), Zivilrechtswissenschaft und Schuldrechtsreform. Zum Diskussionsentwurf eines Schuldrechtsmodernisierungsgesetzes des Bundesministeriums der Justiz, Tübingen, 2001, p. 233.

(22) Jornal Oficial das Comunidades Europeias (JOCE), L 171, de 7 de Julho de 1999, pp. 12-6. Procedemos a uma análise geral desta directiva (à qual pertencem todas as disposições doravante citadas sem indicação especial), e à sua comparação com o direito português, no referido estudo “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo. A Directiva 1999/44/CE e o direito português” (Estudos de direito do consumidor, Coimbra, n.° 2, 2000, pp. 197-316).

(23) V. P. MOTA PINTO, “Conformidade...”, cit., pp. 201 e ss.

(24) Isto é, aquela que decorre directamente da lei — ou, nos termos do Livro verde sobre as garantias dos bens de consumo e os serviços pós-venda, COM (93) 509 final, p. 16, que “produz efeitos definidos por lei e [cuja] execução obedece a condições e procedimentos legalmente definidos” (v. tb. esta noção em COM(95)520 final, cit., p. 5).

(25) Note-se que segundo o artigo 1.°, n.° 4, da directiva “são igualmente considerados contratos de compra e venda os contratos de fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir.” Incluem-se, pois, contratos mistos de compra e venda e empreitada (designadamente, o “Werklieferungsvertrag” alemão) e também contratos apenas de empreitada (sendo certo, porém, que a falta de conformidade não será relevante se “decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor” — artigo 2.°, n.° 3, parte final).

(26) Cf. P. MOTA PINTO, “Conformidade e garantias...”, cit., pp. 222 e ss., 249, ss.

(27) COM(95)520 final, cit., p. 14. Salientando também que a directiva implicou uma “ampliação da esfera de risco do vendedor, que (...) responderá pela falta de conformidade ainda que esta se deva a um defeito na cadeia de produção”, v. Ángel CARRASCO PERERA/Encarna CORDERO LOBATO/Pascual MARTINEZ ESPÍN, “Transposición de la directiva comunitaria sobre venta y garantias de los bienes de consumo”, in Estudios sobre consumo, 52, 2000, p. 131.

(28) COM(95)520 final, cit., p. 14.

(29) Relacionando-a com a protecção das pequenas empresas, v. as referências constantes da ficha de impacto da proposta de directiva, COM (95) 520, cit., pp. 26 (e cf. tb. p. 28, para as “PME”). V. tb., por exemplo, W.-H. ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung im Kontext des Europarechts”, cit. na nota seguinte, p. 233, M. SCHMIDT-KESSEL, cit., p. 669. O modelo de distribuição tido em vista na formulação do artigo 4.° parece ser, realmente, o da aquisição do bem, pelo vendedor final, ao produtor ou a um distribuidor com maior poder económico. Não pode, porém, dizer-se que seja sempre assim—basta pensar nos casos da distribuição em grandes superfícies de bens produzidos por artesãos ou pequenas empresas. E pode mesmo acontecer que na cadeia contratual se tenha interposto anteriormente um consumidor que vendeu o bem (por exemplo, um automóvel entregue em troca de outro) ao profissional.

(30) Assim, Michael LEHMANN, “Informationsverantwortung und Gewährleistung für Werbeangaben beim Verbrauchsgüterkauf”, JZ, 6, 2000, p. 290.

(31) O direito de regresso tem sido dos pontos da directiva que maior interesse tem suscitado na doutrina — v., sem pretensões de exaustividade: Dirk STAUDENMAYER, “Die EG- Richtlinie über den Verbrauchsgüterkauf”, Neue juristische Wochenschrift (NJW), 33, 1999, p. 2396, Gert BRÜGGEMEIER, “Zur Reform des deutschen Kaufrechts—Herausforderungen durch die EG-Verbrauchsgüterkaufrichtlinie”, Juristenzeitung (JZ), 11, 2000, p. 534, Norbert REICH, “Die Umsetzung der Richtlinie 1999/44/EG in das deutsche Recht”, NJW, 33, 1999, pp. 2398-9, Jürgen SCHMIDT-RÄNTSCH, “Zum Stand der Kaufrechtsrichtlinie”, cit., p. 850, ID., “Gedanken zur Umsetzung der kommenden Kaufrechtsrichtlinie”, ZEuP, 1999, p. 298, Wolfgang FABER, “Zur Richtlinie bezüglich Verbrauchsgüterkauf und Garantien für Verbrauchsgüter”, Juristische Blätter, 7, 1999, pp. 429 ss., Horst EHMANN/Ulrich RUST, “Die Verbrauchsgüterkaufrichtlinie—Umsetzungsvorschläge unter Berücksichtigung des Reformentwurfs der deutschen Schuldrechtskommission”, JZ, 18, 1999, pp. 862 ss., Rudolf WELSER/Brigitta JUD, “Zur Reform des Gewährleistungsrechts”, Verhandlungen des 14. Österreichischen Juristentages, Wien, 2000, pp. 154-162, Brigitta JUD, “Zum Händlerregress im Gewährleistungsrecht”, Österreichischen Juristenzeitung, 18, 2000, pp. 661 e ss., Martin SCHMIDT-KESSEL, “Der Rückgriff des Letztverkäufers”, idem, pp. 668 e ss., M. LEHMANN, “Informationsverantwortung...”, cit., pp. 288 e ss., Holger MATTHIESSEN/Beatrix LINDNER, “Die EG-Richtlinie über den Verbrauchsgüterkauf — Anlass für eine Reform des deutschen Schuldrechts”, Neue Justiz, 1999, p. 622, F. SCHURR, op. cit., pp. 228-9, Ulrich MAGNUS, “Der Regreßanspruch des Letztverkäufers nach der Richtlinie über den Verbrauchsgüterkauf”, in Jürgen BASEDOW et alii (org.), Private Law in the International Arena - Liber Amicorum Kurt Siehr, 2000, pp. 430 e ss., Wolfgang ERNST/Beate GSELL, “Kaufrechtsrichtlinie und BGB”, ZIP, 2000, pp. 1421-5, Beate GSELL, “Kaufrechtsrichtlinie und Schuldrechtsmodernisierung”, JZ, 2001, pp. 65 75 (73), e Harm-Peter WESTERMANN, “Das neue Kaufrecht einschliesslich des Verbrauchsgüterkaufs”, JZ, 2001, pp. 540-1, Allesio ZACCARIA, “Riflessioni circa l’attuazione della direttiva n. 1999/44/CE «su taluni aspetti della vendita e delle garanzie dei beni di consumo»”, Studium iuris, 2000, pp. 260-9 (versão alemã em S. GRUNDMANN et alii, cit., pp. 181-96), e Á. CARRASCO PERERA/E. CORDERO LOBATO/P. MARTINEZ ESPÍN, “Transposición...”, cit., pp. 131 e ss.. E cf. ainda os contributos em S. GRUNDMANN/D. MEDICUS/W. ROLLAND (orgs.), cit. (esp. Dirk STAUDENMAYER, “Die EG- Richtlinie 1999/44/EG zur Vereinheitlichung des Kaufgewährleistungsrechts”, pp. 42-3, Ole LANDO, cit., pp. 66-7, Ulrich MAGNUS, “Der Stand der internationalen Überlegungen: die Verbrauchsgüterkauf-Richtlinie und das UN-Kaufrecht”, pp. 90-1, Wulf-Henning ROTH, “Der nationale Transformationsakt: vom Punktuellen zum Systematischen”, p. 120, Stephanie ROHLFING DIJOUX, “Umsetzungsüberlegungen zur Kaufsgewährleistungsrichtlinie in Frankreich”, pp. 158-9, Ewoud HONDIUS/Christoph JELOSCHEK, cit., p. 213, D. MEDICUS, cit., p. 223, 228-9, Axel FLESSNER, “Richtlinie und Reform – Die Einpassung der Kaufgewährleistungs-Richtlinie ins deutsche Recht”, p. 247, Harm-Peter WESTERMANN, “Vorschlag für eine Einpassung der Kaufgewährleistungs-Richtlinie ins deutsche Recht”, pp. 276-8, e Stefan GRUNDMANN, “Generalreferat: Internationalisierung und Reform des deutschen Kaufrechts”, pp. 309-11, 319); em W. ERNST/R. ZIMMERMANN (orgs.), Zivilrechtswissenschaft und Schuldrechtsreform, cit. (actas de simpósio que decorreu em Regensburg em finais de 2000, e relatado por Beate GSELL/Thomas RÜFNER, em NJW 2001, pp. 424 6), esp. os artigos de Peter SCHLECHTRIEM, “Das geplante Gewährleistungsrecht im Licht der europäischen Richtlinie zum Verbrauchsgüterkauf”, pp. 205 e ss., Wulf-Henning ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung im Kontext des Europarechts”, pp. 225 e ss. e Heinz Peter MANSEL, “Die Reform des Verjährungsrechts”, pp. 333 e ss.; e em R. SCHULZE/H. SCHULTE-NÖLKE (orgs.), Die Schuldrechtsreform vor dem Hintergrund des Gemeinschaftsrechts, cit., (actas de um simpósio sobre a reforma alemã do direito das obrigações que decorreu em Münster em Janeiro de 2001), esp.: D. MEDICUS, “Dogmatische Verwerfungen im geltenden deutschen Schuldrecht”, Harm-Peter WESTERMANN, “Kaufrecht im Wandel”, Ansgar STAUDINGER, “Form und Sprache” e Peter BYDLINSKI, “Die geplante Modernisierung des Verjährungsrechts”. V. tb. o nosso o estudo cit., pp. 280 e ss.

(32) D. STAUDENMAYER, “Die EG-Richtlinie…”, cit., p. 2396, e “EG-Richtlinie…”, cit., p. 42.

(33) V. G. BRÜGGEMEIER, “Zur Reform...”, cit., p. 534 (nesta norma residiria a “Sprengkraft” da directiva). Salientando que a directiva tem efeitos a montante da compra de consumo, v., por ex., Ole LANDO, op. cit., p. 67, N. REICH, “Die Umsetzung...”, cit., p. 2398 (e 2399: “efeitos ‘spillover’ sobre as tradicionais regras jurídico-mercantis”), e, já em face da proposta, Wolfgang KIRCHER, “Zum Vorschlag für eine Richtlinie über den Verbrauchsgüterkauf und -garantien”, Zeitschrift f. Rechtspolitik, 1997, pp. 294. Para J. SCHMIDT-RÄNTSCH, “Gedanken zur Umsetzung der kommenden Kaufrechtsrichtlinie”, cit., p. 298, o legislador alemão estaria perante um “Zwang zur überobligatorische Umsetzung”.

(34) Hans MICKLITZ, “Die Verbrauchsgüterkauf-Richtlinie”, Europäische Zeitschrft f. Wirtschaftsrecht (EuZW), 1999, p. 490. V. tb., já antes, ID., “Ein einheitliches Kaufrecht für Verbraucher in der EG?”, EuZW, 1997, p. 233, constatando o “espantoso paralelo entre o consumidor e o vendedor final necessitado de protecção”.

(35) V. D. STAUDENMAYER, locs. cit., p. 2396, J. SCHMIDT-RÄNTSCH, “Zum Stand”, cit., p. 850 (quando muito resultaria da directiva uma imposição de facto, por razões de coerência lógica e jurídica, de harmonização das condições de responsabilidade), Klaus TONNER, “Verbrauchsgüterkauf-Richtlinie und Europäisierung des Zivilrechts”, Betriebs Berater, 1999, p. 1772, H. EHMANN/U. RUST, op. cit., p. 862. Cf. tb. H.-P. WESTERMANN, “Kaufrecht im Wandel”, cit., IV, 4.

(36) Assim, por ex. H. MICKLITZ, loc. cit., D. MEDICUS, “Dogmatische Verwerfungen...”, cit., IV, 3, B. JUD, “Zum Händlerregress…”, cit., p. 662.

(37) V. M. SCHMIDT-KESSEL, op. cit., p. 672 (embora a prescrição do direito de regresso antes da do direito do comprador fosse possível – contra, N. REICH, loc. cit.), St. GRUNDMANN, “Generalreferat”, cit., p. 310-1 (embora dando o primado à autonomia privada). Dieter MEDICUS, “Ein neues Kaufrecht für Verbraucher?”, ZIP, 1996, p. 1928, propunha um alargamento geral dos prazos de prescrição para dois anos. Mas tal solução não parece bastar, como veremos. Segundo H.-P. WESTERMANN, “Vorschlag...”, cit., p. 278, uma repercussão automática das desvantagens seria de rejeitar, apenas podendo ser evitadas as assintonias mais gravosas.

(38) M. LEHMANN, op. cit., p. 290, W. ERNST/B. GSELL, op. cit., p. 1422, W.-H. ROTH, “Der nationale Transformationsakt…”, cit., §8, ID., “Die Schuldrechtsmodernisierung im Kontext des Europarechts”, cit., n.° 4, P. BYDLINSKI, op. cit., V, 1, b). V. tb. N. REICH, cit., p. 2400 (invocando o artigo 10.° do Tratado da Comunidade Europeia) e W. FABER, “Zur Richtlinie...”, cit., p. 429.

(39) V. M. SCHMIDT-KESSEL, “Der Rückgriff...”, cit., p. 670, P. SCHLECHTRIEM, “Das geplante…”, cit., p. 211.

(40) Assim, claramente, pelo menos, na versão portuguesa, e, de entre as que consultámos, na inglesa e na francesa (“...o vendedor tem direito de regresso...”, “...the final seller shall be entitled to pursue remedies against”, “...le vendeur final a le droit de se retourner contre...”). Na versão alemã diz-se que o vendedor “pode” exercer o direito de regresso. Referindo que “o texto actual consagra inegavelmente a existência deste direito”, v. Mário TENREIRO/Soledad GÓMEZ, “La Directive 1999/44/CE sur certains aspects de la vente et des garanties des biens de consommation”, REDC, 2000, p. 22.

(41) Assim, W.-H. ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung…”, cit., pp. 249 e seg., e já ID., “Der nationale Transformationsakt: vom Punktuellen zum Systematischen”, cit., pp. 113-42 (120): a disposição do artigo 4.° pode adquirir vida própria, mesmo contra as intenções dos seus autores.

(42) Na ficha de impacto da proposta da directiva dizia-se que esta assegura às pequenas empresas os meios de reacção contra os fornecedores na cadeia de distribuição – COM (95) 520, cit., p. 26. Segundo o considerando 9, o “vendedor, nos termos do direito nacional, deve gozar de um direito de reparação (...) salvo se tiver renunciado a esse direito”, dizendo-se que apenas “as normas que regem o modo como o vendedor pode exercer esse direito de reparação são determinadas pela legislação nacional” (itálicos aditados). Segundo W.-H. ROTH, op. cit., p. 250, a fundamentação da competência comunitária para aprovar o artigo 4.° ainda no artigo 95.° do Tratado, pela finalidade de protecção mediata do consumidor, apontaria também para que o vendedor final devesse estar economicamente garantido perante o seu fornecedor, para se poder manter a sua solvabilidade perante o consumidor.

(43) E convém não esquecer que, por um princípio de transposição eficiente, os Estados-membros têm a obrigação de “escolher, no quadro da liberdade que lhes é deixada pelo artigo 189 [249, actualmente] as formas e meios mais apropriados tendo em vista assegurar o efeito útil das directivas, tendo em conta o seu objecto.” V. acórdão Royer, de 8 de Abril de 1976, no caso 48/75 (Colectânea da jurisprudência do Tribunal de Justiça, 1976, p. 497, n.° 73), a partir do qual se reconheceu o princípio do respeito pelo efeito útil. V., sobre este, Matthias RUFFERT, in Christian CALIESS/Mathias RUFFERT, Kommentar z. EU-Vertrag u. EG-Vertrag, Neuwied, 1999, anots. 46 e ss. ao artigo 249.°. A garantia da plena eficácia do direito comunitário resulta também do artigo 10.° do Tratado — v. Maria Luísa DUARTE, “O artigo 10.° do Tratado da Comunidade Europeia”, in Estudos de direito da União e das Comunidades Europeias, Coimbra, 2000, pp. 95 e ss.
E saliente-se que, como notam R. WELSER/B. JUD, cit., p. 162, uma transposição diferenciada do artigo 4.° da directiva nos diversos Estados-membros pode conduzir a sensíveis distorções de concorrência, contradizendo uma das finalidades da directiva (v. o considerando 3).

(44) Para M. SCHMIDT-KESSEL, “Der Rückgriff...”, cit., p. 672, a liberdade de escolha dos Estados-membros está em rigor limitada a uma escolha do responsável. N. REICH, cit., p. 2399, fala de uma “obrigação de meios” dos Estados-membros, mas sublinha que o direito de regresso tem de poder ser efectivado.

(45) É o caso, na maioria dos países europeus (com a excepção apenas de Portugal, do Reino Unido e da Irlanda), da “Convenção das Nações Unidas sobre os contratos de compra e venda internacional de mercadorias”, assinada em Viena em 1980 (v., sobre esta, RUI M. MOURA RAMOS/MARIA ÂNGELA SOARES, Do contrato de compra e venda internacional. Análise da Convenção de Viena de 1980 e das disposições pertinentes do direito português, Coimbra, 1981. Nas vendas internacionais, o direito de regresso será normalmente exercitado segundo esta Convenção, o que tem sido também invocado como argumento de interpretação da directiva no sentido da suficiência das regras previstas na Convenção, uma vez que tal regime era conhecido do legislador comunitário, é aplicável na grande maioria dos Estados-membros, e não é de crer que para transposição da directiva os Estados-membros ficassem obrigados a denunciá-la (assim, por exemplo, para o prazo de dois anos e a obrigação de denúncia dos defeitos, W.-H. ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung...”, cit., p. 251). Este argumento só vale, porém, para a compra e venda internacional.

