Salazar Casanova e Nuno Salazar Casanova - Apontamentos sobre a reforma dos recursos


APONTAMENTOS SOBRE A REFORMA
DOS RECURSOS

(Decreto-Lei n.° 303/2007, de 24 de Agosto)

Pelos Dr. J. F. Salazar Casanova(*) e
Dr. Nuno Salazar Casanova(**)

SUMÁRIO:
Nota Breve. Principais Inovações. Vícios e Reforma da Sentença: — Rectificação (2. a 3.) — Nulidades da sentença (4. a 6.) — Âmbito da aclaração (7. a 9.) — Simultaneidade na invocação de nulidades da sentença, aclaração e reforma (10. a 12.) — Aclaração da aclaração, nulidades da decisão sobre nulidades (13. a 14.) — Sobre a recorribilidade da decisão de suprimento (15. a 19.) — Baixa do processo por omissão do despacho a corrigir o vício de nulidade, a aclarar ou a reformar a sentença (20. a 21.) Dos Recursos. Disposições gerais: — Sobre a omissão de referência ao fundamento de recurso (22. a 24.) — Omissão do requerimento de interposição de recurso (25. a 26.) — Decisões orais: cisão entre o momento da interposição do recurso e o momento das alegações (27. a 37.) — Interposição de recurso antes de notificada a decisão (38.) — Omissão de conclusões (39. a 43.) — A quem compete a rejeição do recurso por omissão de fundamentação específica (44. a 45.) — Sobre a impugnação da matéria de facto (46. a 50.) — Reclamação contra a decisão que indefere o recurso (51.) — Retenção do recurso (52.) — Decisão sobre o valor da causa e inadmissibilidade do recurso (53. a 54.) — Reclamação sobre a natureza do recurso interposto (55. a 57.) — Recurso em vez de reclamação (58.) Da Apelação. Interposição e efeitos do recurso: — Âmbito da apelação (59.) — Natureza taxativa das decisões de que se pode apelar (60. a 61.) — Impugnabilidade e momento de subida das decisões interlocutórias (62. a 65.) — Outros casos de apelação (66. a 68.) — Momento da impugnação das decisões interlocutórias (69. a 71.) — Decisão interlocutória e caso julgado (72.) — Junção de documentos e pareceres (73. a 75.) Julgamento do recurso: — Reclamação para a conferência da decisão que não admite recurso (76. a 86.) — Intervenção dos juízes por antiguidade (87.) Recurso de revista: — Âmbito da revista (88. a 91.) — Dupla conforme (92. a 97.) — Revista excepcional: excepção ao regime da dupla conforme (98. a 100.)

Nota Breve

São muitas as dúvidas que a reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, suscita. Não se veja no tom em certos casos aparentemente incisivo das soluções apresentadas mais do que a singela vontade de contribuir para abrir e desbravar caminhos. O entusiasmo e a boa vontade não são sinónimos de certezas absolutas.

Nestas notas abordar-se-ão apenas alguns pontos que resultaram das inovações introduzidas pelo referido Decreto-Lei que se nos afiguram merecer algum interesse.

Principais inovações

Quais são as principais inovações do novo regime de recursos?

— Substituição do sistema dualista apelação/revista e agravo/agravo pelo sistema monista de recurso de apelação/revista (artigos 676.º(1), 691.º, 721.º).

— O aparecimento de dois novos recursos:

a) Revista excepcional (artigo 721.º-A).
b) Recurso para o pleno das secções cíveis para uniformização de jurisprudência (artigos 763.º a 770.º).

— O desaparecimento do recurso extraordinário de oposição de terceiro integrando-se o seu fundamento nos fundamentos do recurso de revisão (artigos 778.º a 782.º e 771.º, alínea g)).

— A obrigatoriedade de se propor julgamento ampliado de revista prevendo-se decisão em oposição com jurisprudência uniformizada (artigo 732.º-A/3).

— A manutenção do regime facultativo de julgamento ampliado de revista quando assim se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade de jurisprudência (artigo 732.º-A).

— Resolução dos conflitos de competência pelo presidente do tribunal de menor categoria que exerça jurisdição sobre as autoridades em conflito (artigo 116.º/2).

— Resolução das reclamações contra o indeferimento de recurso pelo tribunal competente para dele conhecer em vez do presidente desse mesmo tribunal (artigo 688.º/1).

— Opção preferencial pela tramitação electrónica (artigo 138.º-A e artigos 8.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto).

— Distribuição processual electrónica diária (artigos 214.º/1 e 223.º/1).

— Fixação obrigatória do valor da causa (artigo 315.º).

— Simultaneidade dos pedidos de rectificação, aclaração e reforma (artigos 668.º/4, 669.º/3 e 670.º/1).

