Pedro Cabral - O conceito de deficiência na directiva 2000/78/CE


O CONCEITO DE DEFICIÊNCIA
NA DIRECTIVA 2000/78/CE

Pelo Dr. Pedro Cabral

I. – Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Grande Secção) de 11 de Julho de 2006(*)

Directiva 2000/78/CE – Igualdade de tratamento em matéria de emprego e de trabalho – Conceito de deficiência

No processo C-13/05, que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Juzgado de lo Social n.° 33 de Madrid (Espanha), por decisão de 7 de Janeiro de 2005, entrado no Tribunal de Justiça em 19 de Janeiro de 2005, no processo:

Sonia Chacón Navas
contra
Eurest Colectividades SA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção), composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, K. Schiemann e J. Makarczyk, presidentes de secção, J.-P. Puissochet, N. Colneric (relatora), K. Lenaerts, P. Ku- ris, E. Juhász, E. Levits e A. Ó Caoimh, juízes; advogado-geral: L. A. Geelhoed; secretário: R. Grass; vistos os autos, vistas as observações apresentadas (…) ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 16 de Março de 2006,

profere o presente Acórdão:

1. O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação, no que se refere à discriminação baseada numa deficiência, da Directiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional (JO L 303, p. 16), e, subsidiariamente, uma eventual proibição de discriminação baseada na doença.

2. Este pedido foi apresentado no quadro de um litígio que opõe S. Chacón Navas à sociedade Eurest Colectividades SA (a seguir «Eurest») a propósito de um despedimento ocorrido durante um período de baixa por motivo de doença.

Quadro jurídico e regulamentar

Regulamentação comunitária


3. O artigo 136.°, primeiro parágrafo, CE dispõe:

«A Comunidade e os Estados-Membros, tendo presentes os direitos sociais fundamentais, tal como os enunciam a Carta Social Europeia, assinada em Turim, em 18 de Outubro de 1961 e a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989, terão por objectivos a promoção do emprego, a melhoria das condições de vida e de trabalho, de modo a permitir a sua harmonização, assegurando simultaneamente essa melhoria, uma protecção social adequada, o diálogo entre parceiros sociais, o desenvolvimento dos recursos humanos, tendo em vista um nível de emprego elevado e duradouro, e a luta contra as exclusões.»

4. O artigo 137.°, n.os 1 e 2, CE confere à Comunidade competência para apoiar e completar a acção dos Estados-Membros com vista a realizar os objectivos visados no artigo 136.° CE, designadamente nos domínios da integração das pessoas excluídas do mercado de trabalho e da luta contra a exclusão social.

5. A Directiva 2000/78 foi adoptada com fundamento no artigo 13.° CE, na sua versão anterior ao Tratado de Nice, que prevê:

«Sem prejuízo das demais disposições do presente Tratado e dentro dos limites das competências que este confere à Comunidade, o Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu, pode tomar as medidas necessárias para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual.»

6. O artigo 1.° da Directiva 2000/78 dispõe:

«A presente directiva tem por objecto estabelecer um quadro geral para lutar contra a discriminação em razão da religião ou das convicções, de uma deficiência, da idade ou da orientação sexual, no que se refere ao emprego e à actividade profissional, com vista a pôr em prática nos Estados-Membros o princípio da igualdade de tratamento.»

7. Esta directiva enuncia nos considerandos:

«(11) A discriminação baseada na religião ou nas convicções, numa deficiência, na idade ou na orientação sexual pode comprometer a realização dos objectivos do Tratado CE, nomeadamente a promoção de um elevado nível de emprego e de protecção social, o aumento do nível e da qualidade de vida, a coesão económica e social, a solidariedade e a livre circulação das pessoas.

(12) Para o efeito, devem ser proibidas em toda a Comunidade quaisquer formas de discriminação directa ou indirecta baseadas na religião ou nas convicções, numa deficiência, na idade ou na orientação sexual, nos domínios abrangidos pela presente directiva. [...]

[…]
(16) A adopção de medidas de adaptação do local de trabalho às necessidades das pessoas deficientes desempenha um papel importante na luta contra a discriminação em razão da deficiência.

(17) Sem prejuízo da obrigação de prever adaptações razoáveis para as pessoas deficientes, a presente directiva não exige o recrutamento, a promoção ou a manutenção num emprego, nem a formação, de uma pessoa que não seja competente, capaz ou disponível para cumprir as funções essenciais do lugar em causa ou para receber uma dada formação.

[…]
(27) Na Recomendação 86/379/CEE, de 24 de Julho de 1986 sobre o emprego dos deficientes na Comunidade [JO L 225, p. 43], o Conselho estabeleceu um quadro de orientação que enumera exemplos de acções positivas destinadas a promover o emprego e a formação das pessoas deficientes e, na sua Resolução de 17 de Junho de 1999 sobre a igualdade de oportunidades de emprego para pessoas deficientes, afirmou a importância de prestar especial atenção, nomeadamente, ao recrutamento, à manutenção no emprego, à formação e à aprendizagem ao longo da vida, das pessoas deficientes.»