(46) A questão de saber se o direito de regresso previsto no artigo 4.°é um direito subjectivo releva para efeitos de responsabilidade civil dos Estados-membros perante particulares pela não transposição da directiva (v. acórdão Francovich, de 19 de Novembro de 1991, casos C-6/90 e C-9/90, Colectânea da jurisprudência do Tribunal de Justiça, 1991, p. I-5357, n.os 10 e ss.). A interpretação da directiva impõe uma resposta positiva, considerando, aliás, que, como o Tribunal de Justiça esclareceu no acórdão Dillenkoffer (de 8 de Outubro de 1996, casos C-178/94, C-179/94, C-188/94, C-189/94 e C-190/94, Colectânea da jurisprudência do Tribunal de Justiça, 1996 p. I-4845, n.os 44
e ss.) a propósito de direitos previstos na directiva sobre viagens organizadas, tal conclusão “não pode ser posta em causa pelo facto de (…) a directiva deixar uma ampla margem de apreciação aos Estados-Membros quanto à escolha dos meios para atingir o resultado que prossegue. Com efeito, o facto de o Estado poder escolher entre uma multiplicidade de meios para atingir o resultado prescrito por uma directiva, é irrelevante caso a directiva vise atribuir, em benefício de particulares, direitos cujo conteúdo possa ser determinado com suficiente exactidão.” Neste sentido, para o artigo 4.°, v. H. MICKLITZ, op. cit.,
p. 492.

(47) Salientadas por D. MEDICUS, “Dogmatische...”, cit., II, 3.

(48) Segundo W. KIRCHER, op. cit., p. 294, o direito de regresso visado na proposta de directiva acarretaria consequências profundas para valorações centrais do direito comercial alemão, e seria um “corpo estranho” no direito de muitos Estados-membros que criaria mais contradições valorativas do que as que visava resolver.

(49) Trata-se, a nosso ver, e apesar da diferente formulação literal, de um conceito semelhante ao utilizado no artigo 3.° da directiva 85/374/CEE, sobre responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, e, entre nós, no artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 383/89 (sobre este, v. JOÃO CALVÃO DA SILVA, Responsabilidade civil do produtor, Coimbra, 1990, pp. 545 e ss.).

(50) Assim, M. SCHMIDT-KESSEL, cit., p. 670.

(51) A “venda de consumo invertida”—o caso do consumidor que aliena um automóvel ao comprador profissional — não é regulada pela directiva (todavia, existe verdadeira compra de um bem de consumo quanto ao automóvel adquirido pelo consumidor, não nos parecendo que deva relevar o facto de a contraprestação ter sido parcialmente realizada em espécie). Pode, aliás, defender-se que o regime do direito de regresso — v.gr., um prolongamento do prazo para seu exercício—deva valer também para os casos em que o vendedor final é um consumidor. Assim, em crítica ao anteprojecto austríaco de transposição (§ 933 b), P. BYDLINSKI, op. cit., texto da n.° 94.

(52) Não é, pois, permitido pela directiva que o responsável remeta para auxiliares ou terceiros, cujo comportamento não lhes é imputável.

(53) Nomeadamente, a referência ao produtor não implica a possibilidade de uma acção directa do vendedor final contra ele — v. H.-P. WESTERMANN, “Vorschlag...”, cit., p. 277. Segundo St. GRUNDMANN, “Generalreferat...”, cit., p. 310, diversamente, o princípio da relatividade das relações contratuais estaria superado nas relações em cadeia pelas quais são executadas transacções de forma planeada e sistemática, sendo a previsão da acção directa mais simples.

(54) Salientam R. WELSER/B. JUD, cit., p. 158, que não é claro se o fundamento jurídico do direito de regresso previsto no artigo 4.° está no contrato do vendedor final com o seu antecessor (como poderá ser o caso se o direito de regresso se exercer ao longo da cadeia) ou directamente nessa norma.

(55) Assim, segundo o § 476, n.° 2, 2.ª frase, da “versão consolidada” do projecto de alteração do BGB, o profissional poderia também, à sua escolha, exigir ao fabricante o pagamento dos custos com a garantia do comprador consumidor, salvo se o defeito em causa não o fosse também na relação do fabricante com o seu comprador. Fazia-se, pois, depender a acção contra o fabricante da relação deste com o seu comprador. A contradição valorativa resultante de se reservar a acção directa ao vendedor, excluindo o consumidor, foi, porém, criticada (assim, W. ERNST, segundo o relato do debate em Juristenzeitung, 2001, n.° 10, p. 541; para o direito italiano, v. A. ZACCARIA, cit., p. 268). E disse-se, por outro lado, que a responsabilidade directa do fabricante poria o problema do direito de regresso deste contra o verdadeiro responsável, não a montante, mas a jusante da “cadeia contratual” (contra o seu “Nachmann” — v. H.-P. WESTERMANN, “Kaufrecht im Wandel”, cit., III, 2, ID., Das neue Kaufrecht...”, cit., p. 561). E tal solução não passou para a proposta aprovada (tal como pode ser consultada em www.bmj.bund).
A possibilidade de uma acção directa contra o responsável, não apenas pelo comprador/consumidor, mas pelo vendedor, é reconhecida pela jurisprudência francesa. Trata se de uma pretensão, apesar de directa, de natureza contratual, que resulta do facto de a garantia se entender ligada à coisa defeituosa e transmitida com esta — v., com indicações, S. ROHLFING-DIJOUX, op. cit., pp. 158-9.

(56) Propondo uma responsabilidade solidária de todos os elementos da cadeia contratual, v. H. EHMANN/U. RUST, cit., p. 863.

(57) Já no caso de se tornar impossível determinar o verdadeiro causador da falta de conformidade, a regulamentação a introduzir poderia, ou prever uma responsabilidade solidária dos diversos elementos da cadeia contratual, ou, então sim, canalizar a responsabilidade para um só sujeito, que poderia ser o produtor (salvo, eventualmente, também aqui, quando a própria natureza do defeito excluir claramente que este tenha sido este o seu causador). Cf. Á. CARRASCO PERERA et alii, “Transposición...”, cit., p.132.

(58) Tratar-se-ia, antes, uma responsabilidade ex lege, imposta a um terceiro em relação ao contrato. Cf. o tratamento desta questão W. ERNST/B. GSELL, cit., pp. 1423 e ss.

(59) Na verdade, quanto maior número de relações e demandados — e meios de defesa opostos por estes — houver que percorrer, tanto maior tenderá a ser o risco de surgimento de obstáculos ao direito de regresso.

(60) Assim, os §§ 933b e 476, respectivamente do projecto austríaco de transposição da directiva e da citada proposta alemã de lei de modernização do direito das obrigações. No sentido de um direito de regresso apenas em cada relação contratual, v. também B. JUD, op. cit., pp. 665-6, H. MATTHIESSEN/B. LINDNER, op. cit., p. 622, H.-P. WESTERMANN, “Vorschlag...”, cit., p. 277, W. ERNST/B. GSELL, loc. cit..

(61) Pp. 111-2. Sugeria-se uma responsabilidade do fabricante diferenciada da do vendedor ao nível da apreciação do defeito — a noção de expectativa legítima apenas poderia ser oponível ao fabricante em relação aos elementos de que este fosse responsável (excluindo, assim, as declarações do vendedor sobre as qualidades e o conteúdo do contrato) – e dos direitos do comprador, que seriam, pelo menos num primeiro momento, limitados à reparação e à substituição da coisa. Se a reparação ou a substituição não fossem ou não pudessem ser efectuadas, o consumidor poderia exigir ao fabricante também o preço pago ou a diminuição do valor do bem. Solução semelhante — embora nos termos de uma responsabilidade solidária, incluindo igualmente o “representante” do produtor — era também acolhida no anteprojecto de directiva.

(62) Tal responsabilidade existe na legislação finlandesa e, de longa data, nos sistemas jurídicos francês, belga e luxemburguês (que aceitam a action directe perante o produtor; o mesmo vale em Espanha, para os bens de natureza duradoura, na medida em que a garantia comercial do fabricante seja obrigatória — artigo 11.°, n.° 2, da citada Ley general para la defensa de los consumidores y usuarios). Em Itália, foi a jurisprudência que chegou a tal solução (v. A. ZACCARIA, cit., p. 269, com indicações), que corresponde, no domínio da qualidade dos bens, à já adoptada, para a segurança, pela Directiva 85/374/CEE, relativa à responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos (e consagrada, no nosso direito, pelo Decreto-Lei n.° 383/89, de 6 de Novembro).

(63) V.G. BRÜGGEMEIER, cit., p. 533.

(64) Assim, importa notar que a necessidade de prever um direito de regresso “a jusante” não contraria a responsabilidade directa do produtor. Este poderia sempre provar, mesmo na acção contra o consumidor, que o defeito provavelmente não existia no momento em que colocou o produto em circulação, devendo-se antes a armazenamento ou embalagem errados pelo vendedor.

(65) Como se ponderava no Livro verde..., cit., p. 111, “é contraditório que o produtor seja responsável quando o produto defeituoso provocar um prejuízo a pessoas ou (em certos) casos, a outros bens [v., entre nós, o artigo 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 383/89] e que não tenha responsabilidade quando, muito simplesmente, o produto não funcionar ou quando um defeito de fabrico tiver provocado danos ao próprio produto.” E ponderava-se ainda que a extensão da responsabilidade ao fabricante aumentaria as possibilidades de o consumidor lesado — para quem o fabricante produz — ver reparado o prejuízo que o defeito lhe causa, nos casos em que o produtor é mais fácil de contactar do que o vendedor e nos casos em que os meios financeiros deste são insuficientes. Aliás, em muitos bens os produtores são frequentemente já responsáveis perante os consumidores, quando oferecem garantias comerciais, e, de forma indirecta, quando, como frequentemente acontece, retomam dos vendedores os bens recusados pelos consumidores em consequência de defeitos de origem.
Note-se, ainda, que, com toda a probabilidade, salvo quando o consumidor estabelece (por exemplo, numa compra transfronteiriça, numa viagem ao estrangeiro) uma relação directa com o produtor — caso em que a justificação para a responsabilidade directa perante o consumidor é tanto mais clara — ou quando o comerciante não está acessível ou desapareceu do mercado, a introdução da possibilidade de o comprador se dirigir ao fabricante não o tornaria o alvo principal das reclamações dos consumidores, continuando estes a dirigir se prioritariamente aos seus parceiros directos – os vendedores.

(66) V. a alteração 25 proposta pelo Parlamento Europeu (JOCE C 104, de 6 de Abril de 1998, p. 35). Tal proposta não foi acolhida, nem na proposta alterada da Comissão, nem na posição comum do Conselho e não voltou a ser formulada em 2.ª leitura.

(67) A aparente “má consciência” daqui resultante deixou, porém, traços na directiva, cujo considerando 23 pondera que, atendendo à evolução da legislação e da jurisprudência reveladora de uma preocupação crescente em garantir um elevado nível de protecção dos consumidores, e “à experiência adquirida com a aplicação da presente directiva, poderá ser necessário considerar um grau mais elevado de harmonização e prever, nomeadamente, a responsabilidade directa do produtor pelos defeitos de que é responsável”. Por outro lado, o artigo 12.° obriga a Comissão a, até 2006, no relatório que elaborará para o Parlamento Europeu e o Conselho destinado a examinar a aplicação da directiva, pronunciar-se sobre a eventual introdução da responsabilidade directa do produtor, e, se necessário, formular propostas.
Também mantida é a “horizontal privity” (assim, N. REICH, cit., p. 2399), na medida em que a directiva apenas regula os direitos do consumidor enquanto comprador, isto é, enquanto parte no contrato de compra e venda, e não contém disposições sobre os direitos de futuros adquirentes (ao consumidor), de utilizadores, etc.. O anteprojecto de directiva, na sequência do Livro verde... (cit., p. 113), previa que os direitos conferidos se considerassem automaticamente transmitidos a toda e qualquer pessoa a quem o bem fosse posteriormente transmitido, a título gratuito ou oneroso. Desta forma, resolver-se-iam os problemas gerados pela interposição de um consumidor entre o vendedor e o destinatário final (por exemplo, quando a coisa fosse oferecida como presente). Esta solução — consagrada já nalguns países europeus — não foi acolhida na proposta de directiva.

(68) E J. CALVÃO DA SILVA, Responsabilidade civil do produtor, cit., pp. 451 e ss.
O artigo 8.° da LDC, por sua vez, prevê apenas que a obrigação de informar impenda “também sobre o produtor, o fabricante, o importador, o distribuidor, o embalador e o armazenista, por forma que cada elo do ciclo produção consumo possa encontrar se habilitado a cumprir a sua obrigação de informar o elo imediato até ao consumidor, destinatário final da informação” (n.° 2), e que, sendo o fornecedor de bens ou o prestador de serviços que viole o dever de informar responsável pelos danos que causar ao consumidor, com ele serão “solidariamente responsáveis os demais intervenientes na cadeia da produção à distribuição que hajam igualmente violado o dever de informação” (n.° 5).

(69) Defendendo também, depois de referir o artigo 8.°, n.° 5, da LDC que “o mais razoável será conceder esse direito ao consumidor [de agir contra os demais intervenientes na cadeia da produção à distribuição], seja qual for o fundamento da responsabilidade e o tipo de dever jurídico violado”, Jorge SINDE MONTEIRO, “Proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à venda e às garantias dos bens de consumo”, Revista Jurídica da Universidade Moderna,1, 1998, p. 469. No direito espanhol, v. por ex. Á. CARRASCO PERERA et alii, “Transposición...”, cit., p. 130. A favor da consagração legislativa no direito italiano, F. RUSCELLO, op. cit., p. 185. E, para o direito alemão, M. LEHMANN, loc. cit. Concordando com a renúncia a consagrar na directiva a responsabilidade directa do produtor e considerando muito curto o prazo para o relatório referido,
v. D. STAUDENMAYER, cit., p. 2397. Diversamente, a favor da consagração daquela responsabilidade, v., por ex. Christian TWIGG-FLESNER, “The E.C. Directive on Certain Aspects of the Sale of Consumer Goods and Associated Guarantees”, Consumer Law Journal, 1999, p. 190, M. TENREIRO/S. GÓMEZ,—cit., pp. 20-1.

(70) A consagrar-se tal responsabilidade directa do produtor, os direitos concedidos ao comprador contra este poderiam, ou não, ser limitados à substituição ou à reparação do bem (podendo ainda caber ao comprador ou ao produtor escolher entre estas possibilidades). Se estas não puderem ser, ou não forem, efectuadas em prazo razoável, o comprador poderia dispor do direito de exigir ao produtor o montante correspondente à redução ou à restituição do preço, pois caso contrário poderia ficar desprovido de qualquer protecção. Ao consumidor cumpriria sempre fazer prova da sua compra ao vendedor final (nomeadamente para provar que o prazo de garantia não expirou), incluindo o preço pago, podendo eventualmente, no caso de não ser possível a reparação ou a substituição, o produtor invocar o carácter excessivo do preço que não tenha sido determinado nem recebido por ele. Quanto ao ónus da prova da existência dos defeitos aquando da colocação do bem no mercado pelo produtor, poderia, quando muito, exigir-se que o consumidor estabelecesse a probabilidade da sua existência. Por outro lado, seria conveniente consagrar causas de exclusão de responsabilidade semelhantes às previstas já no artigo 5.° do citado Decreto-Lei n.° 383/89, de 6 de Novembro (designadamente: falta de colocação do bem em circulação; probabilidade, de acordo com as circunstâncias, de inexistência do defeito no momento em que o bem foi colocado em circulação pelo produtor; não fabricação do produto para a venda ou para qualquer outra forma de distribuição com fins lucrativos, nem no quadro da actividade profissional do produtor). E seria ainda de prever, para além do prazo da garantia de que beneficia o comprador, um outro prazo preclusivo (como o de dez anos previsto no artigo 12.° do citado diploma) contado a partir da data na qual o produtor colocou no mercado aquele mesmo bem em questão, salvo se houver sido intentada acção judicial contra o produtor ou seu representante (ou, mesmo, uma exclusão para todos bens usados—assim, Á. CARRASCO PERERA et alii, “Transposición...”, cit., p. 127).

(71) Dizendo que a directiva introduz um “efeito de harmonização de forma subtil”, v. J. SCHMIDT-RÄNTSCH., “Zum Stand...”, cit., p. 850, e a exposição de motivos do “Projecto de uma lei de modernização do direito das obrigações”, aprovado como proposta de lei em Maio de 2001 pelo governo federal alemão, p. 208. Remetendo esta via de harmonização para razões de competência (resultante da tensão entre o princípio da subsidiariedade e a consecução de um “elevado nível de protecção dos consumidores”, v. G. BRÜGGEMEIER, op. cit., p. 533).

(72) É o que se faz nos projectos austríaco e alemão, e o que propõe, por exemplo, N. REICH, op. cit., p. 2403.

(73) Podendo pôr-se o problema de saber se o direito nasce apenas quando a responsabilidade é efectivada— pagando o vendedor final ao comprador o preço ou a diferença de preço, reparando ou substituindo o bem—ou logo que ela é reconhecida, pelo vendedor final ou por sentença judicial. V. Á. CARRASCO PERERA et alii, “Transpo-sición...”, cit., p. 132.

(74) V. estes dois pressupostos em R. WELSER/B. JUD, cit., p. 156.