8. O artigo 2.°, n.os 1 e 2, da Directiva 2000/78 prevê:

«1. Para efeitos da presente directiva, entende-se por ‘princípio da igualdade de tratamento’ a ausência de qualquer discriminação, directa ou indirecta, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.°

2. Para efeitos do n.° 1:

a) Considera-se que existe discriminação directa sempre que, por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.°, uma pessoa seja objecto de um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável;

b) Considera-se que existe discriminação indirecta sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra seja susceptível de colocar numa situação de desvantagem pessoas com uma determinada religião ou convicções, com uma determinada deficiência, pessoas de uma determinada classe etária ou pessoas com uma determinada orientação sexual, comparativamente com outras pessoas, a não ser que:

i) essa disposição, critério ou prática sejam objectivamente justificados por um objectivo legítimo e que os meios utilizados para o alcançar sejam adequados e necessários, ou que,
ii) relativamente às pessoas com uma determinada deficiência, a entidade patronal, ou qualquer pessoa ou organização a que se aplique a presente directiva, seja obrigada, por força da legislação nacional, a tomar medidas adequadas, de acordo com os princípios previstos no artigo 5.°, a fim de eliminar as desvantagens decorrentes dessa disposição, critério ou prática.»

9. Nos termos do artigo 3.° desta directiva:

«1. Dentro dos limites das competências atribuídas à Comunidade, a presente directiva é aplicável a todas as pessoas, tanto no sector público como no privado, incluindo os organismos públicos, no que diz respeito:
[…]
c) Às condições de emprego e de trabalho, incluindo o despedimento e a remuneração;
[…]»

10. O artigo 5.° da referida directiva dispõe:

«Para garantir o respeito do princípio da igualdade de tratamento relativamente às pessoas deficientes, são previstas adaptações razoáveis. Isto quer dizer que a entidade patronal toma, para o efeito, as medidas adequadas, em função das necessidades numa situação concreta, para que uma pessoa deficiente tenha acesso a um emprego, o possa exercer ou nele progredir, ou para que lhe seja ministrada formação, excepto se essas medidas implicarem encargos desproporcionados para a entidade patronal. Os encargos não são considerados desproporcionados quando forem suficientemente compensados por medidas previstas pela política do Estado-Membro em causa em matéria de pessoas deficientes.»

11. A Carta comunitária dos direitos sociais fundamentais dos trabalhadores, adoptada na reunião do Conselho Europeu de Estrasburgo, em 9 de Dezembro de 1989, à qual faz referência o artigo 136.°, n.° 1, CE, enuncia, no n.° 26:

«Todas as pessoas com deficiência, seja qual for a origem e a natureza da sua deficiência, devem poder beneficiar de medidas adicionais concretas tendentes a favorecer a sua integração profissional e social.

Essas medidas de melhoria devem nomeadamente aplicar-se à formação profissional, à ergonomia, à acessibilidade, à mobilidade, aos meios de transporte e à habitação, em função das capacidades dos interessados.»

Legislação nacional

12. Nos termos do artigo 14.° da Constituição espanhola:

«Os Espanhóis são iguais perante a lei, sem distinção de nascimento, raça, sexo, religião, opinião, ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social.»

13. O Real Decreto legislativo n.° 1/1995, de 24 de Março de 1995, que aprova o texto consolidado da lei relativa ao Estatuto dos Trabalhadores (Estatuto de los Trabajadores, BOE n.° 75, de 29 de Março de 1995, p. 9654, a seguir «Estatuto dos Trabalhadores»), distingue entre despedimento irregular e despedimento nulo.

14. O artigo 55.°, n.os 5 e 6, do Estatuto dos Trabalhadores dispõe:

«5. Considera-se nulo qualquer despedimento que tenha por motivo uma das causas de discriminação proibidas pela Constituição ou pela lei, ou que dê origem a uma violação dos direitos fundamentais e das liberdades públicas reconhecidos aos trabalhadores.

[…]
6. Um despedimento nulo tem por efeito a reintegração imediata do trabalhador, com pagamento dos salários não recebidos.»

15. Decorre do artigo 56.°, n.os 1 e 2, do Estatuto dos Trabalhadores que, em caso de despedimento irregular, a menos que a entidade patronal decida reintegrá-lo, o trabalhador perde o emprego e é-lhe paga uma indemnização.

16. No que diz respeito à proibição de discriminação nas relações de trabalho, o artigo 17.° do Estatuto dos Trabalhadores, na versão alterada pela Lei 62/2003, de 30 de Dezembro de 2003, que estabelece medidas fiscais, administrativas e de ordem social (BOE n.° 313, de 31 de Dezembro de 2003, p. 46874), que visa transpor a Directiva 2000/78 para o direito espanhol, dispõe:

«1. Serão nulas e sem efeito as disposições regulamentares, as cláusulas de convenções colectivas, os acordos individuais e as decisões unilaterais da entidade patronal que contenham discriminações directas ou indirectas desfavoráveis em razão da idade ou de deficiência ou favoráveis ou desfavoráveis no emprego, bem como em matéria de retribuições, período e restantes condições de trabalho por razões ligadas ao sexo, origem, incluindo racial ou étnica, estado civil, condição social, religião ou convicções, ideias políticas, orientação sexual, adesão ou não a sindicatos e aos seus acordos, vínculos de parentesco com outros trabalhadores e língua dentro do Estado espanhol.
[…]».

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

17. S. Chacón Navas trabalhava para a Eurest, sociedade especializada na restauração colectiva. Foi colocada em situação de baixa por doença em 14 de Outubro de 2003 e, segundo os serviços públicos de saúde que a assistiam, não podia retomar a sua actividade profissional a curto prazo. O órgão jurisdicional de reenvio não facultou nenhuma informação acerca da doença de que sofre S. Chacón Navas.

18. Em 28 de Maio de 2004, a Eurest notificou a S. Chacón Navas o seu despedimento sem apresentar nenhuma causa, reconhecendo ao mesmo tempo o carácter irregular deste e oferecendo-lhe uma indemnização.

19. Em 29 de Junho de 2004, S. Chacón Navas intentou uma acção contra a Eurest, sustentando que o seu despedimento era nulo em razão da desigualdade de tratamento e da discriminação de que tinha sido objecto, que resultavam da situação de baixa em que se encontrava havia oito meses. Pediu que a Eurest fosse condenada a reintegrá-la no seu lugar.

20. O órgão jurisdicional de reenvio refere que, na falta de outra alegação ou prova constante dos autos, resulta da inversão do ónus da prova que há que considerar que S. Chacón Navas foi despedida unicamente porque se encontrava de baixa por doença.

21. O órgão jurisdicional de reenvio observa que, na jurisprudência espanhola, existem precedentes segundo os quais este tipo de despedimento é qualificado de irregular e não de nulo, uma vez que a doença não figura, em direito espanhol, expressamente entre os motivos de discriminação proibidos nas relações entre privados.

22. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio refere que existe um nexo de causalidade entre a doença e a deficiência. Para definir o termo «deficiência», há que remeter para a classificação internacional da funcionalidade, da deficiência e da saúde (CIF), estabelecida pela Organização Mundial de Saúde. Daí resulta que o termo «deficiência» é um termo genérico que abrange as deficiências e os factores que limitam a actividade e a participação na vida social. A doença pode provocar deficiências que originam incapacidades para o indivíduo.

23. Dado que, frequentemente, a doença pode estar na origem de uma deficiência irreversível, o órgão jurisdicional de reenvio considera que os trabalhadores devem ser protegidos em tempo útil graças à existência da proibição de discriminação com base em deficiência. A solução inversa esvaziaria de substância a protecção pretendida pelo legislador, uma vez que, desta forma, seria possível instituir práticas discriminatórias incontroladas.

24. Caso se considerasse que a deficiência e a doença são dois conceitos diferentes e que a regulamentação comunitária não é de aplicação directa ao último dos dois, o órgão jurisdicional de reenvio sugere que se declare que a doença constitui um sinal característico não especificamente mencionado que deve ser acrescentado àqueles com base nos quais a Directiva 2000/78 proíbe qualquer discriminação. É o que, em seu entender, resulta da leitura conjugada dos artigos 13.° CE, 136.° CE e 137.° CE, bem como do disposto no artigo II-21 do projecto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa.

25. Foi nestas circunstâncias que o Juzgado de lo Social n.° 33 de Madrid decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:

«1) A Directiva 2000/78, na medida em que estabelece, no seu artigo 1.°, um quadro geral para lutar contra a discriminação em razão de uma deficiência, inclui no seu âmbito protector uma trabalhadora que tenha sido despedida da sua empresa exclusivamente pelo facto de estar doente?

2) Subsidiariamente, no caso de se considerar que as situações de doença não estão abrangidas no âmbito da protecção conferida pela Directiva 2000/78 contra a discriminação em função de uma deficiência, e se a resposta à primeira questão for negativa: pode-se considerar a doença uma situação característica adicional face àquelas em que a Directiva 2000/78 proíbe a discriminação?»

Quanto à admissibilidade do reenvio prejudicial

26. A Comissão duvida da admissibilidade das questões colocadas alegando que os factos descritos na decisão de reenvio carecem de precisão.

27. A este respeito, recorde-se que, apesar de nada se indicar acerca da natureza e da eventual evolução da doença de S. Chacón Navas, o Tribunal de Justiça dispõe de elementos suficientes que lhe permitem responder utilmente às questões submetidas.

28. Com efeito, resulta da decisão de reenvio que S. Chacón Navas, que foi colocada em situação de baixa por motivo de doença e que não podia retomar a sua actividade profissional a curto prazo, foi despedida, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, unicamente por se encontrar de baixa por motivo de doença. Resulta igualmente desta decisão que o órgão jurisdicional de reenvio considera que existe nexo de causalidade entre a doença e a deficiência e que um trabalhador na situação de S. Chacón Navas deve estar protegido com base na proibição das discriminações em razão de deficiência.

29. A questão submetida a título principal tem, designadamente, por objecto a interpretação do conceito de «deficiência» na acepção da Directiva 2000/78. A interpretação que o Tribunal de Justiça der a este conceito destina-se a permitir ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se S. Chacón Navas era, no momento do despedimento, devido à sua doença, uma pessoa deficiente na acepção desta directiva, que beneficiava da protecção prevista no artigo 3.°, n.° 1, alínea c), desta última.

30. No que diz respeito à questão colocada a título subsidiário, esta refere-se à doença enquanto «sinal característico» e, portanto, diz respeito a qualquer tipo de doença.

31. A Eurest considera que o reenvio prejudicial não é admissível uma vez que os órgãos jurisdicionais espanhóis, designadamente o Tribunal Supremo, já decidiram no passado, atendendo à regulamentação comunitária, que o despedimento de um trabalhador de baixa por motivo de doença não constitui em si uma discriminação. Todavia, o facto de um órgão jurisdicional nacional já ter interpretado uma regulamentação comunitária não pode provocar a inadmissibilidade de um reenvio prejudicial.

32. No que diz respeito ao argumento da Eurest segundo o qual há que considerar que esta empresa despediu S. Chacón Navas, independentemente do facto de esta se encontrar de baixa por motivo de doença, porque, nesse momento, os seus serviços já não eram indispensáveis, recorde-se que, no âmbito de um processo nos termos do artigo 234.° CE, que assenta numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, qualquer apreciação dos factos da causa é da competência do juiz nacional. Do mesmo modo, compete apenas ao juiz nacional, ao qual o litígio foi submetido e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões colocadas pelo juiz nacional sejam relativas à interpretação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar-se (v., designadamente, acórdãos de 25 de Fevereiro de 2003, IKA, C-326/00, Colect., p. I-1703, n.° 27, e de 12 de Abril de 2005, Keller, C-145/03, Colect., p. I-2529, n.° 33).