(75) A “exclusão do regresso em caso de falta de conformidade com o contrato que é imputável apenas ao vendedor final está já implícita nos pressupostos daquele” — assim, M. SCHMIDT-KESSEL, cit., p. 671 (afirmando, porém, que não basta para excluir o direito de regresso logo o facto de a falta de conformidade se dever também à descrição do bem, ou do seu uso, no contrato). No mesmo sentido, P. SCHLECHTRIEM, “Das geplante...”, cit., p. 213.

(76) Ou, diversamente (como dizem R. WELSER/B. JUD, cit., p. 157): trata-se de apurar quando é que as pessoas referidas no artigo 4.° foram pelo menos co-causadoras da falta de conformidade.

(77) A distinção que se segue é feita por R. WELSER/B. JUD, loc. cit., M. SCHMIDT KESSEL, cit., p. 671 e B. JUD, cit., p. 662. Seguimo-la também em “Conformidade e garantias...”, cit., p. 284.

(78) A directiva não requer, qualquer reconhecibilidade, para a contraparte, da natureza não profissional do uso visado pelo adquirente para a sua aplicação. Reconhecemos, aliás, que tal exigência, motivada pela protecção da contraparte — e correspondente, de certa forma, à resultante da formulação “se o contrário do próprio acto não resultar”, constante do artigo 2.° do Código Comercial, para a qualificação de actos como subjectivamente comerciais — pode suscitar objecções fundadas (e não só quanto ao respeito pela vinculação resultante da directiva), revendo por isso a posição para que apontávamos em “Conformidade e garantias na venda de bens de consumo...”, cit., n.° 48 (se bem que deva notar-se que essa exigência de reconhecibilidade contribuiria para atenuar sobremaneira os problemas que uma sobreposição dos campos de aplicação da directiva e da Convenção de Viena pode suscitar).

(79) Assim, por ex., D. MEDICUS, “Verbraucherrecht...”, cit., p. 229), St. GRUNDMANN, “Generalreferat...”, cit., pp. 311 e 319.
Note-se, porém, que o problema do direito de regresso do vendedor final perante anteriores elementos da cadeia de distribuição só se suscitará normalmente ex post — isto é, já depois de apurada a responsabilidade do vendedor final perante o consumidor pela falta de conformidade, e, como se disse, desde que esta seja “resultante de um acto ou omissão do produtor, de um vendedor anterior da mesma cadeia contratual”, ou de outro intermediário. Assim, tal como se a falta de conformidade estiver ligada apenas a um elemento específico da última relação da cadeia não existirá direito de regresso, também se o vendedor não vier a final a ser responsável perante o consumidor, ou se o adquirente final não for de considerar como consumidor — sendo antes outro profissional —, pura e simplesmente não será então aplicável o regime da directiva, incluindo o direito de regresso. A questão posta no texto prende-se, pois, não com a determinação das condições de responsabilidade na acção de regresso, e sim com o planeamento ex ante, pelo produtor e outros elementos da cadeia contratual, da sua possível responsabilidade ante o vendedor final, para o que se torna necessário apurar a quem se dirige o bem, consoante a natureza deste. Usando como critério de aplicação de diversos prazos de prescrição o facto de os bens serem ou não dirigidos para consumidores, v. N. REICH, cit., pp. 2402-3. Para G.BRÜGGEMEIER, cit., p. 534, diversamente, a consequência do direito de regresso é a generalização do regime a todos os bens, de consumo e de equipamento, pois o regime da venda ao consumidor projecta-se sobre toda a cadeia de distribuição.

(80) Assim, M. SCHMIDT-KESSEL, cit., p. 671.

(81) Há quem tenha sugerido que a obrigação de cada elemento anterior ao vendedor final deveria ser concebida como uma verdadeira obrigação de garantia, a cargo de todos os elementos da cadeia (v. H. EHMANN/U. RUST, cit., p. 863). Diversamente, defendendo que o cumprimento do contrato apenas libera perante a respectiva contraparte, M. SCHMIDT-KESSEL, loc. cit.: quando o próprio cumprimento foi regular, só poderia a falta de conformidade resultar de indevidamente se dirigir o bem para um consumidor; a conformidade em estádios mais avançados da cadeia de distribuição não impediria, porém, a responsabilidade de elementos anteriores perante o vendedor final, pois o artigo 4.° tornaria cada elemento responsável, independentemente daquilo que cada um convencionou com a sua contraparte.

(82) A entrega de um modelo ou amostra ou a rotulagem à qual as coisas não correspondem pode ser vista ainda como violação de um dever contratual logo no momento da entrega. Diversamente, julgamos que a realização de declarações públicas sobre a coisa posteriormente ao cumprimento do contrato—declarações que vão integrar o contrato final com o consumidor — apenas seria configurável como violação de deveres contratuais nos quadros de uma responsabilidade pós-contratual, por violação das exigências da boa fé.

(83) Nestes termos, para o direito alemão, M. SCHMIDT-KESSEL, “Der Rückgriff...”, cit., p. , 672, H. EHMANN/U. RUST, cit., p. 862, M. LEHMANN, cit., p. 290, G. BRÜGGEMEIER, cit., p. 534. No sentido da suficiência do direito alemão actual, J. SCHMIDT-RÄNTSCH, “Zum Stand...”, cit., p. 850, ID., “Gedanken...”, p. 298.

(84) Salientando que a responsabilidade é objectiva, não sendo admissível a exigência de culpa, v. H. EHMANN/U. RUST, cit., p. 863 (propondo a introdução legal de uma obrigação de garantia: “a responsabilidade por culpa como fundamento do regresso não basta”), M. LEHMANN, cit., pp. 290, M. SCHMIDT-KESSEL, cit., p. 672. Cf. tb. P. SCHLECHTRIEM, “Das geplante...”, cit., p. 212. K. TONNER, cit., p. 1773, fala de uma “equiparação da bitola da responsabilidade” (“Gleichlauf des Haftungsstandards”). G. BRÜGGEMEIER (cit., pp. 533) propõe a introdução por via legal de uma obrigação de garantia acessória da compra e venda.

(85) É claro, porém, que impenderá sobre o vendedor final um “dever de minoração dos danos” que sofreu por virtude da sua responsabilidade, cujo não cumprimento relevará, pelo menos, nos termos gerais da culpa do lesado (artigo 570.° do Código Civil).

(86) Nestes termos, M. SCHMIDT KESSEL, cit., p. 671 — a própria razão de ser do direito de regresso imporia, aliás, que a exclusão de responsabilidade apenas fosse permitida dentro de estreitos limites.

(87) Relativamente ao contrato de empreitada, o artigo 1223.° ressalva o “direito a ser indemnizado nos termos gerais.”

(88) V. M. SCHMIDT-KESSEL, “Der Rückgriff...”, cit., p. 671.
Note-se, por outro lado, que os danos que a própria coisa venha a sofrer em consequência de uma falta de conformidade (por exemplo, um defeito numa peça do motor danifica a chapa do automóvel) são, a nosso ver, de considerar ainda incluídos na falta de conformidade da coisa, sendo-lhe, portanto, aplicáveis os direitos previstos na directiva (reparação e substituição da coisa, por exemplo). Assim, M. TENREIRO/S. GÓMEZ, cit., p. 18, que equiparam ainda à falta de conformidade os danos resultantes de má utilização devida a informação deficiente do comprador (mas excluem os danos em bens diversos do vendido).

(89) Assim, W. ERNST/B. GSELL, op. cit., p. 1421, W.-H. ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung…”, cit., p. 254. Tal não impede H.-P. WESTERMANN, “Vorschlag...”, cit., p. 277 de defender que a unificação dos prazos se estenda ao regresso pela satisfação de pretensões indemnizatórias do consumidor, e não apenas pelo exercício da garantia. Assim, tb. Á. CARRASCO PERERA et alii, “Transposición...”, cit., p. 131.

(90) Diz a disposição citada que “o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.” Ao contrário do que acontece para os direitos previstos no n.° 1 deste artigo (reparação e substituição da coisa, redução do preço e resolução do contrato), a lei não esclarece, porém, expressamente, se o direito de indemnização também é reconhecido independentemente de culpa do vendedor (rectius, do conhecimento ou desconhecimento com culpa do defeito), diversamente do que preceitua o artigo 915.° do Código Civil. O paralelismo com aqueles direitos à reparação e substituição, também feitos depender de culpa pelo Código Civil e para os quais a LDC a dispensa, levaria a uma resposta afirmativa, considerando objectiva a responsabilidade do vendedor perante o comprador/consumidor. Mas não é claro se, para além dos aspectos expressamente regulados no artigo 12.°, n.° 1, da LDC, devem continuar a exigir-se as condições de exercício dos direitos nele previstos estabelecidas na lei geral (v.g. um erro essencial para a resolução e a necessidade da substituição), como nota J. SINDE MONTEIRO, “Proposta de Directiva...”, cit., nota 22. No caso vertente, trata-se, ainda assim, apenas de apurar se a desnecessidade da culpa expressamente prevista no n.° 1 do artigo 12.° vale também para o n.° 3, ou se rege a regra geral da responsabilidade subjectiva.

(91) V., neste sentido, P. Pedro ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso — em especial na compra e venda e na empreitada, Coimbra, 1994, pp. 355-6, id., Direito das obrigações, cit., p. 121. Cfr., porém, Manuel CARNEIRO DA FRADA, “Perturbações típicas do contrato de compra e venda”, in ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO (org.), Direito das obrigações, vol. III, Lisboa, 1991, pp. 70-1 (o artigo 909.° abrange todos os casos de erro, com culpa do vendedor ou não).
(92) Cf. B. JUD, op. cit., pp. 666-7 (dando os seguintes exemplos: se o comprador exigir ao vendedor final a redução do preço, mantém a coisa, e o exercício por este dos direitos à reparação ou à substituição fica prejudicado; se o vendedor reparar a coisa, a reparação pelo seu fornecedor já não é possível). Cf. também, para o artigo 1226.° do Código Civil, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. II, 3.ª ed., Coimbra, 1986, anot. 2 ao artigo 1226.° (“o empreiteiro, no exercício dos seus direitos contra o subempreiteiro, não pode deixar de estar na dependência daquilo que for exigido pelo dono da obra”, por isso a lei falando em direito de regresso; assim, se, por exemplo, o dono da obra “pediu uma redução do preço, o empreiteiro não pode exigir do subempreiteiro a resolução do contrato, mas apenas uma redução correspondente aos vícios da subempreitada”). E também P. ROMANO MARTINEZ, Direito das obrigações, cit., p. 386 (o exercício do direito de regresso está condicionado ao pedido do dono da obra).

(93) B. JUD, op. cit., pp. 664, 666, rejeita, porém, o ressarcimento integral dos lucros cessantes do vendedor final, que tornaria o âmbito do direito de regresso dificilmente calculável pelos fornecedores, porque dependente da margem de lucro dos vendedores subsequentes. A favor da inclusão de todos os custos do vendedor com o exercício da garantia, v., porém, W.-H. ROTH, “Der nationale Transformationsakt...”, cit., p. 136, id., “Schuldrechtsmodernisierung”, cit., p. 254 (pretensão indemnizatória independente de culpa, justificada também pelo fim de protecção mediata do consumidor), M. SCHMIDT KESSEL, op. cit., p. 671, M. LEHMANN, op. cit., p. 289, B. GSELL, “Kaufrechtsrichtlinie…”, cit., p. 73, H.-P. WESTERMANN, “Kaufrecht im Wandel…”, cit., IV, 4.

(94) A pretensão de ressarcimento pelas despesas (“Aufwendungen”) realizadas pelo vendedor final em consequência da garantia não estava prevista no “projecto de lei de modernização do direito das obrigações” alemão tornado público no Verão de 2000. Este abdicava, antes, de qualquer regulamentação específica do direito de regresso, limitando se a estender a três anos o prazo geral da garantia do comprador/vendedor final (confiando que tal alargamento do prazo eliminaria os problemas de inviabilidade do direito de regresso). Tal regime foi considerado insuficiente pela doutrina (v., designadamente, os autores por último citados), vindo, na reelaboração que se seguiu, a ficar previsto um regime específico para o direito de regresso, com uma norma (§ 476, n.° 2 do projecto) segundo a qual “em caso de venda de uma coisa nova, o empresário pode exigir ao seu fornecedor o pagamento das despesas que nos termos do § 439, n.° 2 [direitos do comprador], teve de suportar na relação com o consumidor, se o defeito invocado por este já existia no momento da transferência do risco para o empresário. É aplicável o § 476 [que prevê a inversão do ónus da prova a que nos referiremos de seguida], começando o prazo a correr no momento da transferência do risco para o consumidor. “Propondo a atribuição ao vendedor final de uma “pretensão de liberação” (“Befreiungsanspruch”) das exigências efectuadas pelo comprador em resultado da garantia, que incluiria os custos com esta e, em caso de insolvência do vendedor final, poderia ser penhorada pelo comprador consumidor, W. ERNST/B. GSELL, , op. cit., p. 1421.

(95) Assim, W. FABER, cit., 429, M. SCHMIDT-KESSEL, “Der Rückgriff...”, cit., p. 672 (diversamente, v. por ex., D. STAUDENMAYER, cit., 2396, Peter SCHLECHTRIEM, “Die Anpassung des deutschen Rechts an die Klausel-Richtlinie und den Richtlinienvorschlag zum Verbraucherkaufrecht”, ZSR, 4, I, 1999, p. 356). O problema, aliás, só parece pôr-se para as “condições de exercício”. Já a referência às “acções” tem apenas em vista regras processuais de exercício do direito, sem relevância substantiva. Diga-se, a propósito, que, nalgumas versões linguísticas da directiva, a referência a “condições” (na versão alemã “Bedingungen”) foi substituída na versão final por “modalidades de exercício”, uma expressão, pois, menos limitativa do direito de regresso do vendedor final (não foi o caso da versão portuguesa, só podendo lamentar-se tais divergências entre versões linguísticas do mesmo instrumento normativo). Sobre as possíveis regras processuais de exercício do direito de regresso, v. infra cc).

(96) Contra a remissão das partes para um “melhoramento” do direito supletivo, por exemplo, pelo alargamento convencional dos prazos, D. MEDICUS, “Dogmatische Verwerfungen...”, cit., II, 3. Mas cf. S. GRUNDMANN, “Generalreferat...”, cit., pp. 309-10, o qual, partindo do primado da autonomia privada, defende que o legislador pode adoptar “soluções na medida em que o vendedor as pode afastar por actuação em autonomia privada”.

(97) A generalidade da doutrina põe em evidência que a diferença de prazos constitui um obstáculo fundamental ao exercício do direito de regresso. V., por ex., A. ZACCARIA, op. cit., p. 268, F. RUSCELLO, op. cit., pp. 184-5, H.-P. WESTERMANN, “Vorschlag...”, cit., p. 276

(98) V., por ex., Á. CARRASCO PERERA/E. CORDERO LOBATO/P. MARTINEZ ESPÍN, op. cit., p. 132.

(99) V. esta consideração em W.-H. ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung im Kontext des Europarechts”, cit., p. 251 e H.-P. WESTERMANN, “Vorschlag...”, cit., p. 277.

(100) A maioria dos defeitos de bens não consumíveis manifesta-se, é certo, dentro dos seis primeiros meses a partir do início da sua utilização. Mas pode não ser assim (para além de a coisa poder não começar logo a ser utilizada pelo comprador).

(101) Segundo o referido “projecto de lei de modernização do direito das obrigações” alemão, bastaria a extensão geral do prazo de garantia para três anos, não se tornando necessária qualquer regulamentação específica do regresso (designadamente, a directiva não imporia a existência do direito de regresso por direitos exercidos no terceiro ano). Criticamente, v. P. SCHLECHTRIEM, “Das geplante...”, cit., p.212, nota 10, B. GSELL, “Kaufrechtsrichtlinie...”, cit., p. 73, P. BYDLINSKI, op. cit., II, 3 (interpretação da directiva “seguramente incorrecta”). Segundo W.-H. ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung im Kontext des Europarechts”, cit., p. 251, diversamente, tal regime de equiparação dos prazos manteria o regresso para a grande maioria dos casos, e garantiria o fim do artigo 4.° de forma efectiva (se bem que não óptima).
(102) V. tb. R. WELSER/B. JUD, cit., p. 160, H. EHMANN/U. RUST, cit., p. 862, P. SCHLECHTRIEM, in ZSR, cit., p. 356, G. BRÜGGEMEIER, cit., p. 534 (o prazo começa a correr a partir da exigência por parte do consumidor), W. ERNST/B. GSELL, op. cit., pp. 1422 3 (salientando que a efectividade do direito de regresso não é conseguida através de um paralelismo entre posições de vendedor final e de consumidor), Á. CARRASCO PERERA et alii, “Transposición...”, cit., p. 132. Cf. ainda perante problema semelhante, suscitado em face do direito alemão, M. LEHMANN, cit., p. 290, F. SCHURR, cit., p. 227, N. REICH, cit., p. 2400 (não admitindo uma prescrição anterior do direito do vendedor final), M. SCHMIDT KESSEL, “Der Rückgriff...”, cit., p. 672 (admitindo a diferença de prazos de prescrição, desde que para o vendedor final estes não sejam excessivamente curtos). E tb., criticamente em relação ao projecto alemão de Agosto de 2000, P. BYDLINSKI, loc. cit. (referindo igualmente que o dies a quo também não deve ser o da satisfação da garantia pelo vendedor final, como prevê o projecto austríaco — que permitiria ao vendedor final retardar intencionalmente o início do prazo —, mas sim o momento em que é estabelecida com segurança a existência de pretensões do comprador final).