33. Todavia, o Tribunal de Justiça indicou igualmente que, em circunstâncias excepcionais, incumbe-lhe examinar as condições nas quais o juiz nacional recorre ao Tribunal de Justiça com vista a verificar a sua própria competência (v., neste sentido, acórdão de 16 de Dezembro de 1981, Foglia, 244/80, Recueil, p. 3045, n.° 21). A recusa de decisão quanto a uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional só é possível quando é manifesto que a interpretação do direito comunitário solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal, quando o problema tem natureza hipotética ou ainda quando o Tribunal não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas (v., designadamente, acórdãos de 13 de Março de 2001, PreussenElektra, C-379/98, Colect., p. I-2099, n.° 39, e de 19 de Fevereiro de 2002, Arduino, C-35/99, Colect., p. I-1529, n.° 25).

34. No caso vertente, uma vez que não se verifica nenhuma destas condições, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão


35. Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o quadro geral estabelecido pela Directiva 2000/78 para lutar contra a discriminação com base em deficiência assegura protecção a uma pessoa que foi despedida pela sua entidade patronal exclusivamente por motivo de doença.

36. Como resulta do artigo 3.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2000/78, dentro dos limites das competências conferidas à Comunidade, a directiva é aplicável a todas as pessoas, no que respeita, designadamente, às condições de despedimento.

37. Dentro destes limites, o quadro geral estabelecido pela Directiva 2000/78 para lutar contra a discriminação com base em deficiência é, pois, aplicável em matéria de despedimentos.

38. Para responder à questão colocada, há, em primeiro lugar, que interpretar o conceito de «deficiência» na acepção da directiva 2000/78 e, em segundo lugar, que examinar em que medida as pessoas deficientes estão protegidas por esta, no que diz respeito ao despedimento.

Quanto ao conceito de «deficiência»

39. O conceito de «deficiência» não está definido na Directiva 2000/78, a qual também não remete para o direito dos Estados-Membros para efeitos dessa definição.

40. Ora, decorre das exigências tanto da aplicação uniforme do direito comunitário como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito comunitário que não comporta qualquer remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e alcance devem, normalmente, encontrar, em toda a Comunidade, uma interpretação autónoma e uniforme que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (v., designadamente, acórdãos de 18 de Janeiro de 1984, Ekro, 327/82, Recueil, p. 107, n.° 11, e de 9 de Março de 2006, Comissão/Espanha, C-323/03, ainda não publicado na Colectânea, n.° 32).

41. Como ressalta do seu artigo 1.°, a Directiva 2000/78 tem por objecto estabelecer um quadro geral para lutar, no que diz respeito ao emprego e ao trabalho, contra as discriminações baseadas num dos motivos visados nesse artigo, entre os quais figura a deficiência.

42. Tendo em conta este objectivo, o conceito de «deficiência» na acepção da Directiva 2000/78 deve, em conformidade com a regra recordada no n.° 40 do presente acórdão, ser objecto de interpretação autónoma e uniforme.

43. A Directiva 2000/78 visa combater certos tipos de discriminações no que diz respeito ao emprego e ao trabalho. Neste contexto, o conceito de «deficiência» deve ser entendido no sentido de que visa uma limitação, que resulta, designadamente, de incapacidades físicas, mentais ou psíquicas e que impedem a participação da pessoa em causa na vida profissional.

44. Todavia, ao utilizar o conceito de «deficiência» no artigo 1.° da referida directiva, o legislador escolheu deliberadamente um termo que difere do de «doença». A equiparação pura e simples dos dois conceitos está, pois, excluída.

45. O considerando 16 da Directiva 2000/78 enuncia que a «adopção de medidas de adaptação do local de trabalho às necessidades das pessoas deficientes desempenha um papel importante na luta contra a discriminação em razão da deficiência». A importância reconhecida pelo legislador comunitário às medidas destinadas a adaptar o posto de trabalho em função da deficiência demonstra que teve em vista hipóteses nas quais a participação na vida profissional é impedida durante um longo período. Para que a limitação esteja abrangida pelo conceito de «deficiência», deve, pois, ser provável que a mesma seja de longa duração.

46. A Directiva 2000/78 não contém nenhuma indicação da qual resulte que os trabalhadores estão protegidos graças à existência da proibição de discriminação com base em deficiência a partir do momento em que uma doença, seja ela qual for, se manifeste.

47. Resulta das considerações expostas que uma pessoa que tenha sido despedida pela sua entidade patronal exclusivamente por motivo de doença não está abrangida pelo quadro geral estabelecido com vista a lutar contra a discriminação com base em deficiência pela Directiva 2000/78.

Quanto à protecção das pessoas deficientes em matéria de despedimento

48. Um tratamento desfavorável baseado na deficiência só é contrário à protecção visada pela Directiva 2000/78 se constituir uma discriminação na acepção do artigo 2.°, n.° 1, da referida directiva.

49. Segundo o considerando 17, a Directiva 2000/78 não exige que uma pessoa que não seja competente nem capaz ou disponível para cumprir as funções essenciais do lugar em causa seja recrutada, promovida ou continue num emprego, sem prejuízo da obrigação de prever adaptações razoáveis para as pessoas deficientes.

50. Em conformidade com o artigo 5.° da Directiva 2000/78, são previstas adaptações razoáveis para garantir o respeito do princípio da igualdade de tratamento relativamente às pessoas deficientes. O mesmo artigo precisa que isso significa que a entidade patronal toma as medidas adequadas, em função das necessidades numa situação concreta, para permitir que uma pessoa deficiente tenha acesso a um emprego, possa exercê-lo ou nele progredir, excepto se essas medidas impuserem à entidade patronal encargos desproporcionados.

51. A proibição, em matéria de despedimentos, da discriminação com base em deficiência, inscrita nos artigos 2.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2000/78, opõe-se a um despedimento baseado em deficiência que, atendendo à obrigação de prever adaptações razoáveis para as pessoas deficientes, não seja justificado pelo facto de a pessoa em causa não ser competente, capaz ou disponível para executar as funções essenciais do seu lugar.

52. Das considerações expostas resulta que à questão colocada há que responder que:

— uma pessoa que foi despedida pela sua entidade patronal exclusivamente por motivo de doença não está abrangida pelo quadro geral estabelecido pela Directiva 2000/78 com vista a lutar contra a discriminação com base em deficiência;
— a proibição, em matéria de despedimentos, da discriminação com base em deficiência, inscrita nos artigos 2.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2000/78, opõe-se a um despedimento baseado em deficiência que, tendo em conta a obrigação de prever adaptações razoáveis para as pessoas deficientes, não é justificado pelo facto de a pessoa em causa não ser competente, capaz ou disponível para executar as funções essenciais do seu lugar.

Quanto à segunda questão

53. Através da sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a doença pode ser considerada um motivo que acresce àqueles com base nos quais a Directiva 2000/78 proíbe qualquer discriminação.

54. A este respeito, declare-se que nenhuma disposição do Tratado CE contém uma proibição de discriminação baseada em doença enquanto tal.

55. No que respeita ao artigo 13.° CE, bem como ao artigo 137.° CE, conjugado com o artigo 136.° CE, estes preceitos contêm apenas a regulamentação das competências da Comunidade. Além disso, para lá de uma discriminação com base em deficiência, o artigo 13.° CE não tem em vista a discriminação baseada em doença enquanto tal e, portanto, não pode constituir sequer o fundamento jurídico de medidas do Conselho que visem combater essa discriminação.

56. É certo que entre os direitos fundamentais que fazem parte integrante dos princípios gerais do direito comunitário figura, designadamente, o princípio geral da não discriminação. Este princípio vincula os Estados-Membros quando a situação nacional em causa no processo principal está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito comunitário (v., neste sentido, acórdãos de 12 de Dezembro de 2002, Rodríguez Caballero, C-442/00, Colect., p. I-11915, n.os 30 e 32, bem como de 12 de Junho de 2003, Schmidberger, C-112/00, Colect., p. I-5659, n.° 75, e jurisprudência referida). Todavia, daí não resulta que o âmbito de aplicação da Directiva 2000/78 deva ser alargado por analogia para lá das discriminações baseadas nos motivos enumerados de maneira exaustiva no artigo 1.° desta.

57. Por conseguinte, há que responder à segunda questão que a doença enquanto tal não pode ser considerada um motivo que acresce àqueles com base nos quais a Directiva 2000/78 proíbe quaisquer discriminações.

Quanto às despesas

58. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1) Uma pessoa que foi despedida pela sua entidade patronal exclusivamente por motivo de doença não está abrangida pelo quadro geral estabelecido com vista a lutar contra a discriminação com base em deficiência pela Directiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional.

2) A proibição, em matéria de despedimentos, da discriminação com base em deficiência, inscrita nos artigos 2.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2000/78, opõe-se a um despedimento baseado em deficiência que, atendendo à obrigação de prever adaptações razoáveis para as pessoas deficientes, não seja justificado pelo facto de a pessoa em causa não ser competente, capaz ou disponível para executar as funções essenciais do seu lugar.

3) A doença enquanto tal não pode ser considerada um motivo que acresce àqueles com base nos quais a Directiva 2000/78 proíbe quaisquer discriminações.


II. – ANOTAÇÃO


Pelo Dr. Pedro Cabral(*)

1. O direito comunitário na área da luta contra a discriminação conheceu, ao longo da última década, uma evolução muitíssimo significativa. O Tratado de Amesterdão constituiu, neste contexto, um marco decisivo ao vir conferir à Comunidade poderes para adoptar medidas de combate à discriminação motivada por razões outras que a nacionalidade ou o sexo, domínios já então cobertos pela competência comunitária e previamente objecto de vasto desenvolvimento legislativo e jurisprudencial(1). O novo artigo 13.° CE, introduzido pelo Tratado de Amesterdão no sentido de permitir ao Conselho tomar as medidas necessárias para combater a discriminação designadamente em razão da raça ou origem étnica, deficiência, idade ou orientação sexual, constituía, porém, única e exclusivamente uma base jurídica, não proibindo, por si só, as discriminações fundadas nas motivações ali previstas(2). Exigia-se, assim, para que a proibição de tais discriminações se pudesse tornar uma realidade que o Conselho efectivamente adoptasse as medidas legislativas necessárias nesse sentido. Foi com esse objectivo que foram adoptadas a directiva 2000/43 que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas sem distinção de origem racial ou étnica (3) e a directiva 2000/78 que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional(4).