(103) Á. CARRASCO PERERA et alii, “Transposición...”, cit., p. 132.

(104) Para ambos os regime se encontram lugares paralelos no Código Civil. Assim, o artigo 1226.°, fixando embora um prazo curto, prevê como dies a quo do prazo de denúncia aos subempreiteiros, para exercício do direito de regresso do empreiteiro, o momento da recepção da denúncia dos defeitos (também no § 426 do BGB se prevê um novo prazo de prescrição para o exercício do direito de regresso pelos devedores solidários — v. o paralelo em D. MEDICUS, “Dogmatische...”, cit., II, 3). Suspensões do prazo de prescrição até um termo inicial encontram-se, por sua vez, previstas, a favor de menores, interditos ou inabilitados, no artigo 320.°, n.os 1 e 2 (resultando mesmo do n.° 3 uma dupla suspensão), e, para o caso dos direitos da herança ou contra ela, no artigo 322.° (e cf. ainda, para o caso da cessação da interrupção da prescrição por absolvição da instância ou ineficácia do compromisso arbitral, o artigo 327.°, n.° 3). Preferimos, porém, a segunda solução, que não contende com o início do decurso do prazo para exercício do direito de regresso, apenas assegurando um período de tempo mínimo para o efeito.
Por outro lado, seria, também aqui, conveniente prever, para evitar a incerteza de vendedores potencialmente obrigados sobre o exercício de direitos de regresso muito anos depois do cumprimento dos contratos, um prazo preclusivo geral, a contar a partir da entrega por cada um deles (é o que fazem os projectos de transposição austríaco e alemão, prevendo um prazo de cinco anos).

(105) V. P. MOTA PINTO, “Conformidade e garantias...”, cit., p. 246. E cf. D. STAUDENMAYER, in NJW, cit., p. 2394, referindo que apenas a negligência grosseira deve ser considerada relevante.
O Código Civil também não prevê expressamente um dever de o comprador examinar a coisa no momento da conclusão do contrato ou da entrega da coisa. Diversamente, para o contrato de empreitada prevê-se, no artigo 1218.°, um dever do dono da obra de verificar, antes de a aceitar, se ela se encontra nas condições convencionadas e sem vícios, sendo que a falta de verificação ou comunicação do respectivo resultado importa aceitação da obra (n.° 5).

(106) Invocando este argumento M. SCHMIDT-KESSEL, “Der Rückgriff...”, cit., p. 672 (mas, por aceitar a acção directa, afirmando que a falta de denúncia pelo vendedor final ao responsável não elimina o direito de regresso, apenas faz com que aquele tenha de dirigir-se ao seu respectivo vendedor). Aceitando a manutenção dos deveres de exame e denúncia de defeitos previstos nos §§ 377 e seg. do Código Comercial alemão, F. SCHURR, “Die neue Richtlinie...”, cit., p. 228, W.-H. ROTH, “Der nationale Transformationsakt...”, cit., p. 136, S. GRUNDMANN, op. cit., p. 311. Diversamente, segundo N. REICH, cit., p. 2401, tais ónus de exame e denúncia dos defeitos num prazo curto não deveriam valer quando os bens em questão estão destinados a ser alienados até a um consumidor final.

(107) Cf., H.-P. WESTERMANN, “...”, p. 278 (a imposição ao fabricante do ónus de provar que os danos foram causados durante o armazenamento da mercadoria pelo vendedor final seria de rejeitar). A. FLESSNER, “Richtlinie und Reform...”, cit., p. 247, defende que a equiparação entre vendedor final e comprador consumidor não deveria valer para a presunção de anterioridade da não conformidade. Diversamente, propondo a remissão para a presunção que acabou por ficar consagrada no projecto alemão, W.-H. ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung...”, cit., p. 254.

(108) A favor da extensão da presunção, que seria ainda imposta pela preservação do efeito útil do artigo 4.°, ao vendedor final, W.-H. ROTH, loc. cit., (mas afirmando que, mesmo sem a extensão temporal da presunção, a inversão do ónus da prova permitiria muitas vezes contrariar a alegação pelo fornecedor do vendedor final de que a reparação ou substituição foram realizadas por este apenas como prestação graciosa).

(109) Anteriormente à reforma de Dezembro de 1995, v. o artigo 330.° (chamamento à demanda), alínea c), do Código de Processo Civil.

(110) Gera-se, através destes inovadores n.os 2 e 3 do artigo 329.°, uma situação em que, se intervier, o chamado “ocupa, ao mesmo tempo, a posição de réu ao lado do réu primitivo, no âmbito do pedido inicial de condenação na totalidade da dívida, e de réu no confronto do réu primitivo” (José LEBRE DE FREITAS/João REDINHA/Rui PINTO, Código de Processo Civil anotado, vol. 1.°, Coimbra, 1999, anot. 4 ao artigo 329.°, p. 581).

(111) E note-se que se formará caso julgado contra o chamado mesmo que este não intervenha, nos termos do artigo 328.°, n.° 2, alínea a) do Código de Processo Civil (v. tb. ibidem, pp. 582-3).

(112) A redacção deste artigo 330.°, n.° 1, exclui, na verdade, os casos em que o terceiro tinha legitimidade para intervir, espontaneamente ou por chamamento, como parte principal.
Um caso de chamamento à autoria nos termos do artigo 325.° do Código de Processo Civil (correspondente, na redacção anterior a 1996, à intervenção acessória provocada regulada hoje no artigo 330.°), para exercício do direito de regresso previsto no artigo 1226.° do Código Civil, foi o decidido pelo acórdão da Relação de Évora de 20 de Outubro de 1994 (Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, 1994, tomo IV, p. 278.

(113) Para a explicação da diferença de regimes entre o exercício do direito de regresso em caso de obrigações solidárias e nos restantes casos, v. o relatório do Decreto Lei n.° 329-A/95, de 12 de Dezembro.

(114) Haveria, para isto, ainda que rever o estatuto do terceiro chamado — de parte principal, pois pode ser condenado no mesmo processo – e o alcance do caso julgado resultante da condenação do vendedor final. Propondo tambem a possibilidade de condenação do obrigado ao regresso no mesmo processo, mesmo que não responda solidariamente, cf. Á. CARRASCO PERERA et alii, “Transposición...”, cit., pp. 132-3.

(115) Também o artigo 7.°, n.° 2, da directiva, que visa evitar que a protecção reconhecida aos consumidores seja reduzida por virtude da escolha de uma lei de um Estado não membro, não é aplicável ao direito de regresso (v. Ansgar STAUDINGER, “Form und Sprache”, texto na n. 109, in R. SCHULZE/H. SCHULTE-NÖLKE, orgs., cit.).

(116) O direito de regresso, que no anteprojecto de directiva tinha carácter dispositivo, foi acolhido na proposta (artigo 3.°, n.° 5) sem se esclarecer expressamente se se tratava de uma norma imperativa (mas sendo uma resposta positiva inculcada pelos termos empregues e pela referência, na exposição de motivos do direito de regresso, à inserção, no contrato com o vendedor final, de cláusulas de exoneração da garantia legal). A proposta do Parlamento Europeu no sentido da clara consagração da inderrogabilidade convencional do direito de regresso não foi, porém, acolhida na proposta alterada da Comissão, tendo a posição comum do Conselho autonomizado o direito de regresso no artigo 4.° e esclarecido, neste artigo e no considerando respectivo (que era então o 8) que o vendedor final podia renunciar ao direito de regresso. O Parlamento Europeu propôs então, em segunda leitura (alteração 19), a eliminação da alteração no articulado, embora mantendo se a referência à renúncia constante dos considerandos. E esta proposta foi aceita pela Comissão no seu parecer sobre as alterações em segunda leitura — COM (1999)16 final, p. 4 —, assim se chegando ao considerando 9, citado no texto.

(117) A favor da imperatividade, v. H.-P. WESTERMANN, “Vorschlag...”, cit., p. 278; diversamente, considerando o artigo 4.° dispositivo, v. Stefan GRUNDMANN, Europäisches Schuldvertragsrecht. Das europäische Recht der Unternehmensgeschäfte, Berlin-New York, 1999, pp. 286 e ss., e D. STAUDENMAYER, cit., NJW, 1999, p. 2393 (“Kann-Bestimmung”). E, remetendo apenas para a proibição de cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé, N. REICH, cit., p. 2400, M. SCHMIDT-KESSEL, cit., p. 673, W.-H. ROTH, “Die Schuldrechtsmodernisierung...”, cit., p. 251, W. ERNST/B. GSELL, cit., p. 1425, e Ole LANDO, loc. cit., invocando o artigo 8:109 dos Principles of European Contract Law, que proíbem a exclusão ou limitação dos direitos previstos para a inexecução do contrato, quanto tal for contrário à boa fé e fair dealing. Como se sabe, também entre nós o artigo 809.° do Código Civil não proíbe, segundo a interpretação preferível, cláusulas limitativas ou, mesmo, de exclusão de responsabilidade civil, fora dos casos de dolo e culpa grave — v. A. PINTO MONTEIRO, Cláusulas limitativas e de exclusão..., cit., pp. 182 e ss., 224 e ss., ID., Cláusula penal e indemnização, cit., pp. 241 e ss. e M. J. ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, cit., pp. 722 e ss.

(118) Segundo esta norma da proposta de lei aprovada pelo governo alemão “uma convenção pela qual se afaste o disposto nos n.os 1 a 3 ou no § 203 em prejuízo do credor do direito de regresso é ineficaz se não for atribuída a este uma compensação de igual valor”. E, segundo o artigo 7:25 do Código Civil holandês, já citado, a invocação, contra o vendedor, da exclusão ou limitação convencional do direito de regresso depende de, considerando todas as circunstâncias do caso, ser considerada “conforme à equidade”.

(119) H. EHMANN/U. RUST, op. cit., p. 860.

(120) O prazo de transposição foi fixado nesta data para coincidir com a entrada em circulação das notas e moedas em euros (v. o relatório da delegação do Parlamento Europeu sobre o projecto comum, aprovado pelo Comité de Conciliação, de directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, p. 5).
Recorde-se, por outro lado, que, se bem que negando a existência de um efeito horizontal directo das directivas (assim, o acórdão Faccini Dori, de 14 de Julho de 1994, caso C-91/92, Colectânea da jurisprudência do Tribunal de Justiça, 1994, p. I-3325, n.os 20 e ss., confirmado, para o domínio da defesa do consumidor e mesmo em face do art. 153.° do Tratado, pelo acórdão El Corte Inglés, de 7 de Março de 1996, caso C-192/94, Colectânea da jurisprudência do Tribunal de Justiça, 1996, p. I-1281, n.os 15 e ss.), o Tribunal de Justiça tem em vários casos afirmado a responsabilidade civil dos Estados-membros perante particulares pela não transposição de directivas, na sequência do citado acórdão Francovich. Por isso mesmo se salienta (Peter GASS, “Die Schuldrechtsüberarbeitung nach der politischen Entscheidung zum Inhalt der Richtlinie über den Verbrauchsgüterkauf”, in Festschrift f. W. Rolland, Köln, 1999, p. 139) que a pontualidade de transposição desta directiva (da qual resultam vários direitos subjectivos para particulares) deve, se necessário, prevalecer sobre a qualidade.

(121) Como tratamos apenas da venda de bens de consumo, não aprofundaremos a questão para outras hipóteses. Julgamos, porém, que o direito de regresso do empreiteiro contra o vendedor de materiais empregues na obra pode ser assegurado (perante a disparidade de prazos que referimos) através da aplicação por analogia a esta hipótese (ou, de iure condendo, por disposição legal expressa), do preceituado no artigo 1226.° do Código Civil. Já as dificuldades resultantes da disparidade existente entre o regime da venda comercial e o regime geral — que, aliás, serão resolvidas pela transposição da directiva para as cadeias contratuais que culminem em vendas ao consumidor— nos parecem menos graves, podendo considerar-se inseridas ainda no risco do revendedor (isto, pelo menos, enquanto direitos como os de reparação e substituição ou de indemnização ao comprador possam ser afastados pela prova de inexistência de culpa do vendedor).

(122) O “projecto de discussão” (“Diskussionsentwurf”) alemão, tornado público em Agosto de 2000, de uma “lei de modernização do direito das obrigações” (v. o anexo I, em W. ERNST/R. ZIMMERMANN, op. cit., pp. 613 e ss.) não previa qualquer regulamentação especial do direito de regresso, bastando-se (assim, a respectiva fundamentação, ponto A, V, 4, p. 142) com o alargamento do prazo de garantia em geral, para todos os compradores, para três anos, e com a proposta de alteração do Código Comercial alemão (para que o exercício do direito de regresso não pudesse ser impedido pela falta da denúncia do defeito pelo comprador/vendedor final ao seu vendedor). Na sequência da crítica a tal omissão, foi introduzida uma norma no projecto do Governo (resultante de uma reelaboração do anterior), destinada a regular o direito de regresso no subtítulo relativo às “vendas de bens de consumo” (“Verbrauchsgüterkauf” — §§ 472 e ss. da dita “versão consolidada” do projecto), e, ainda, uma norma sobre prescrição. Segundo o § 476 (“Direito de regresso do empresário”) do projecto: “1. Se, em consequência da reparação ou substituição (“Nacherfüllung”) ou da resolução pelo consumidor, o empresário teve de reaver a coisa nova vendida, ou o consumidor reduziu o preço, não é necessária a intimação para cumprimento do contrato, em geral requerida, para o exercício dos direitos do empresário, fundados no defeito invocado pelo consumidor e referidos no § 437 [garantia do comprador], contra o empresário que lhe vendeu a coisa (fornecedor). O § 474 [que, transpondo o artigo 5, n.° 3, da directiva, estabelece uma presunção de anterioridade do defeito à entrega] é correspondentemente aplicável. 2. O empresário pode exigir ao seu fornecedor o pagamento das despesas que, nos termos do § 438, n.° 2 [despesas com a reparação ou substituição], teve que suportar na sua relação com o consumidor, se o defeito invocado por este já existia no momento da transferência do risco para o empresário. O empresário também pode exigir o pagamento, nos termos referidos, ao fabricante, salvo se o defeito não for de considerar como tal na relação do fabricante com o seu comprador. O § 474 é correspondentemente aplicável aos casos referidos na primeira frase deste número. 3. Os n.os 1 e 2 são correspondentemente aplicáveis às pretensões do fornecedor e dos restantes compradores na cadeia de fornecimento contra os respectivos vendedores e o fabricante, se os devedores forem empresários. 4. Uma convenção pela qual se afaste o disposto nos n.os 1 a 3 ou no § 203 em prejuízo do credor do direito de regresso é ineficaz se não for atribuída a este uma compensação de igual valor.” A norma relativa à prescrição é o § 203 (“suspensão da prescrição de direitos de regresso do empresário e em caso de defeitos de uma obra vendida”), segundo o qual: “1. A prescrição das pretensões do empresário contra o seu fornecedor ou fabricante, fundadas no defeito de uma coisa nova vendida a um consumidor, não se verifica antes de decorridos dois meses a contar do momento em que o empresário satisfez as pretensões do consumidor ou cinco anos a contar do momento em que o fornecedor entregou a coisa ao empresário. Esta disposição é aplicável às pretensões do fornecedor contra o seu vendedor e dos restantes compradores na cadeia de fornecimento contra os seus respectivos vendedores. 2. A prescrição de pretensões fundadas num defeito de uma obra comprada não se verifica antes de decorridos cinco anos a contar do seu acabamento.” Propunha-se ainda a reformulação do § 378 do Código Comercial alemão, por forma a salvaguardar o direito de regresso: “Se o comprador tiver alienado ou consumido ou alterado pela sua utilização normal a mercadoria antes da descoberta do defeito ou de este se tornar reconhecível, mantém os seus direitos resultantes do defeito.” Com excepção da citada 2.ª frase do n.° 2 do § 476), este projecto (disponível na internet em www.bmj.bund) foi aprovado como proposta de lei pelo governo federal em Maio de 2001.
Na Áustria, o anteprojecto de alteração do Código Civil (disponível em www.bmj.gv.at/gesetzes/download/gewaehrleistung.pdf) para transposição da directiva teve como base o já citado estudo de R. WELSER/B. JUD, “Zur Reform...”. E o direito de regresso previsto no projecto § 933b também se aplica apenas aos casos de exercício da garantia pelo comprador consumidor. É a seguinte a redacção deste § 933b (“direito especial de regresso”): “1. Se um profissional tiver efectuado uma prestação a um consumidor em cumprimento da garantia, pode exigir a garantia ao seu causante [“Vormann”] mesmo depois de decorrido o prazo do § 933. A disposição antecedente é aplicável a alienantes anteriores na relação com os seus causantes [“Vormänner”], quando tenham eles mesmos efectuado uma prestação aos seus adquirentes em consequência dos direitos resultantes da garantia para o último comprador. O direito é limitado ao montante dos gastos próprios. 2. As pretensões previstas no n.° 1 devem ser exigidas judicialmente no prazo de três meses a contar do cumprimento da garantia. A responsabilidade do obrigado ao regresso prescreve, em qualquer caso, no prazo de cinco anos a partir da realização da sua prestação. Este prazo suspende-se durante o decurso da lide.”
Para propostas doutrinais de transposição da directiva relativamente ao direito
de regresso, v.: N. REICH, cit., p. 2403, M. SCHMIDT-KESSEL, “Der Rückgriff...”, cit., pp. 673 4, B. JUD, cit., p. 668, Á. CARRASCO PERERA et alii, “Transposición...”, cit., pp. 139 e ss. (propondo, em alternativa, a alteração do Código Civil espanhol e da Ley general para la defensa de consumidores y usuarios, ou apenas desta última),W. ERNST/B. GSELL, ZIP, 2000, p. 1462.