2. Se a adopção destes dois actos e, em particular da directiva 2000/78, suscitou um debate institucional e (sobretudo) académico particularmente interessante e fértil (5), o contencioso comunitário a eles relativo é, por ora, quase inexistente. Assim, o acórdão do Tribunal de Justiça no caso Chacón Navas que aqui se comenta é apenas a segunda decisão proferida pela jurisdição comunitária sobre a directiva 2000/78, seguindo-se ao controverso acórdão Mangold relativo à discriminação em razão da idade (6). Pela primeira vez, o Tribunal viu-se confrontado com a problemática da discriminação motivada por uma deficiência. A importância da decisão do Tribunal não se limita, contudo, ao seu carácter inédito como bem o ilustram o número de Estados-membros que vieram submeter observações no processo e o facto de o acórdão ter sido proferido pela Grande Secção da jurisdição comunitária, a sua formação de julgamento mais solene.

3. Ainda que se possa afirmar que, desde pelo menos há duas décadas, a Comunidade tem vindo a envidar um conjunto de esforços e de iniciativas não despiciendos no sentido do desenvolvimento de uma verdadeira política de protecção das pessoas portadoras de deficiências(7), a adopção da directiva 2000/78 representou, nesta matéria, um gigantesco salto qualitativo na medida em que, pela primeira vez, a questão da deficiência foi tratada por um acto jurídico comunitário com valor vinculativo. Não é seguro que o acórdão Chacón Navas possa também ele ser visto como um progresso nesta área. Com efeito, parece-nos que as soluções por ele consagradas no que respeita à interpretação da directiva ficam bastante aquém das elevadas expectativas que a adopção da mesma originara, traduzindo-se, em última instância, numa concepção insuficientemente protectora das pessoas portadoras de deficiências pelo direito comunitário.

4. A problemática em torno da qual gira o acórdão é uma problemática clássica do direito comunitário: a delimitação do âmbito de aplicação ratione personae do princípio de não discriminação. Contrariamente a outros tipos de discriminação, como por exemplo a discriminação em razão do sexo, em que a identificação da pessoa discriminada é, em princípio, fácil, no caso específico da discriminação em razão de uma deficiência, essa delimitação encerra, por vezes, dificuldades particulares(8). Tais dificuldades prendem-se designadamente com a susceptibilidade que existe de confundir uma deficiência com outras situações, próximas mas distintas, como, por exemplo, a doença. Confrontado precisamente com esse tipo de cenário no processo Chácon Navas, o Tribunal julgou necessário, para resolver a questão, precisar o que deve entender-se por deficiência em direito comunitário.

5. Não surpreende que, não se encontrando esse conceito definido na directiva 2000/78 e não remetendo esta última para os direitos nacionais a este respeito, o Tribunal tenha considerado necessário recorrer a uma interpretação autónoma e uniforme desse conceito à luz do contexto da disposição a interpretar e dos objectivos prosseguidos pela directiva(9). A jurisdição comunitária limitou-se aqui, afinal, a seguir a sua metodologia tradicional na matéria(10).

6. Se a preocupação demonstrada pelo juiz comunitário de vir colmatar a lacuna existente nesta matéria é tanto mais de saudar quanto é sabido que a Organização das Nações Unidas teve recentemente a ocasião de aprovar uma convenção sobre direitos das pessoas com deficiências(11), já menos curial se nos afigura, porém, o conteúdo efectivamente dado no acórdão ao conceito de deficiência. Desde logo, pela opção do Tribunal de basear todo o seu raciocínio relativo à construção do conceito de deficiência na acepção médico-científica daquele conceito e não na sua acepção social. É o que traduz, efectivamente, a definição do Tribunal segundo a qual o conceito de deficiência “deve ser entendido no sentido de que visa uma limitação, que resulta, designadamente, de incapacidades físicas, mentais ou psíquicas e que impedem a participação da pessoa em causa na vida profissional”(12). A opção por tal tipo de definição parece-nos manifestamente infeliz quer pelas condições em que a jurisdição comunitária a fez, quer, sobretudo, pelas suas implicações.

7. Quanto ao primeiro aspecto, compreende-se mal, com efeito, que o Tribunal tenha optado por fundar o seu raciocínio na acepção médica do conceito de deficiência quando é ponto assente que, tanto o Conselho como a Comissão, perfilham nesta matéria a orientação oposta. É o que resulta designadamente da Comunicação da Comissão sobre igualdade de oportunidades para pessoas com deficiência, de 30 de Julho de 1996(13) e da Resolução do Conselho e dos representantes dos Governos dos Estados-Membros reunidos no Conselho, de 20 de Dezembro de 1996, sobre a igualdade de oportunidades para pessoas deficientes(14). E não parece credível sequer não ter o Tribunal tido presente a existência destes dois modelos alternativos porquanto as Conclusões submetidas no processo pelo Advogado-Geral Geelhoed abordavam claramente este ponto(15).

8. Mas lamenta-se sobretudo ter o Tribunal aderido a uma definição que parte de um ideal de igualdade formal e não de um ideal de igualdade substancial(16). Se não é a primeira vez que o Tribunal segue essa via(17), trata-se de uma escolha que não convence e cujas implicações nos parecem francamente negativas. Efectivamente, impondo uma leitura excessivamente rígida e redutora da regulamentação em vigor na matéria e não permitindo que sejam devidamente tidos em conta os resultados e as condicionantes económicas, sociais e culturais de cada caso concreto, a concepção subscrita pelo juiz comunitário é susceptível de conduzir a resultados francamente injustos. Resultados que, aliás, se adivinham no que toca especificamente à discriminação em razão da deficiência e que não deixarão provavelmente de se fazer sentir face à definição avançada pelo Tribunal. Colocando o acento tónico na pessoa discriminada e não — como seria preferível — no próprio acto de discriminação, tal definição é susceptível de conduzir a que pessoas efectivamente vítimas de actos discriminatórios se vejam privados da protecção jurídica necessária por não reunirem os apertados requisitos exigidos para poderem ser consideradas deficientes(18).