(123) O que leva a doutrina a propor a sua inclusão no regime geral da compra e venda — F. SCHURR, “Die neue Richtlinie...”, cit., p. 228.

(124) Diversamente do que acontece com os Códigos Civis alemão e italiano, em consequência da transposição de directivas comunitárias. No primeiro caso, a “Lei sobre contratos à distância e outras questões do direito dos consumidores bem como de adaptação de outros preceitos ao Euro”, de 27 de Junho de 2000, que, nomeadamente, transpôs para a ordem jurídica alemã as directivas sobre à protecção dos consumidores nos contratos à distância e sobre acções inibitórias para protecção dos interesses dos consumidores (Directivas n.os 97/7/CE e 98/27/CE, in JOCE, respectivamente L 144, de 4 de Junho de 1997, p. 19, e L 166 de 11 de Junho de 1998, p. 51), incluiu no Código Civil alemão definições de consumidor e de profissional (novos §§13 e 14) e normas gerais sobre os direitos de revogação da declaração de vontade e de devolução de bens em “contratos de consumo” (§§ 361a e 361b). No Codice Civile, a transposição da Directiva 93/13/CEE, sobre cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JOCE L 095 de 21 de Abril de 1993, p. 29), levou à introdução, no título II do livro IV, de um novo capo XIV bis, intitulado “Dei contratti del consumatore” (sobre o respectivo âmbito, v. A. BARENGHI, in Codice Civile, a cura di P.Perlingieri, cit., p. 4.ª ed., Milano, 2001, anot. 3 ao artigo 1469.°-bis). E recorde-se que também já o Código Civil holandês conhecia o conceito de compra de consumo (“consumentenkoop”), no artigo 18.° do seu livro 7.

(125) A doutrina alemã defendeu, num primeiro momento, a transposição da directiva por uma alteração do regime geral da garantia de vícios da coisa na compra e venda, apenas formulando preceitos específicos para o consumidor quando tal se revelasse necessário e aproveitando, no mais, para realizar a reforma do direito das obrigações que vem sendo projectada (v. o Abschlussbericht der Kommission zur Überarbeitung des Schuldrechts, Köln, 1992) desde os anos 80 — v., por ex., N. REICH, cit., p. 2403, P. SCHLECHTRIEM, “Die Anpassung...”, cit., p. 360, P. GASS, cit., pp. 136 e ss.. A controvérsia sobre tal “grande solução”, instalou-se entretanto na doutrina. V., por exemplo, Barbara DAUNER-LIEB, “Die geplante Schuldrechtsmodernisierung — Durchbruch oder Schnellschuss?”, JZ, 2001, n.° 1, pp. 8-18, e a proposta de “solução pequena” (revisão apenas da garantia dos vícios da coisa vendida) de W. ERNST/B. GSELL, op. cit.. Sobre a “declaração conjunta” de oposição à reforma, a réplica dos defensores (entre os quais Claus-WILHELM CANARIS — v. “Zur Reform des Rechts der Leistungstörungen”, pp. 499 e ss. do n.° 10 de 2001 de JZ, dedicado à reforma do direito das obrigações), e outros documentos, podem colher-se elementos na internet (por ex., em www.lrz-muenchen.de/~Lorenz/schumod/index.htm).

(126) O objectivo do presente estudo não é formular uma proposta legislativa. Deixemos, porém, registado um exemplo de articulado (a inserir em diploma específico dos consumidores, e onde não incluímos disposições processuais) que estaria de acordo com as conclusões referidas:

“Artigo A
(Direito de regresso)


1. O profissional contra quem o consumidor tenha exercido um dos direitos previstos no artigo X [artigo que prevê os direitos resultantes da garantia legal, e que é, hoje, o artigo 12.°, n.° 1, da LDC], bem como a pessoa contra quem se exerceu o direito de regresso, gozam de direito de regresso contra o seu vendedor, por todos os prejuízos causados pelo exercício daqueles direitos.
2. O demandado pode afastar o direito de regresso provando que não existia falta de conformidade quando entregou a coisa e, caso seja posterior a tal momento, que não foi causada por si.
3. O artigo Y [que estabelece a presunção de anterioridade do defeito à entrega, se se manifestar no prazo de seis meses] é aplicável ao exercício do direito de regresso pelo vendedor final de uma coisa nova, contando se o respectivo prazo a partir da entrega ao consumidor.

Artigo B
(Prazo)


1. O prazo para o exercício do direito de regresso não se completa antes de decorridos dois meses sobre a denúncia do defeito pelo consumidor ou cinco anos sobre a entrega da coisa pela parte a ele obrigada.
2. O prazo suspende-se durante o decurso de operações de reparação da coisa e durante o processo em que o vendedor final seja parte.”



Sumário:

I.—O problema. II.—A resposta no direito português vigente e na Directiva 1999/44/CE, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas: a) O direito português vigente; b) O artigo 4.º da directiva; c) Problemas de interpretação do artigo 4.º. III.—Regime do direito de regresso: a) Sujeitos; b) A questão da responsabilidade directa do produtor; c) Pressupostos; d) Objecto; e) “Acções e condições de exercício”: aa) Prazos; bb) Ónus do vendedor de examinar a coisa e denunciar os defeitos; cc) Ónus da prova da ante-rioridade da falta de conformidade; dd) Questões processuais. f) Limites à disponibilidade. IV.—Conclusões.


I—O problema

É sabido que nas actuais condições de produção e comercialização, com uma muito acentuada divisão de funções económicas e com a especialização de cada interveniente, a esmagadora maioria dos bens—sobretudo dos destinados ao consumo final (1), mas também muitos bens de produção—é adquirida no termo de uma “cadeia” de distribuição ou comercialização, a que correspondem contratos sucessivos, isto é, uma sequência ou “cadeia” contratual. O comerciante que, por exemplo, vende um automóvel ou um electrodoméstico a um consumidor adquire-o ao importador, ao revendedor ou directamente ao fabricante (aos quais pode estar ligado por um contrato de distribuição comercial ou não). E o profissional que revende um móvel ou um computador, ou o que o fabricou ou montou, também adquirem a coisa ou os materiais ou componentes ao respectivo fabricante, importador ou revendedor.
Segundo o nosso direito, porém, caso o bem vendido não esteja em conformidade com o contrato celebrado com o comprador, e mesmo que a causa da falta de conformidade seja imputável a um elemento anterior da “cadeia contratual”, em princípio apenas o vendedor final – isto é, a contraparte no contrato de compra e venda celebrado com a pessoa que por último adquire o bem (o adquirente final) – responde perante o comprador por tal falta de conformidade com o contrato, devendo indemnizá-lo e satisfazer os seus direitos à reparação ou substituição da coisa, à anulação (ou resolução) do contrato (com restituição do que houver recebido) ou à redução do preço.
Suscita-se, pois, a questão de saber quem deve, nestas hipóteses, suportar a final o fardo económico correspondente a tal “responsabilidade”—e, designadamente, a questão de saber se o vendedor final pode repercutir no seu vendedor, ou directamente na pessoa causadora do defeito, situados a montante na “cadeia contratual”, os custos respectivos.
Trata-se, aliás, de um problema que não se suscita apenas na comercialização de bens destinados a utilizações não profissionais, mas de um problema geral, resultante da disparidade entre, por um lado, a operação económica de distribuição de bens—planeada e executada sistematicamente ao longo de um encadeamento de contratos (2), e consumada apenas com a última venda—, e, por outro lado, o respectivo regime jurídico, que é fixado atendendo a cada operação isoladamente.
Assim, devido ao lapso de tempo que intercede entre a aquisição do vendedor final e a alienação ao consumidor, ou a invocação de defeitos da coisa por este, o prazo para o vendedor final reagir contra o seu fornecedor — cujo dies a quo é a entrega a este vendedor final — pode já se ter esgotado (ou estar próximo de se esgotar). Pode, aliás, aceitar-se que no risco inerente à actividade económica do vendedor final se compreende ainda, em parte, a possibilidade de vir a ter que arcar com os custos referidos, designadamente, se tal se ficou a dever também a um comportamento seu (é o caso, por exemplo se o vendedor final comerciante não examinou devidamente as coisas adquiridas ou não denunciou os defeitos ao vendedor no prazo previsto).
Para além destas hipóteses, o problema é, todavia, sensível quando existem diferenças entre o regime jurídico a que estão submetidas as alienações anteriores na “cadeia contratual” e o último contrato.
Tais diferenças podem resultar, designadamente, da sujeição da última aquisição a um regime especial para a relação entre o profissional (vendedor) e o consumidor (comprador), especialmente protector deste último. Pode, pois, dizer-se que o problema de que tratamos resulta do reverso dos regimes de protecção do consumidor perante profissionais, pondo em evidência as dificuldades que, para estes — os quais, nos casos dos vendedores finais, poderão ser comerciantes em nome individual ou, em qualquer caso, pequenos ou médios empresários —, resultam de não poderem invocar a montante da “cadeia contratual” o regime a que estão sujeitos perante os seus adquirentes.
Sempre que o regime de responsabilidade (lato sensu) do vendedor final por defeitos da coisa, perante o seu adquirente/consumidor, é mais estrito do que o aplicável à pessoa a quem o vendedor final adquiriu, pode acontecer que este não consiga repercutir a sua responsabilidade, e esta acabe por ser suportada por alguém a quem o defeito não é imputável.
Assim, se for aplicável a Lei de Defesa do Consumidor, o consumidor beneficia, designadamente (3), de um prazo de garantia de bom estado e bom funcionamento dos bens móveis não consumíveis não inferior a um ano, a contar da recepção da coisa, enquanto o vendedor final apenas pode reagir perante o seu vendedor no prazo previsto no Código Civil (seis meses — artigo 916.°, n.° 2) ou na lei comercial (oito dias, nos termos do artigo 471.° do Código Comercial) — para mais, contado logo a partir da entrega ao vendedor final (4). E são também diferentes as posições do consumidor e do vendedor final, enquanto compradores, quanto ao ónus da prova da anterioridade do defeito à entrega — segundo a (imperativa) “garantia de bom funcionamento”, o consumidor apenas terá que provar ao seu “fornecedor” os defeitos que apareçam no prazo de um ano a contar da entrega, presu-mindo-se a sua existência no momento da conclusão do contrato (5), enquanto o regime geral exige ao comprador/vendedor final a prova da anterioridade ou contemporaneidade do defeito à conclusão do seu contrato. Acresce que, nos termos do artigo 12.°, n.° 1, da LDC, o consumidor pode exigir ao vendedor final, independentemente de culpa deste, a reparação ou a substituição da coisa, enquanto o artigo 914.° do Código Civil permite que os correspondentes direitos do vendedor final, e ainda o direito de indemnização (6), sejam afastados pela prova da inexistência de culpa pelo seu vendedor. Os direitos do comprador consumidor estão, aliás, enunciados no artigo 12.°, n.° 1, da LDC em aparente alternatividade, com escolha pelo consumidor, não se subordinando a substituição à sua necessidade, enquanto, segundo o Código Civil, o vendedor final não pode exigir a substituição da coisa se esta não for necessária (em comparação com a reparação) (7).
É certo que muitas vezes existirá, entre o vendedor final e o seu fornecedor, não apenas um contrato de compra e venda, mas um contrato duradouro, que será frequentemente um contrato de distribuição comercial — designadamente, um contrato de concessão (8) —, enquadrando as relações entre o vendedor final e o seu fornecedor, e podendo regular, designadamente, a responsabilidade do fornecedor e os direitos do vendedor final em caso de invocação de defeitos da coisa pelo comprador.
Todavia, acontecerá também frequentemente que, em tal contrato — ou mesmo simplesmente no contrato de compra e venda — entre o vendedor final e o seu fornecedor, os direitos do primeiro sejam limitados ou, mesmo, excluídos, não o tendo sido (por razões comerciais, por exemplo) pelo vendedor final na relação com o consumidor, e, porventura, nem sequer o podendo ser, por a lei o proibir. Recorde-se que, nos termos do artigo 16.°, n.° 1, da LDC, é nula qualquer convenção, mesmo que objecto de negociação individual, pela qual se excluam ou restrinjam os direitos reconhecidos por tal diploma ao consumidor — designadamente, os direitos referidos nos artigos 4.°, n.os 1 e 2 e 12.°, n.° 1, resultantes da garantia “legal”. Diversamente, o regime da venda de coisas defeituosas previsto no Código Civil é, pelo menos em parte, supletivo (9).
A exclusão ou limitação convencional dos direitos do vendedor final será, aliás, hoje em dia, normalmente efectuada em “cláusulas contratuais gerais” (ou simplesmente não objecto de negociação individual) (10). Ora, como se sabe, o regime das cláusulas proibidas, constante do Decreto-Lei n.° 446/85, de 25 de Outubro, difere consoante estejam em causa relações entre empresários (singulares ou colectivos, ou os que exerçam profissões liberais, ou entre uns e outros), quando intervenham apenas nessa qualidade e no âmbito da sua actividade específica, e relações com “consumidores finais” (cfr. os artigos 18.° e 19.°, por um lado, e 21.° e 22.°, por outro, do citado diploma) (11). Assim, se são absolutamente proibidas, nos termos do artigo 18.°, alíneas c), d) e f) do Decreto Lei n.° 446/85, de 25 de Outubro, cláusulas que excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade perante o vendedor final por cumprimento defeituoso, ou por actos de representantes ou auxiliares do seu vendedor, em caso de dolo ou de culpa grave (ou que excluam a excepção de não cumprimento do contrato ou a resolução por incumprimento), já o mesmo não se poderá dizer para outras cláusulas limitativas ou de exclusão dos direitos do vendedor final empresário (salvo se a sua proibição resultar da cláusula geral da boa fé nos termos dos artigos 15.° e 16.° do citado diploma). Cláusulas, essas, que este não pode, porém, utilizar nas relações com “consumidores finais”. É o caso, designadamente, das “cláusulas contratuais gerais” absolutamente proibidas referidas nas alíneas a) a d) do artigo 21.° do Decreto-Lei citado (que limitam ou alteram obrigações assumidas na contratação, que conferem a quem as predisponha a faculdade exclusiva de verificar e estabelecer a qualidade das coisas ou serviços fornecidos, que permitem a não correspondência entre as prestações a efectuar e as indicações, especificações ou amostras feitas ou exibidas na contratação, ou que excluem os deveres que recaem sobre o predisponente, em resultado de vícios da prestação, ou estabelecem, nesse âmbito, reparações ou indemnizações pecuniárias predeterminadas), e, ainda, “consoante o quadro negocial padronizado” entre vendedor e consumidor final, das cláusulas que “afastem, injustificadamente, as regras relativas ao cumprimento defeituoso ou aos prazos para o exercício de direitos emergentes dos vícios da prestação” (artigo 22.°, n.° 1, alínea g) do citado diploma) (12).
Em todas estas hipóteses — e noutras semelhantes, aliás, nem sempre resultantes do regime específico de protecção dos “consumidores finais”, mas, antes, de diferenças entre o regime comercial e civil, ou do regime de certos contratos típicos (13) — assume relevo o problema de saber se é o vendedor final que deve arcar com o prejuízo resultante da invocação, perante ele, de defeitos imputáveis a um elemento situado a montante na “cadeia contratual”. Ou se, diversamente, a sua situação “entre a espada e a parede” (ou de “pardal entre falcões” (14)), resultante das aludidas diferenças de regime jurídico, deve ser compensada através do reconhecimento ao vendedor final de um “direito de regresso” (15) pelos prejuízos sofridos.


II—A resposta no direito português vigente e na Directiva 1999/44/CE, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas

a) O direito português vigente


Pode dizer-se que o direito português vigente — aliás, como a grande maioria das ordens jurídicas europeias (16) — não prevê, actualmente, qualquer figura dirigida especificamente à tutela da posição do vendedor final em face do problema suscitado. Nem no Código Civil (17) nem na Lei de Defesa dos Consumidores (18) se consagra, na verdade, qualquer direito de regresso do vendedor final.
Na falta de estipulação adrede, o vendedor que tenha substituído ou reparado a coisa que padece de um defeito imputável ao fabricante ou a um anterior elemento da “cadeia contratual” apenas poderá dirigir-se contra o seu vendedor (única pessoa com quem tem uma relação contratual) e invocar os seus direitos como comprador. Tal reparação nos termos de cada contrato pode, porém, estar excluída, como vimos, não só pelo decurso do tempo (sem que o vendedor final o pudesse ter impedido), como por cláusulas contratuais, ou pela ausência de culpa de um dos vendedores. E daqui resultará a imposição ao vendedor final — ou ao elemento da “cadeia contratual” que não consiga exercitar tal “regresso”—do prejuízo por defeitos imputáveis a outra pessoa.
Este resultado também não parece poder ser evitado através de outras formas, em que se poderia pensar, de responsabilizar o produtor, os vendedores anteriores ou qualquer intermediário perante o vendedor final — como é o caso da responsabilidade extracontratual e dos institutos do enriquecimento sem causa e da gestão de negócios (ou do recurso a um hipotético regime geral dos contratos de gestão de interesses alheios) (19).
Pode, pois, dizer-se que o problema do direito de regresso do vendedor final de bens de consumo não encontra resposta satisfatória de iure condito no nosso direito. Reconhecendo que nem sempre é fácil determinar qualquer deve ser a sua solução, cremos, porém, tratar-se de um problema relevante — pelo menos, na medida em que se considere injusta, por se situar fora do âmbito dos riscos próprios da actividade empresarial do vendedor final (ou por contrária a um princípio geral segundo o qual não deve ser imposta a ninguém a responsabilidade por danos causados por outrem), a imposição, a este vendedor final, por especificidades da protecção legal do último adquirente, dos prejuízos resultantes de defeitos causados por outra pessoa (constituindo tal resultado como que um “reverso” indesejado das normas de protecção do consumidor, que podem sobrecarregar pequenas e médias empresas e comerciantes em nome individual)(20).


b) O artigo 4.° da directiva

Foi justamente para atacar este problema (21) que a Directiva 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas (22), previu no seu artigo 4.° a existência de um direito de regresso por parte do vendedor final. Isto, aliás, em consonância com as alterações que a directiva — cujo significado para o direito dos contratos dos Estados-membros não é demais sublinhar (23) — impõe no regime da “garantia legal” (24) na venda (25) de bens de consumo, no sentido de consagrar um “elevado nível de protecção” do comprador/consumidor (cf. os considerandos 1 e 23 da directiva).
Recorde-se, na verdade, que a directiva impõe várias soluções que, beneficiando o comprador/consumidor, poderiam reverter em prejuízo do vendedor final: a introdução de um dever de entrega de bens em conformidade com o contrato, correspondendo lhe uma concepção unitária de não cumprimento (artigo 2.°, n.° 1 da directiva) e uma avaliação da conformidade no momento da entrega (artigo 3.°, n.° 1 (26)); a formulação de um conceito amplo de conformidade, segundo determinados índices (artigo 2.°, n.° 2, do mesmo diploma); a consagração dos direitos à reparação, à substituição, à “rescisão” do contrato ou à redução do preço, independentemente de culpa (artigo 3.°, n.os 2 e segs.); o alargamento dos prazos de garantia para dois anos a contar da entrega do bem (artigo 5.°, n.° 1); uma presunção de que os defeitos que se manifestem no prazo de seis meses a contar da entrega são anteriores a esta (salvo quando a natureza do bem ou do defeito a isso se opuserem — artigo 5.°, n.° 3); e a imperatividade das regras da directiva (artigo 7.°, n.° 1).
Como se lê na fundamentação da proposta de directiva, tal regime “pode fazer impender injustamente sobre os vendedores finais qualquer responsabilidade pelos defeitos dos bens que resulte finalmente de um acto ou omissão de outra pessoa”, sendo “nomeadamente este o caso dos defeitos de fabrico, dos defeitos causados por uma má manipulação por parte de um intermediário anterior ou ainda dos defeitos de conformidade que resultem das declarações” previstas na directiva no artigo 2.°, n.° 2, alínea d) (27). Por isso, apesar de a directiva apenas “visar a venda final dos bens de consumo, afigurou-se também necessário ao legislador comunitário prever no seu texto, em benefício do vendedor final, um direito de regresso claramente estabelecido contra as pessoas responsáveis sobre as quais ele deve poder repercutir as despesas provocadas pelos defeitos que lhes são imputáveis” (28).
Dispõe o artigo 4.° da directiva: “Quando o vendedor final for responsável perante o consumidor pela falta de conformidade resultante de um acto ou omissão do produtor, de um vendedor anterior da mesma cadeia contratual, ou de qualquer outro intermediário, o vendedor final tem direito de regresso contra a pessoa ou pessoas responsáveis da cadeia contratual. O responsável ou os responsáveis contra quem o vendedor final tem direito de regresso, bem como as correspondentes acções e condições de exercício, são determinados pela legislação nacional.”
Trata-se da única norma da directiva que não regula directamente relações entre consumidores e profissionais, mas antes relações entre elementos da “cadeia contratual” que culminou numa venda ao consumidor — isto é, normalmente, relações entre profissionais (e normalmente mesmo relações comerciais) –, sendo o seu objectivo a protecção do vendedor final (29). E, a seu favor, depõe justamente um princípio de responsabilidade: em princípio, as desvantagens resultantes de um defeito da coisa devem ser suportadas pela pessoa que é responsável por ele (isto é, que o causou) (30).


c) Problemas de interpretação do artigo 4.°

O citado artigo 4.° da directiva suscita, aliás, uma série de problemas, tendo atraído a atenção da doutrina, quer pelo seu significado teórico e prático, quer pelas divergências sobre o alcance do “direito de regresso” e a discricionariedade deixada aos Estados-membros (31).
Esse artigo, já qualificado como “inofensivo” por quem interveio na redacção da directiva (32) conteria, segundo outros, a verdadeira “força explosiva” desta, simultaneamente ameaçando “dinamitar” (ou, pelo menos, reordenar) o regime geral (e mesmo o regime comercial) aplicável à compra e venda em toda a “cadeia contratual”, e obrigando, segundo alguns, a uma transposição para além da exigida pelo direito comunitário (33). Salienta-se, assim, que “dificilmente outra disposição atrairá tanta atenção no processo de harmonização jurídica que se vai seguir como a do direito de regresso do vendedor final” (34).
É logo a respeito da questão central da vinculação resultante da directiva que as opiniões se dividem. Há quem entenda que a directiva, na sua letra, apenas prevê a existência de um qualquer direito de regresso, “concebido da forma que se quiser”, com grande discricionariedade (35). Segundo outra opinião, o artigo 4.° conteria directamente uma imposição jurídica de um direito de regresso com efectividade (36), o que, para evitar que o vendedor final caísse numa “armadilha do regresso” (“Regressfalle”), imporia a harmonização de pontos de regime como os prazos para o seu exercício (37), ou, mesmo, uma conformação do direito de regresso para que este fosse sempre possível, com o âmbito correspondente àquilo que pode ser exigido pelo consumidor (38).
A letra do artigo 4.° (apesar da difícil relação entre a primeira parte e o espaço de discricionariedade expressamente reconhecido pela segunda parte (39)) aponta, a nosso ver, para a vinculação dos Estados-membros ao resultado consistente na criação de um direito de regresso sempre que a falta de conformidade resulte de um acto ou omissão de um elemento anterior da “cadeia contratual” (40). O que significa que a determinação dos responsáveis contra quem o vendedor final tem direito de regresso e das acções e condições de exercício não poderá limitar a efectividade do direito de regresso, excluindo-o por razões de regime jurídico sem que o vendedor final possa fazer algo para o evitar.
O amplo espaço de discricionariedade existente prima facie é, pois, menor do que se poderia pensar (41), considerando, não só os elementos histórico e sistemático de interpretação (42), como, sobretudo, que a norma da directiva tem que ter um efeito útil (43), para além da imposição da consagração de qualquer forma, em qualquer prazo e com quaisquer obrigações, de o vendedor final reagir a montante da “cadeia contratual” (imposição que, no limite, apenas atingiria países que não aceitassem qualquer responsabilidade contratual perante o vendedor final). Tal efeito útil, à luz da finalidade de protecção do vendedor final, só existe se do artigo 4.° resultar a necessidade de previsão de um direito de regresso, e com objecto idêntico ao prejuízo resultante, para aquele vendedor final, do exercício pelo consumidor dos direitos previstos na directiva para a falta de conformidade causada por um terceiro a montante da “cadeia contratual”.
O responsável ou os responsáveis contra quem o vendedor final tem direito de regresso são determinados pela legislação nacional, mas tem que se prever a responsabilidade, pelo menos, de um dos elementos anteriores da “cadeia contratual”, em via de regresso, perante o vendedor final (44). E, da mesma forma, quando deva existir direito de regresso, não podem ser exigidos pressupostos (a falta de conformidade apreciada mais estritamente, ou a culpa do responsável, por exemplo) que excluam de plano a possibilidade de exercer tal direito, sem que o vendedor final possa fazer algo para o impedir.
Que, para assegurar a sua efectividade, os pressupostos do direito de regresso devam ser configurados em termos tão estritos como os que valem na relação do vendedor final perante o consumidor não significa, porém, que a possibilidade de repercutir a “responsabilidade” do vendedor final tenha que estar assegurada em todo e qualquer caso, ou que tenha de existir verdadeira identidade de regime, a moldar a partir do da responsabilidade perante o consumidor, ao longo da “cadeia contratual” (a qual, normalmente, aliás, será constituída por comerciantes, sendo aplicável o regime comercial, ou, para as vendas internacionais, o resultante das respectivas convenções internacionais (45)). Assim, para o exercício do direito de regresso — direito subjectivo previsto pela directiva no citado artigo 4.° (46) em termos não imperativos para as partes —, o vendedor final poderá, a nosso ver, estar sujeito a deveres de exame da coisa e de denúncia do defeito, e a prazos mais curtos.
Outra questão é, porém, a de saber se a diferença de regime, ainda que admissível segundo o artigo 4.°, é conveniente, ou se existe uma exigência lógica de harmonizar tanto quanto possível as condições de exercício dos direitos resultantes da falta
de conformidade, alargando a protecção do vendedor final. A incerteza e dificuldades quanto à resposta a esta questão (47) resultam, designadamente, de nela se reflectir um conflito entre, por um lado, o interesse na protecção do consumidor/comprador e do vendedor final, perante defeitos não causados por si, e, por outro lado, o interesse na celeridade e segurança do comércio, que ditou o regime aplicável a montante da “cadeia contratual” (48).
Trata-se, porém, de pontos que se prendem já com o regime do direito de regresso, que importa analisar de seguida.


III—Regime do direito de regresso

a) Sujeitos


Titular do direito de regresso é o vendedor final de bens de consumo, embora o consumidor/comprador possa também beneficiar mediatamente desse direito.
Como possíveis sujeitos passivos, o artigo 4.° refere o produtor — definido no artigo 1.°, n.° 1, alínea d) como o “fabricante de um bem de consumo, o importador do bem de consumo no território da Comunidade ou qualquer outra pessoa que se apresente como produtor através da indicação do seu nome, marca ou outro sinal identificador no produto” (49) — o “vendedor anterior da mesma cadeia contratual”, ou “qualquer outro intermediário”. Este último pode ser um transportador, um depositário, um agente ou um mediador que tome contacto com o bem ou com materiais que o integram, podendo assim originar a falta de conformidade. Estão, porém, excluídas as pessoas que apenas acidentalmente, ou de forma delituosa, tomem contacto com a coisa (salvo se o seu comportamento puder ser imputado a um sujeito passivo do direito de regresso).
A noção de “vendedor anterior da mesma cadeia contratual” também não apresenta dificuldades de maior. Isto, sendo certo, porém, que a “cadeia contratual” poderá não se desenvolver linearmente (50). Pode, até, acontecer que nas vendas sucessivas se tenha interposto um consumidor, que, por exemplo vendeu o bem — ou, por exemplo, entregou um automóvel em troca de outro — ao profissional, não garantindo em tal hipótese o artigo 4.° a existência de direito de regresso (nos termos do artigo 1.°, n.° 2, alínea c) da directiva, para efeitos desta o vendedor é quem actua no exercício da sua actividade profissional) (51).
À legislação nacional compete determinar qual o responsável ou os responsáveis contra quem o vendedor final tem direito de regresso, mas este(s) responsável(is) deve(m) integrar a “cadeia contratual” — possivelmente incluindo o produtor ou também o autor de declarações públicas relevantes no termos do artigo 2.°, n.° 2, alínea d) (que são apenas as efectuadas pelo produtor ou seu “representante”) (52).
Quanto à exacta configuração do direito de regresso, são possíveis várias soluções. Pode, em correspondência com o princípio da relatividade dos contratos, existir apenas um direito de regresso ao longo da “cadeia contratual”, isto é, nos termos de cada contrato: cada adquirente apenas pode demandar a pessoa com quem tem uma relação contratual. Mas pode igualmente prever-se uma acção directa, seja contra um sujeito para o qual o legislador “canalizaria” a responsabilidade em via de regresso (nomeadamente o produtor ou o importador), seja contra o verdadeiro causador da falta de conformidade.
Com a referência aos diversos responsáveis, a directiva não impõe qualquer das soluções, uma vez que remete a sua determinação para o direito nacional (53), embora elas pressuponham o reconhecimento de uma diferente função à norma do artigo 4.° (54).
A consagrar-se uma acção directa do vendedor final — o que, até por um argumento de maioria de razão, imporia que se estendesse também logo ao comprador/consumidor —, a sua “canalização” para uma só pessoa daria àquele, sem dúvida, maior clareza, permitindo-lhe saber a quem se deve dirigir. É claro, porém, que muitas vezes tal regime — que chegou a estar previsto, para alguns prejuízos, no projecto de transposição alemão (55) — se limitaria a, num primeiro momento, substituir o vendedor final por outro lesado por defeitos causados por outrem (pense-se na hipótese de o defeito resultar de mau armazenamento ou manuseamento posterior por um intermediário), carecendo, pois, da previsão suplementar de outro direito de regresso, contra o verdadeiro responsável, situado, não já a montante, mas a jusante da “cadeia” contratual (56).
Em contrapartida, a previsão de uma acção directa contra o verdadeiro causador da falta de conformidade, eventualmente mais complexa para o vendedor final na determinação do responsável, permitiria logo alcançar um resultado mais justo, parecendo, pois, preferível (57). Tal acção directa imporia, porém, em qualquer caso, uma ruptura com o princípio da relatividade dos contratos, suscitando a questão de saber como enquadrar e regular tal responsabilidade (uma qualificação contratual pareceria excluída (58)), podendo duvidar-se que a protecção do vendedor final imponha essa solução. Na verdade, a vantagem de maior clareza é igualmente conseguida através de um direito de regresso de cada elemento da “cadeia contratual” contra a respectiva contraparte, o qual, permitindo às partes regular, em certos termos, eventuais responsabilidade futuras (prevendo compensações adequadas), também não prejudica o comprador/consumidor, pois os seus direitos são logo satisfeitos pelo vendedor final.
Assim, apesar de poder importar uma maior lentidão e risco (59) na imputação, através do exercício dos diversos direitos de regresso, do prejuízo ao causador do defeito, julgamos que esta última solução — correspondente também ao regime que acabou por ser adoptado nos projectos de transposição alemão e austríaco (60) — é ainda preferível (pelo menos, se não existir logo prova clara de quem causou a falta de conformidade).
O direito de regresso será, pois, reconhecido, não apenas ao vendedor final, mas a cada vendedor da “cadeia contratual”, perante a sua contraparte, até se chegar ao causador da falta de conformidade.
Isto, porém, apenas para o direito de regresso do vendedor final, e já não para o exercício dos direitos do consumidor/comprador directamente contra o produtor.


b) A questão da responsabilidade directa do produtor

A eventual responsabilidade directa do produtor perante o consumidor pelos defeitos de qualidade — proposta já no Livro verde sobre as garantias dos bens de consumo e os serviços pós venda (61), para o caso de a acção contra o vendedor ser impossível ou de constituir um fardo excessivo — não ficou prevista na directiva.
Todavia, tal solução, correspondente a uma evolução já registada nalguns Estados-membros e consagrada no direito comunitário para protecção da segurança das pessoas e dos bens de consumo (62), justificava-se, uma vez que a concepção tradicional, segundo a qual só o vendedor é responsável perante o consumidor, deixou de corresponder às actuais condições de produção e de comercialização dos bens. Nestas, o fabricante é, indubitavelmente, quem pode exercer um melhor (ou o único) controlo sobre a qualidade (podendo segurar-se contra os correspondentes riscos e sendo, assim, também o “cheapest cost avoider”), e, ainda quem melhor posicionado está para trabalhos de reparação ou para fornecer peças sobressalentes. A maioria dos defeitos de qualidade, sobretudo nos produtos pré-embalados não deterioráveis (que muitas vezes o comerciante nem sequer está autorizado a abrir), tem a sua origem logo no momento da fabricação, pelo que a responsabilidade directa do produtor perante o consumidor, a quem esses bens se destinam (e perante os quais muitas vezes o produtor faz publicidade exaltando justamente a qualidade do bem) teria também, provavelmente, efeitos positivos na qualidade dos bens. E tornaria mais fácil ao consumidor a obtenção da reparação dos defeitos atribuídos ao produtor, sobretudo no âmbito das compras transfronteiriças, ou quando o vendedor já não está disponível, por exemplo por ter falido ou por ter cessado a sua actividade (63).
A nosso ver, não poderia sequer dizer-se que a responsabilidade directa do produtor levantaria insuperáveis dificuldades técnicas (64), ou que teria como efeito perverter o sistema em vigor. Contribuiria, pelo contrário, para o tornar mais coerente e para facilitar a tarefa dos consumidores, permitindo-lhes dirigir-se directamente ao produtor (65).
A previsão da responsabilidade directa do produtor em face do comprador não logrou, porém, aceitação nas decisivas instâncias comunitárias (66), tendo sido eliminada. Manteve-se o respeito pela “vertical privity” do contrato de compra e
venda (67).
E também o direito português não consagra ainda uma responsabilidade directa do produtor perante o consumidor/comprador, que apenas existe, como no direito comunitário, quando o produto “não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar” (e abrangendo tão só “os danos resultantes de morte ou lesão pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino”)—v. os artigos 4.°, n.° 1, e 8.°, n.° 1, do citado Decreto-Lei n.° 383/89 (68).
Pelas razões expostas, julgamos que se deve aproveitar a necessária transposição da directiva para alargar esta responsabilidade perante o consumidor (69), considerando também o produtor responsável pelos vícios ou falta de qualidade da coisa (70). Ainda assim, porém, o problema do direito de regresso — ao longo dos diversos contratos ou através de uma acção directa — não seria eliminado, já que a responsabilidade do produtor não afastaria a do vendedor final perante o consumidor. Este poderia, pois, sempre continuar a accionar o vendedor final por defeitos imputáveis a terceiros. E nem sequer nos parece que se imponha um argumento de maioria, ou, sequer, de igualdade de razão, que obrigue estender a acção directa contra o produtor (ditada sobretudo por razões de protecção do comprador/consumidor) ao direito de regresso do vendedor final.