9. A definição adoptada pelo Tribunal não deixa também de suscitar alguma perplexidade pelo carácter ambivalente do raciocínio em que assenta. Com efeito, é no mínimo curioso que a jurisdição comunitária se tenha socorrido, por um lado, de uma técnica de interpretação restritiva do artigo 13.° CE e da própria directiva 2000/78 fundada na repartição de competências entre a Comunidade e os Estados-membros para considerar que as situações de doença não se encontram abarcadas pelo conceito de deficiência e, por outro, de uma técnica de interpretação extensiva do considerando 16 da directiva para concluir que, para que uma limitação de que sofre uma pessoa se encontre abrangida por aquele conceito, é necessário que a mesma seja provavelmente de longa duração(19).

10. Mas mais insatisfatório ainda é o facto de essa definição não vir delimitar com precisão a noção de deficiência em relação à noção de doença deixando assim por esclarecer a qual das duas categorias se devem reconduzir determinados “casos de fronteira”. Pensa-se, por exemplo, no caso de pessoas que sofrem de doenças crónicas mas que não necessitam de medidas destinadas a adaptar o seu posto de trabalho a essa circunstância (na acepção do artigo 5.° da directiva) ou no caso de pessoas com deficiências apenas temporárias mas que necessitam de tais medidas de adaptação (20). Dada a definição restritiva do conceito de deficiência proposta pelo Tribunal é de recear que ambas as hipóteses se devam, por ora, considerar não abrangidas por esse conceito. É de esperar, contudo, que a jurisdição comunitária venha completar e aperfeiçoar tal definição de forma a torná-la mais equitativa e mais abrangente neste particular.

11. Atenção especial merece também a exclusão da doença do âmbito de protecção do princípio de não discriminação ditada pelo acórdão. Se tal solução se funda directamente na letra do artigo 13.° CE, o qual ao vir enquadrar a competência comunitária para adoptar medidas de luta contra a discriminação em vários domínios não faz qualquer alusão à doença(21), a posição restritiva agora assumida pelo Tribunal contrasta claramente com a atitude francamente expansiva anteriormente assumida no acórdão Mangold(22) em matéria conexa. Neste último, recorda-se, o Tribunal teve a ocasião de afirmar um até então desconhecido princípio geral de direito comunitário de não discriminação e de analisar o seu alcance no domínio da discriminação em razão da idade. Se ao abordarmos essa decisão num prévio estudo viemos questionar a metodologia seguida pelo Tribunal no que toca à identificação do princípio por ele reconhecido(23), não podemos deixar de saudar a mudança de orientação do juiz comunitário e a sua opção por uma interpretação literal do artigo 13.° CE. Ainda que menos expansiva e apelativa, a decisão agora pronunciada tem, quanto a nós, o inegável mérito de limitar o alcance — demasiado vasto —dado no acórdão Mangold ao princípio geral de direito comunitário de não discriminação, explicitando claramente que o mesmo só pode operar dentro dos limites das competências comunitárias(24). Saúda-se também, em especial, que o Tribunal, fiel a esse princípio da atribuição de competências, não tenha considerado existirem razões suficientes para a ele derrogar através de uma interpretação baseada no artigo 21.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União(25), ou (mais provavelmente, dado o carácter por ora não vinculativo desta última) no artigo 14.° da Convenção europeia dos direitos do homem. Terá o Tribunal implicitamente entendido — e bem, a nosso ver — que ainda que ambas essas disposições contenham uma proibição geral de todo e qualquer tipo de discriminação sem formularem uma lista exaustiva dos motivos de discriminação proibidos, admitir que as mesmas pudessem servir de fundamento para a adopção de medidas comunitárias no sentido de combater situações de discriminação fundadas na doença seria admitir a possibilidade da Comunidade agir sem o título de habilitação necessário. Subsistem ainda assim, no que toca ao princípio enunciado no acórdão Mangold, numerosas questões deixadas em aberto que só o contencioso futuro permitirá esclarecer.

12. Saliência merece ainda a circunstância de o Tribunal ter decidido pronunciar-se sobre a questão de saber em que condições o despedimento de uma pessoa deficiente pode ser considerado contrário à directiva 2000/78 ainda que tal questão não lhe tivesse sido colocada pela jurisdição de reenvio. Teria sido talvez preferível que não o tivesse feito dada a interpretação adoptada do artigo 5.° daquele texto, interpretação que nos parece dar um sentido excessivamente restritivo à obrigação que impende sobre as entidades patronais de prever adaptações razoáveis para as pessoas deficientes(26). Não nos parece, na realidade, que ao precisar o alcance que deve ser atribuído a essa obrigação o Tribunal se tenha mostrado suficientemente sensível à importância que o factor tempo pode, em determinadas circunstâncias, ter para as pessoas deficientes(27).