c) Pressupostos

Prevendo-se um direito de regresso a ser exercido ao longo da “cadeia” contratual, para que este não seja excluído pelo regime jurídico da venda de coisas defeituosas, as posições do comprador/consumidor e do vendedor final devem ser harmonizadas também quanto à própria noção de falta de conformidade, que faz surgir os direitos do comprador. Tal harmonização (71) pode conseguir se, designadamente, pela alteração do regime da venda de coisas defeituosas previsto no Código Civil, considerando que grande parte das regras que, quanto à exigência de conformidade, a directiva contém são também adequadas a constar de um regime geral (72).
O direito de regresso previsto no artigo 4.° tem como pressuposto, não só que o vendedor final seja “responsável” perante o consumidor pela falta de conformidade (73), como que esta seja “resultante de um acto ou omissão do produtor, de um vendedor anterior da mesma cadeia contratual, ou de qualquer intermediário” (74). Basta-se, pois, na formulação do primeiro período do artigo 4.°, com uma imputação objectiva — a causalidade — da falta de conformidade por que o vendedor final respondeu, para que este possa agir contra o causador (recorde-se, aliás, que também os direitos atribuídos pela directiva ao comprador/consumidor perante o vendedor final não dependem de culpa deste).
A perplexidade que poderia resultar de a falta de conformidade ser avaliada pelo parâmetro que resulta do contrato celebrado entre vendedor final e consumidor, e que é, para os anteriores elementos da cadeia de distribuição, res inter alios, desfaz-se, assim, pela consideração da referida exigência de causalidade. Na verdade, se a falta de conformidade se dever apenas a particulares especificações (relativas, por exemplo, à utilização da coisa ou a suas qualidades) do contrato de compra e venda celebrado com o consumidor, relevantes nos termos das alíneas a) e b) do n.° 2 do artigo 2.° da directiva — isto é, se a falta de conformidade for exclusivamente imputável ao vendedor final, quer quanto ao parâmetro contratual, quer quanto às características do bem —, não existirá qualquer direito de regresso (75).
A falta de conformidade com o contrato pode resultar de (ser causada por) um acto ou omissão dos referidos elementos anteriores por diversas formas.
É evidente que não está em questão qualquer causalidade como conditio sine qua non da falta de conformidade — segundo a qual o vendedor sempre seria (pelo menos co-)causador da falta de conformidade, pois sem a venda final esta não existiria. Trata se, antes, de comportamentos adequados a provocar a falta de conformidade, seja pela criação da vinculação do vendedor (artigo 2.°, n.° 2, al. d)), seja pela diminuição das qualidades do bem (76). O produtor, ou outro elemento anterior ao vendedor final, podem, em primeiro lugar, ter causado a alteração do padrão contratualmente devido pelo vendedor — caso de causalidade da falta de conformidade pela criação da vinculação do vendedor (“verpflichtungsbezogene Verursachung”)—, designadamente através de declarações sobre o bem relevantes, nos termos da alínea d) do n.° 2 do artigo 2.°, ou pelo fornecimento de uma amostra ou modelo, para ser mostrado ao comprador, aos quais a coisa não corresponde. Mas pode também o comportamento em questão ter consistido na alteração (designadamente, deterioração) das características da coisa, tornando-a desconforme com o contrato celebrado entre vendedor e comprador final — causalidade da falta de conformidade pela perturbação da qualidade do bem (“eigenschaftsbezogene Verursachung”), possível, por exemplo, na hipótese prevista nas alíneas a) e c) do n.° 2 do artigo 2.° (falta de adequação à descrição ou às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo) (77).
Neste caso de alteração das características, a causalidade pode apurar-se comparando as características do bem em cada estádio da “cadeia contratual”, para averiguar quando se deu a alteração, importando uma falta de conformidade normalmente existente logo no momento do cumprimento do contrato pelo respectivo causador. Mas o mesmo não pode dizer-se em todos os casos de criação da vinculação do vendedor final.
É certo que, mesmo quando exista uma alteração da qualidade do bem imputável, por exemplo, ao produtor, a um transportador ou a um vendedor anterior, sempre será apenas depois de consumada a última alienação, no termo da cadeia de distribuição, que se poderá — e eventualmente também o vendedor final (78) — apurar se esta termina com uma venda a um consumidor (adquirente final com objectivos não profissionais, nos termos do artigo 1.°, n.° 2, alínea a)), à qual é aplicável o regime da directiva. E, conjugando esta circunstância com o facto de, como vimos, o problema do direito de regresso não resultar exclusivamente da protecção do consumidor na última aquisição — embora seja por esta significativamente agravado —, há quem defenda que o regime do direito de regresso a consagrar na transposição da directiva não deveria limitar-se aos vendedores finais a consumidores, mas constituir antes um regime geral (79).
Seja como for, não está excluído que a falta de conformidade resulte simplesmente do indevido direccionamento da coisa (por exemplo, um utensílio concebido para ser manejado por profissionais) para um comprador final que é um consumidor, e não um profissional (80).
Por outro lado, quer se aceite a acção directa de regresso do vendedor final, quer não, pode, também, questionar-se se o cumprimento de cada elemento perante a sua contraparte exclui o direito de regresso (81). Julgamos que a própria finalidade do direito de regresso requer que o cumprimento do contrato com a respectiva contraparte, só por si, não libere logo cada elemento de um eventual direito de regresso (mesmo que perante a contraparte), se a falta de conformidade com o contrato celebrado com o consu-midor for, realmente, resultante de um seu comportamento. É o que acontece no caso de criação de uma vinculação do vendedor final pela pessoa em causa, anteriormente ou posteriormente ao cumprimento. Nesta segunda hipótese, não parece, aliás, oferecer dúvidas que o cumprimento anterior do contrato perante a contraparte não pode ter logo efeito liberatório, sob pena de esvaziamento prático do direito de regresso. Mas o mesmo se pode dizer também quando a criação da vinculação é anterior ao contrato, na medida em que apenas se repercuta na relação com o comprador/consumidor, não acarretando logo não cumprimento perante a contraparte (82).
De qualquer modo, é certo que não basta, para corresponder às exigências da directiva, a protecção do vendedor final que possa resultar do regime geral do não cumprimento dos contratos (83).
Na verdade, tal regime baseia-se na culpa, mas a directiva apenas parece exigir a causalidade da falta de conformidade, já que os direitos que reconhece ao consumidor perante o vendedor final são também independentes de culpa — por exemplo, a reparação ou substituição da coisa.
Seria, pois, contrário, não só à letra, como à ratio do direito de regresso previsto no artigo 4.° da directiva, que o vendedor final a ficasse prejudicado por se considerar a culpa do responsável como pressuposto do direito de regresso (84). Se a responsabilidade do vendedor final perante o consumidor é objectiva, àquele deve ser reconhecido um direito de regresso que igualmente dispense a culpa, o mesmo se podendo dizer para outros pressupostos cuja não verificação precluda, independentemente da actuação do titular do direito de regresso, a existência deste. Só assim se evitará o prejuízo resultante da diferença entre as condições pelas quais o vendedor final teve que responder perante o consumidor, e os termos, menos vantajosos para si, em que pode repercutir os custos da falta de conformidade (85).
Já se, na venda de coisa específica, a falta de conformidade resultar inteiramente de um facto delituoso de terceiro ou da obediência a normas imperativas (cf., para este último caso, o artigo 5.°, alínea d) do Decreto-Lei n.° 383/89, de 6 de Novembro) não existirá responsabilidade perante o vendedor final(86), estando excluída a própria imputação da falta de conformidade.
E pode, assim, concluir-se que o demandado deverá poder afastar o direito de regresso provando que não existia falta de conformidade quando entregou a coisa ou, caso esta seja posterior a tal momento, que não foi causada por si.


d) Objecto

O montante que o vendedor deve poder exigir através deste direito de regresso não é precisado pelo artigo 4.°.
Na origem desse direito está a “responsabilidade” (lato sensu) do vendedor final perante o consumidor nos termos previstos na directiva. Ora, esta apenas previu os direitos de reparação ou substituição da coisa, de “rescisão” do contrato e redução do preço. Assim, se as legislações nacionais previrem outros direitos, além dos consagrados na directiva, que o consumidor pode exercer perante o vendedor final, não existe qualquer obrigação de alargar a estes o direito de regresso. É o caso da indemnização prevista no Código Civil (artigos 908.° a 910.°, 913.° e 915.° (87)) e no artigo 12.°, n.° 4 da LDC. Isto, evidentemente, excepto na medida em que qualquer desses outros direitos — como a chamada “grande indemnização” — possa conter em si os direitos previstos na directiva (por exemplo, a “rescisão” do contrato ou a redução do preço) (88).
À inexistência da correspondente vinculação pela directiva (89) acresce, aliás, que, pelo menos enquanto a indemnização pela venda de coisas defeituosas ao consumidor dependa da existência de culpa do vendedor final (90), o reconhecimento a este último de um direito de regresso poderá não se justificar.
Quanto ao direitos de reparação ou substituição da coisa, de resolução do contrato e de redução do preço, a razão de ser do direito de regresso implica que se considerem nele incluídos os prejuízos resultante para o vendedor do seu exercício — isto é, os custos da reparação ou da substituição do bem, o montante em que o preço foi reduzido ou o preço total restituído, em caso de resolução (descontando-se neste caso o valor da coisa, se ficar propriedade do vendedor final).
Note-se, aliás, que, mesmo que existisse culpa do vendedor e que o prazo respectivo não estivesse esgotado, o ressarcimento desses prejuízos não seria conseguido pelo exercício por parte do vendedor final, enquanto comprador e contra o seu vendedor, nem dos direitos de indemnização que a nossa lei civil prevê, nem dos direitos resultantes da “garantia legal”, correspondentes aos reconhecidos pela directiva. Na verdade, mesmo admitindo que a indemnização prevista no artigo 908.° do Código Civil (aplicável por força do artigo 913.°) inclui também as hipóteses de negligência do vendedor — apenas ficando para o artigo 909.° os casos de responsabilidade objectiva (91)—, apenas se prevê nesse ar-
tigo 908.° uma indemnização do “comprador do prejuízo que este não sofreria se a compra e venda não tivesse sido celebrada” — ou seja, do prejuízo sofrido pela celebração do contrato, correspondente ao chamado “interesse contratual negativo” (embora aparentemente incluindo os correspondentes danos emergentes e lucros cessantes, diversamente do artigo 909.°). E também não seria suficiente, para assegurar um integral direito de regresso, remeter o vendedor final para os seus direitos à reparação ou substituição, anulação do contrato ou redução do preço, nos termos dos artigos 913.° e seguintes do Código Civil.
Basta, para chegar às conclusões referidas, pensar que normalmente existe uma diferença entre o preço de compra e o preço de venda, que representará lucro cessante com a anulação ou resolução da venda (ou, na respectiva medida, com a redução do preço pelo consumidor), e que nem a indemnização referida nem o exercício da própria “garantia legal” permitiriam abranger. E o mesmo se diga de outros custos com a reparação ou a substituição do bem, em que o vendedor final teve que incorrer por virtude da falta de conformidade.
O direito de regresso deve, pois, incluir, para além dos direitos de que o vendedor final dispõe, nos termos gerais, contra o seu vendedor — eventualmente limitados pela própria “natureza das coisas” (92) —, o ressarcimento, independentemente de culpa, dos prejuízos sofridos pelo vendedor final por ter satisfeito aqueles direitos perante o consumidor (93). Mediante tal ressarcimento, o vendedor final deve ser colocado, pelo causador da falta de conformidade, na situação em que estaria se não tivessem sido exercidos pelo comprador os direitos previstos na directiva (ou “equivalentes funcionais”) (94).


e) “Acções e condições de exercício”

Também as “acções e condições de exercício” do direito de regresso, cuja determinação é deixada à legislação nacional, não poderão restringir de forma essencial o efeito útil do artigo 4.° — isto é, a existência de um efectivo direito de regresso (95). A salvaguarda desse direito implica, na verdade, que o seu exercício não seja impedido ou dificultado em termos insuperáveis, sem que o vendedor final nada possa fazer para o evitar (a não ser, eventualmente, ter convencionado com o seu vendedor garantias ou prazos mais alargados, como que em “melhoria” do direito supletivo aplicável (96)).
Julgamos que o problema se porá sobretudo a propósito dos prazos e das obrigações do vendedor final para o exercício do direito de regresso, bem como do respectivo regime de prova.


aa) Prazos

Actualmente, o consumidor/comprador de bens móveis não consumíveis pode exercer os seus direitos perante o vendedor final no prazo de um ano após a entrega (artigo 4.°, n.° 2 da LDC), mas este beneficia apenas, perante o seu vendedor, de seis meses, contados a partir da recepção dos bens deste (artigo 916.°, n.° 2 do Código Civil). E no caso da venda comercial, quer “sobre amostra ou por designação de padrão” quer de “coisas que não estejam à vista nem possam designar-se por um padrão” (artigos 469.° e 470.° do Código Comercial), o prazo para reclamação do comprador é ainda muito mais curto (oito dias — artigo 471.° do mesmo Código) (97).
Julgamos, porém, que uma equiparação da duração dos prazos de que dispõem o comprador/consumidor e o vendedor para reagir, com fundamento na falta de conformidade, nem é necessária, nem, por outro lado, pode ser considerada suficiente para assegurar o direito de regresso.
A eliminação da diferença de duração — de tal modo que o vendedor final beneficie de um prazo idêntico ao do consumidor — não é, antes do mais, necessária para a consagração de um direito de regresso que possa efectivado, e poderia ser mesmo inconveniente, por contrariar os interesses de celeridade e segurança que determinam a fixação de prazos curtos na lei comercial. O vendedor final não terá, pois, que beneficiar do prazo de garantia de dois anos que a directiva prevê para o consumidor no artigo 5.°, n.° 1 (apesar de tal extensão constar de algumas propostas de transposição (98)).
O risco de demora na revenda e de um prolongado tempo de armazenamento da mercadoria deve, aliás, correr por conta do vendedor final. Na verdade, o artigo 4.° da directiva apenas prevê um direito de regresso para casos em que a falta de conformidade resulta, não de um comportamento do consumidor ou do vendedor final, mas de um elemento anterior. Mas, se o vendedor final demorou a vender a coisa, conservando-a armazenada, o decurso do prazo de garantia de que beneficiava ficará também a dever-se a um comportamento seu — eventualmente a uma estratégia comercial —, e não apenas ao do terceiro fornecedor, fabricante, etc. (99), pelo que as consequências daí resultantes não têm de poder ser totalmente repercutidas neste.
Tal não significa, porém, a nosso ver, que esse risco deva ser integralmente corrido pelo vendedor final. Na verdade, não só o tempo que intercede entre a compra e a revenda pode ficar também a dever-se apenas a condições do mercado, como, sobretudo, o atraso no conhecimento da falta de conformidade pode resultar do facto de o consumidor a comunicar ao vendedor já perto do fim do prazo de que ele próprio beneficia (designadamente, por tal falta de conformidade, detectável com a utilização do bem, apenas então se manifestar (100)), estando então já esgotado o prazo do vendedor.
Julgamos, assim, que, mais do que pela previsão de um prazo curto para o exercício dos direitos pelo vendedor final, a efectividade do direito de regresso poderia ser posta em causa por um regime (como o previsto inicialmente no anteprojecto alemão, que se bastava com um alargamento dos prazos gerais para três anos, igualando a situação do vendedor final e do consumidor (101)) que não atendesse, como dies a quo, ao momento a partir do qual o direito de regresso pode ser exercido (ou, pelo menos, ao momento a partir do qual o vendedor final tem conhecimento da falta de conformidade).
Pelo que, como dissemos, a referida equiparação da duração dos prazos também não seria suficiente para evitar uma extinção do direito de regresso pelo decurso do tempo, sem conhecimento, vontade ou qualquer comportamento do titular, a que tal extinção fosse imputável (102).
Para evitar que a pretensão de regresso do vendedor final se torne, dessa forma, ilusória, impõe-se, antes, que o prazo para exercício de tal direito não comece a correr antes de verificados os pressupostos do direito de regresso — isto é, antes de o comprador exercer os seus direitos, ou, ao menos, de comunicar os defeitos ao vendedor final (não se afigurando, porém, necessário que exista já condenação do vendedor final a cumprir, transitada em julgado, ou, ainda, que este haja já efectivamente cumprido (103)). Ou, pelo menos, há que prever, em alternativa à fixação de tal dies a quo, uma suspensão do prazo até ao correspondente termo inicial (rectius, que a extinção dos direitos do vendedor não se verifica antes de decorrido um lapso mínimo de tempo a partir daqueles momentos (104)).


bb) Ónus do vendedor de examinar a coisa e denunciar os defeitos

Outra questão discutida é a de saber se o exercício do direito de regresso pode ser condicionado ao cumprimento de ónus como os de examinar a coisa ou de denunciar a falta de conformidade.
O problema suscita-se, sobretudo, em ordens jurídicas que, diversamente da portuguesa (artigo 916.° do Código Civil), não conhecem, no regime geral da venda de coisas defeituosas, um ónus de denunciar os defeitos ao vendedor.
Mas resulta, também, do facto de a directiva não prever um verdadeiro ónus do comprador/consumidor de examinar, ou mandar examinar, a coisa, como o previsto no artigo 36.°, n.° 1, da Convenção de Viena. Segundo o artigo 2.°, n.° 3, a falta de conformidade apenas será irrelevante se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento da falta de conformidade ou não a puder razoavelmente ignorar. E daqui decorre, a nosso ver, apenas um dever de diligência quanto à percepção de faltas de conformidade ostensivas no momento da conclusão do contrato (105).
Aliás, também entre nós o ónus de exame das coisas no acto de entrega está previsto para a compra e venda comercial (artigos 469.°, 470.° e 471.° do Código Comercial), podendo o vendedor formular uma exigência nesse sentido, sob pena de o exame se haver por efectuado (artigo 471.°, § único). E, quando o exame se deva considerar efectuado, o comprador fica constituído no ónus de reclamar os seus defeitos no prazo de oito dias.
Ora, a manutenção, para o vendedor final, deste ónus de examinar a coisa e reclamar, ou do ónus de denunciar a falta de conformidade previsto no Código Civil, afigura-se perfeitamente admissível. Tais ónus não implicam qualquer esforço inexigível ao vendedor final — que é normalmente um comerciante —, e, com as especificidades referidas quanto ao esgotamento dos prazos de denúncia, a exigência do seu cumprimento adequado também não é impeditiva de um direito de regresso efectivo (o exercício deste fica dependente da diligência do vendedor final).
A subordinação do exercício do direito de regresso à denúncia dos defeitos é, mesmo, de admitir por maioria de razão em relação ao artigo 5.°, n.° 2 da directiva, no qual se prevê a possibilidade de os Estados-membros estabelecerem a obrigação do comprador/consumidor de denunciar a falta de conformidade ao vendedor, num prazo de, pelo menos, dois meses a contar da entrega (106).


cc) Ónus da prova da anterioridade da falta de conformidade

Apesar de não nos parecer que tal seja exigido pela directiva, parece-nos conveniente que o regime comum da falta de conformidade inclua também a presunção prevista no artigo 5.°, n.° 3, da directiva, de que as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de seis meses a contar da data de entrega do bem já existiam nessa data (salvo se isso for incompatível com a natureza do bem ou da falta de conformidade).
Na verdade, frequentemente o vendedor final apenas terá de suportar os c ustos da falta de conformidade perante o consumidor por não conseguir afastar a referida presunção. A não valer esta também na relação com o seu fornecedor, a possibilidade de repercutir os prejuízos a montante da “cadeia contratual”, até ao causador da falta de conformidade, ficará inviabilizada (ou, pelo menos, seriamente prejudicada).
A aplicação ao vendedor final do regime de ónus da prova de que o comprador/consumidor beneficia é, pois, recomendada pela finalidade do direito de regresso. E é também esta solução — apesar de muitos a não considerarem necessária (ou mesmo conveniente) (107) — a adoptada na proposta alemã de transposição da directiva (§ 476 BGB da “versão consolidada” do “Projecto de lei de modernização do direito das obrigações” aprovado em Maio de 2001). Nesta proposta fixa-se, aliás, como momento a partir do qual se contam o prazo para a presunção de que beneficia o vendedor final, não aquele em que a coisa lhe foi entregue a ele, mas antes o da transferência do risco (normalmente, com a entrega) para o comprador/consumidor. Aceita-se, pois, uma extensão da presunção, em benefício do vendedor final, como consta da respectiva fundamentação: “o prazo de seis meses só começa a correr, também na relação do vendedor final com o seu fornecedor, com a revenda da coisa ao consumidor. Este prolongamento da presunção (...) justifica-se, uma vez que se abrangem apenas coisas novas no direito de regresso, pelo que não é possível uma utilização da coisa pelo vendedor final, que pudesse ter conduzido à falta de conformidade.” (108)


dd) Questões processuais

As modalidades processuais de exercício do direito de regresso são matéria cuja configuração a directiva indubitavelmente deixa à legislação nacional. Está em causa, sobretudo, a intervenção, espontânea ou provocada pelo réu, do obrigado ao regresso na acção intentada pelo comprador/consumidor, e suas consequências.
Seguindo o regime dos actuais incidentes de intervenção de terceiros, importa apurar se a relação material controvertida entre o consumidor e o vendedor final é a mesma que está em causa entre aquele e o obrigado ao regresso.
Assim, se o obrigado ao regresso responder directamente perante o consumidor, solidariamente com o vendedor final (como deveria futuramente ser o caso do produtor, segundo julgamos), será aplicável o regime do exercício do direito de regresso nas obrigações solidárias. O réu vendedor final pode então, nos termos do artigo 329.°, n.os 2, do Código de Processo Civil, suscitar a intervenção principal passiva do obrigado ao regresso (109), tendo como fim obter uma condenação contra este. Se apenas estiver em causa o direito de regresso (rectius, a solidariedade da obrigação), e a pretensão do comprador puder de imediato ser julgada procedente, o vendedor final pode ser logo condenado no pedido no despacho saneador, prosseguindo a causa entre ele e o chamado, circunscrita à questão do direito de regresso (n.° 3 do mesmo artigo) (110). O vendedor final pode, pois, por esta via, munir-se logo de título executivo contra o obrigado ao regresso, e evitar a necessidade de propor nova acção condenatória(111).
Por outro lado, nos termos do artigo 320.°, alínea a) do Código de Processo Civil, o produtor que responda solidariamente com o vendedor final perante o comprador, pode também intervir sponte sua, como parte principal, na acção intentada por este, se dela tiver conhecimento.
Diversamente, quando o vendedor final e o obrigado ao regresso não responderem solidariamente, será caso de intervenção acessória, para auxiliar o réu na defesa, circunscrita à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso, nos termos dos artigos 330.° (intervenção provocada (112)) e 335.° (assistência) do Código de Processo Civil. Por sua vez, os chamados podem suscitar sucessivamente o chamamento de terceiros, seus devedores em via de regresso (artigo 332.°, n.° 3 do mesmo diploma). Nesta hipótese, porém, o direito de regresso não pode, segundo o Código de Processo Civil, ser exercido na mesma acção a que é chamado (ou em que intervém espontaneamente) o obrigado ao regresso, apenas se verificando o efeito de caso julgado previsto nos artigos 332.°, n.° 4 e 341.° — relativamente ao chamado, e às questões de que dependa o direito de regresso, a decisão proferida constitui caso julgado, sendo aquele obrigado a aceitar, em ulterior acção de regresso, os factos e o direito que a decisão judicial tenha estabelecido, salvo se nesta causa posterior alegar e provar que o estado do processo no momento da sua intervenção ou a atitude da parte principal o impediram de fazer uso de alegações ou meios de prova que poderiam influir na decisão final, ou se mostrar que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova susceptíveis de influir na decisão final, e que a parte principal não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave (113).
Significa isto, portanto, que, se o obrigado ao regresso não responder solidariamente perante o comprador, a possibilidade de o vendedor final repercutir nele o sacrifício patrimonial resultante do cumprimento da obrigação exigida pelo comprador não pode ser feita valer na acção intentada por este. A intervenção passiva apenas possibilitará a defesa conjunta no confronto do comprador, opondo-lhe os meios comuns de defesa, e o acautelamento do direito de regresso através do referido efeito limitado de caso julgado. O enxerto no processo, para além do conflito de interesses entre comprador e seus devedores directos, daquele entre vendedor final e o obrigado ao regresso (e entre este e as pessoas contra quem tem direito de regresso, e assim sucessivamente), poderia, na verdade, contrariar o interesse do autor, que normalmente não pretenderá “ver a linearidade e celeridade da acção que intentou perturbada com a dedução de um incidente que lhe não aproveita, já que o chamado não é devedor no seu confronto, nunca podendo ser condenado mesmo que a acção proceda” (como se diz no relatório do Decreto-Lei n.° 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Resta saber se tal perturbação é insuperável, ou se, também quando o obrigado não responde solidariamente perante o autor, o direito de regresso deve poder ser exercido, logo no próprio processo em que o vendedor final é demandado pelo comprador, se a pretensão deste puder ser logo julgada procedente, prosseguindo a causa apenas entre o vendedor final e o chamado para a questão do direito de regresso, como prevê o referido artigo 329.°, n.° 3, do Código de Processo Civil para a intervenção principal. Ou seja, se este regime é de estender aos casos em apreço, sendo o terceiro, apesar de não contitular da relação material controvertida, chamado, não só para auxiliar o réu na defesa, mas também logo para, em caso de condenação do réu, se poder subsequentemente efectivar, no mesmo processo, o direito de regresso (114).


f) Limites à disponibilidade

O problema do direito de regresso suscita-se, como se viu, nas relações entre o vendedor final e o seu fornecedor — isto é, normalmente entre profissionais. Nestas relações, não se detecta uma típica necessidade de protecção da parte mais fraca, designadamente, por razões sociais (como acontece com a protecção dos inquilinos ou dos trabalhadores). Dir-se-ia, pois, que estamos no domínio por excelência da autonomia privada, podendo os intervenientes na distribuição regular convencionalmente as suas relações, e sem que se justifique um regime imperativo (115).
Entre os intervenientes na cadeia de distribuição, e particularmente no confronto do vendedor final com o produtor, podem existir, porém, diferenças relevantes de poder económico e assimetrias informativas, sobretudo em relação aos defeitos de fabrico da coisa. Acontecerá, assim, frequentemente, que, nos contratos pelos quais o vendedor final adquire para revender, os direitos deste fundados nos defeitos da coisa (por exemplo, os direitos de reparação ou substituição da coisa, ou de indemnização) sejam objecto de limitação ou, mesmo, de exclusão.
Tais cláusulas não podem, porém, quer segundo a directiva (artigo 7.°, n.° 1, do qual resulta a imperatividade da protecção dispensada ao produtor), quer segundo a lei portuguesa (artigo 16.°, n.° 1, da LDC, prevendo a nulidade da convenção pela qual se excluam ou restrinjam os direitos reconhecidos ao consumidor), ser repercutidas “a jusante”, pelo vendedor final na sua relação com o consumidor. A exclusão ou limitação convencional dos direitos do vendedor final é, pois, uma das mais significativas causas da “armadilha da garantia” na qual aquele pode ver-se apanhado, devido a defeitos que não lhe são imputáveis.
Justamente por isso, a disponibilidade do direito de regresso foi discutida logo durante o processo legislativo comunitário que conduziu à aprovação da directiva. Esta acabou (116), porém, por se afastar da imperatividade do direito de regresso: não só o artigo 7.°, n.° 1, se aplica apenas às relações com o consumidor, como o considerando 9 esclarece que o vendedor final “deve gozar de um direito de reparação perante o produtor, um vendedor anterior da mesma cadeia contratual, ou qualquer outro intermediário, salvo se tiver renunciado a esse direito” (itálico aditado).
Tal não obsta, porém, a que esta questão seja discutida a propósito da transposição da directiva para os Estados-membros, e a que, se se entender conveniente, seja adoptado um regime imperativo (117).
Julgamos, na verdade, que o regime das “cláusulas contratuais gerais”, ou não objecto de negociação individual (Decreto-Lei n.° 446/85, de 25 de Outubro, na redacção dos Decretos-Leis n.os 220/95, de 31 de Agosto e 249/99, de 7 de Julho), não basta para salvaguardar, nos termos desejáveis, o direito de regresso do vendedor final. É que a derrogação deste direito pode ter lugar através de cláusulas negociadas. E, mesmo no domínio das cláusulas não negociadas individualmente, as proibições expressas de cláusulas (designadamente, as previstas nos artigos 18.°, alíneas c), d), e f), e 19.°, alíneas e) e h) do diploma citado) não abrangem, nas relações entre empresários, a exclusão ou limitação do direito de regresso em questão. Haveria, pois, que recorrer à proibição de cláusulas contrárias à boa fé, prevista nos artigos 15.° e 16.° do citado diploma, nem sempre permitindo concluir com segurança pela nulidade da derrogação do direito de regresso.
Julgamos, assim, que as cláusulas, mesmo individualmente negociadas, de exclusão ou limitação do direito de regresso, sem compensação adequada (ou seja, de valor tendencialmente equivalente aos prejuízos sofridos) do vendedor final, devem ser proibidas, neste sentido apontando, também, a solução vigente no direito holandês e o § 476, n.° 4, da proposta alemã de “lei de modernização do direito das obrigações” (118).


IV—Conclusões

A análise que fizemos do problema do direito de regresso do vendedor final e da resposta que lhe é dada (ou sua falta) de iure condito reforçou a afirmação de que estamos perante uma questão que se suscita quando, em contratos sucessivos, uma das partes beneficia de um regime especial, ou próprio de um tipo contratual (por exemplo, o vendedor na compra e venda comercial, ou o dono da obra perante o empreiteiro comprador de materiais de construção), que permite excluir, para além do justificado pelo risco próprio do intermediário, a repercussão dos prejuízos patrimoniais, resultantes do defeito da coisa, no terceiro que causou este defeito. Trata-se de uma consequência da instituição de regimes especiais — um “direito especial do consumidor com problemas de regresso” (119).
A necessidade de previsão do direito de regresso do vendedor final chama, pois, a atenção para um dado incontornável, que nem sempre é devidamente ponderado quando se atribuem direitos ao comprador/consumidor: a protecção de uma parte na relação contratual tem como reverso a correlativa desprotecção da contraparte, nomeadamente quando vale mesmo na falta de culpa da contraparte e contra o resultado de comportamentos de terceiros.
Foi justamente para compensar essa desprotecção — evitando que o correspondente prejuízo económico seja suportado pela contraparte do comprador/consumidor — que o legislador comunitário sentiu necessidade de consagrar o direito de regresso no artigo 4.° da directiva.
Entre nós, o problema do direito de regresso do vendedor final de bens de consumo ficará, assim, resolvido pela transposição desta norma — que, sob pena de os Estados-membros poderem incorrer em responsabilidade civil, deve ocorrer o mais tardar até 1 de Janeiro de 2002 (artigo 11.°, n.° 1) (120).
Já a determinação da sedes materiae das normas respectivas depende, a nosso ver, do âmbito do direito de regresso em questão — ou seja, de saber se deve consagrar-se apenas o exercício de direitos, perante o vendedor final, por um comprador/consumidor, ou se deve ser generalizado. Se bem que o problema do direito de regresso não surja apenas por causa da protecção do consumidor que compra coisas defeituosas, é, sem dúvida, particularmente agravado com a consagração de direitos daquele contra o vendedor, cujo surgimento não depende da culpa deste. Por outro lado, a directiva só obriga à consagração de um direito de regresso para o caso do exercício de direitos por um consumidor — não apresentando, a nosso ver, as restantes hipóteses a mesma gravidade, ou podendo ser mais facilmente resolvidas (121).
Julgamos, portanto, que se justifica limitar a previsão de um direito de regresso especial à hipótese em que um comprador consumidor exerce perante o seu vendedor profissional os direitos que a nossa ordem jurídica lhe reconhece, com excepção do direito de indemnização (como, aliás, exige a directiva e foi proposto nos direitos alemão e austríaco (122)). Esse regime — apesar de incidir em relações entre profissionais (123) — seria, portanto, ainda consequência da protecção dos consumidores, podendo ser previsto no seu diploma específico, e não no Código Civil (o qual, como se sabe, se mantém entre nós como um diploma de alcance geral, não conhecendo ainda regimes específicos para os contratos de consumo (124)).
O que não significa — note-se — que a transposição da directiva neste ponto não requeira, como nos parece preferível em geral, o alargamento de várias das soluções a compradores não consumidores, mediante uma alteração do Código Civil (125), por forma a estas poderem beneficiar também o vendedor final (o caso da noção de defeito ou falta de conformidade).
Quanto às soluções a adoptar na transposição do artigo 4.° da Directiva 1999/44/CE, podemos resumir do seguinte modo as conclusões fundamentais a que chegámos: apesar de as posições do comprador/consumidor e do vendedor final poderem ser, em grande parte, harmonizadas pela introdução de alterações no regime geral previsto no Código Civil, a existência de disposições específicas sobre o direito de regresso é necessária (mesmo que se consagre uma responsabilidade directa do produtor perante o consumidor) para o caso de exercício dos direitos integrantes da garantia por aquele (podendo, pois, constar do diploma próprio dos consumidores); o direito de regresso deve ser exercido ao longo da “cadeia contratual”, por se tratar da solução mais clara para o vendedor final e menos complexa (designadamente, não obrigando a prever um regime para a acção de regresso a jusante da “cadeia contratual”); a directiva apenas impõe que o direito de regresso inclua o ressarcimento dos prejuízos (o que é mais do que o exercício da própria garantia legal pelo vendedor) resultantes do exercício, pelo consumidor, dos direitos que ela própria lhe reconhece; o direito de regresso surge independentemente de culpa, sendo afastado se o demandado provar que não existia falta de conformidade quando entregou a coisa, ou, caso esta seja posterior a tal momento, que não foi causada por si; quando se trate de coisas novas, o vendedor final deve beneficiar da presunção de anterioridade da falta de conformidade, prevista no artigo 5.°, n.° 3 da directiva, contando-se o respectivo prazo a partir da entrega ao consumidor; o direito de regresso não se extingue, pelo decurso do tempo, antes de esgotado um prazo mínimo a contar da denúncia dos defeitos pelo consumidor, ou um prazo preclusivo geral, a partir de cada entrega; a exclusão ou limitação do direito de regresso, mesmo em cláusulas individualmente negociadas, deve ser condicionada à previsão de atribuição de uma compensação adequada a cada vendedor; e pode prever-se o exercício do direito de regresso na própria acção do consumidor contra o vendedor final, mediante a intervenção provocada deste, pelo menos, se a pretensão do comprador puder ser logo julgada procedente e o vendedor final condenado (prosseguindo a causa apenas entre este e o chamado, circunscrita à questão do direito de regresso) (126).


15/05/2025 13:23:36