13. Em síntese, o acórdão Chacón Navas, se bem que de grande utilidade ao vir limitar o alcance do princípio geral de não discriminação enunciado no acórdão Mangold, não pode deixar de ser considerado decepcionante no plano substancial, sobretudo tendo em conta as expectativas geradas pela adopção da directiva 2000/78 de uma melhoria significativa da protecção das pessoas deficientes no território da União Europeia. Dele resulta, com efeito, uma definição de deficiência demasiado restritiva, marcadamente imprecisa no seu alcance e em franco desfasamento com os valores fundamentais em que assentam quer a directiva 2000/78, quer a própria política comunitária de combate à deficiência no seu conjunto. Emerge, em particular, quanto a este último aspecto, a relutância do Tribunal de acolher a noção de deficiência na sua acepção social preferindo-lhe a sua acepção médico-científica. Se um dos objectivos essenciais da directiva 2000/78 era o de fixar um standard mínimo de protecção contra a deficiência, comum a todos os Estados-membros, a definição adoptada pelo juiz comunitário vem fixar esse standard a um nível demasiado e desnecessariamente baixo(28). Não se vêem, ainda assim, motivos para uma atitude excessivamente pessimista no que toca ao futuro do direito comunitário neste domínio. Tratando-se, com efeito, do primeiro contacto do Tribunal com a sensível matéria da deficiência, pode esperar-se que a sua jurisprudência na matéria possa vir a evoluir de maneira significativa no futuro próximo.

Luxemburgo, Setembro de 2007


Notas:

(*) Colectânea, p. I-06467. Vide, infra anotação de Pedro Cabral.

(*) Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Luxemburgo (pedro.cabral @curia.europa.eu). As opiniões expressas no presente comentário são estritamente pessoais.

(1) Para uma perspectiva geral da evolução do direito comunitário em matéria de luta contra a discriminação e, em especial, do significado do Tratado de Amesterdão neste contexto, vide G. MORE, “The Principle of Equal Treatment: from Market Unifier to Fundamental Right”, The Evolution of EU Law, P. Craig / G. De Búrca (eds.), Oxford University Press, 1999, p. 517.

(2) F. SUDRE, “Le renforcement de la protection des droits de l’homme au sein de l’Union européenne”, in De la Communauté de droit à l’Union de droit – Continuités et avatars européens, J. RIDEAU (dir.), Paris, LGDJ, 2000, p. 22 e segs.

(3) Directiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de Junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica (JO L 180, p. 22).

(4) Directiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional (JO L 303, p. 16).

(5) Vide, entre muitos outros, P. SKIDMORE, “EC Framework Employment Directive on equal treatment in employment: Towards a more comprehensive Community anti-discrimination policy?”, Industrial Law Journal, 2001, p. 126; L. WADDINGTON e M. BELL, “More equal than others: Distinguishing European Union equality directives” Common Market Law Review, 2001, p. 587; P. DOLLAT, “Vers la reconnaissance généralisée du principe de l’égalité de traitement entre les personnes dans l’Union européenne”, Journal des tribunau - Droit européen, No. 87, 2002, p. 57.

(6) Acórdão de 22 de Novembro de 2005, C-144/04, Col. p. I-9981. Sobre o sentido e alcance desta decisão, vide P. CABRAL, “Um novo princípio geral de direito comunitário: o princípio de não discriminação em razão da idade”, Revista da Ordem dos Advogados, II/2007.

(7) L. DUBOUIS e C. BLUMANN, Droit matériel de l’Union européenne, 3ed. Montchrestien, 2004, parágrafo n.° 180.

(8) A. BOUJEKA, “La définition du handicap en droit communautaire”, Revue de Droit Sanitaire et Social, janvier-février 2007, p. 75, na p. 77.

(9) Cfr. os pontos 39 e 40 do acórdão.

(10) Cfr., inter alia, os acórdãos de 18 de Janeiro de 1984, EKRO, 327/82, Rec. p. 107, ponto 11 e de 9 de Março de 2006, Comissão/Espanha, C-323/03, Col. p. I-2161, ponto 32.

(11) Adoptada a 13 de Dezembro de 2006, por ocasião da 61.ª sessão da Assembleia Geral, pela resolução 61/106 (cfr. www.un.org/esa/socdev/enable/rights/convtextf.htm).

(12) Ponto 43 do acórdão.

(13) COM(96)406 final.

(14) JO 1997, C 12, p. 1.

(15) Cfr. os pontos 57 e segs. das Conclusões.

(16) Sobre as noções de igualdade formal e igual substancial vide, por todos, S. FREDMAN, “European Discrimination Law: A Critique”, Industrial Law Journal, 1992, p. 119.

(17) Pensa-se, por exemplo, na orientação similar seguida pela jurisdição comunitária no acórdão Grant (acórdão de 7 de Fevereiro de 1998, C-249/96, Col. p. I-621) em matéria de orientação sexual, ao qual tivemos, aliás, a ocasião de tecer, em altura própria, uma série de observações críticas. Cfr. P. CABRAL, “O direito comunitário da igualdade em perspectiva: algumas reflexões a propósito do acórdão do Tribunal de Justiça no caso Grant”, Documentação e Direito Comparado, nº 81/82, 2000, p. 151.

(18) Vide, nesse sentido, L. WADDINGTON, Annotation on Case C-13/05, Chacón Navas…, Common Market Law Review, 2007, p. 487, na p. 492.

(19) F. KESSLER, “La nouvelle définition du handicap en droit communautaire aura-t-elle une incidence sur le droit du travail français”, Revue de Jurisprudence Sociale, 10/06, p. 757, na p. 758.

(20) Ibid.

(21) Cfr. os pontos 53 e segs. do acórdão.

(22) Cit. supra (nota 6).

(23) Cfr. P. CABRAL, “Um novo princípio geral…”, cit. supra (nota 6).

(24) Cfr., em particular, o ponto 56 do acórdão.

(25) JO 2000, L 364, p. 1.

(26) Cfr. os pontos 49-51 do acórdão.

(27) Sobre esta questão, vide, em especial, D. Hosking, “A High Bar for EU Disability Rights”, Industrial Law Journal, 2007, p. 228, na p. 234.

(28) Ibid., p. 237.

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