— Interposição de recurso em simultâneo com a apresentação de alegações salvo no caso de recurso interposto de despachos ou sentenças orais, reproduzidos no processo (artigo 684.º-B).

— Regra da não transcrição oficiosa da gravação da audiência quando esta permita identificação precisa e separada dos depoimentos (artigo 685.º-B).

— Distinção entre as decisões de que cabe recurso de apelação e as restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância (interlocutórias) só se verificando, quanto a estas, caso julgado se não forem impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final ou do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa (artigo 691.º/3).

— Proibição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido na parte em que aprecie decisões interlocutórias impugnadas com a sentença final (artigos 721.º/5 e 691.º/3).

— Ónus de formulação de conclusões, de especificação de concretos pontos de facto e de concretos meios probatórios na impugnação da decisão da matéria de facto, de invocação dos pressupostos da revista excepcional, de instrução do requerimento para admissibilidade do recurso para Tribunal Pleno para uniformização de jurisprudência (artigos 685.º-B/1, alíneas a) e b) e n.º 2, 685.º-C/2, alínea b), 721.º-A/2, 765.º).

— Prolação do projecto do acórdão antes dos vistos (artigo 707.º/2).

— Introdução no regime processual da dupla conforme (artigo 721.º/3).

— Introdução do regime facultativo de alegações orais no Supremo Tribunal de Justiça (artigo 727.º-A).

— Simplificação da tramitação no recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 725.º).

Vejamos então alguns dos pontos anteriormente referidos.

Vícios e reforma da sentença

1. A lei introduziu várias alterações no campo atinente aos vícios e reforma da sentença (artigos 666.º/670.º).

— Rectificação

2. A rectificação, se nenhuma das partes recorrer, pode ter lugar a todo o tempo a requerimento das partes ou por iniciativa do juiz. Deixou todavia o artigo 667.º/2 de prescrever que “cabe agravo do despacho” que proceder à rectificação. E deixou de caber agravo porque o recurso de agravo deixou de existir.

3. Mas significa isto que a decisão de rectificação, mesmo em processo de que seja admissível recurso, passou a ser irrecorrível?

Não nos parece. Só que recurso agora é o de apelação se estivermos face a decisão proferida depois da decisão final (artigo 691.º/2, alínea g).( 2)

De facto, a primeira coisa que se pode desde logo discutir, no recurso, é se a decisão de rectificação vem, na verdade, rectificar ou se introduziu, sob um tal nomen, alteração que desrespeita o princípio da inalterabilidade pelo próprio juiz das decisões por ele proferidas enunciado na regra “proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria da causa” (artigo 666.º/1). Ponto este tão relevante que mal se compreenderia a inadmissibilidade de recurso.

— Nulidades da sentença

4. No que respeita às nulidades da sentença que não são de conhecimento oficioso (todas, excepto a nulidade que consiste na ausência de assinatura do juiz: artigo 668.º/1), suprimiu-se o anterior artigo 668.º/4 que permitia ao juiz “arguida qualquer das nulidades da sentença em recurso dela interposto […] supri-la”. Não significa isto que o juiz tenha deixado de poder corrigir o vício da nulidade, aclarar ou reformar a sentença, pois o artigo 670.º/1 tanto abrange as decisões de que foi interposto recurso como as outras em que não houve interposição de recurso. Sucede, porém, que, a ocorrer alteração, abrem-se as faculdades de ampliação e recursórias a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 670.º.

5. Não obstante ter sido suprimida a referência no n.º 1 do artigo 670.º à notificação da parte contrária pela secretaria, uma vez que o requerente terá de notificar a contraparte nos termos do disposto no artigo 229.º-A e 260.º-A,—preceitos que agora abrangem inequivocamente “todos os actos processuais que devam ser praticados pelas partes”—, não pode deixar de se aguardar antes da decisão, ao abrigo do princípio do contraditório vertido no artigo 3.º, a resposta da parte contrária que terá lugar nas contra-alegações de recurso ou, não tendo sido interposto ou admissível recurso ordinário, no prazo supletivo de 10 dias (artigo 153.º/1).

6. Tendo sido corrigido o vício, o recorrente poderá, no prazo de 10 dias, dele desistir, alargar o respectivo âmbito em conformidade com a alteração sofrida e o recorrido responder a tal alteração no mesmo prazo (artigo 670.º, n.º 3). O recorrido pode interpor recurso da sentença aclarada, corrigida ou reformada no prazo de 15 dias. Este prazo de 15 dias, inferior ao genericamente estabelecido de 30 dias (artigo 685.º/1), não parece compaginar-se com o espírito da reforma que visou a supressão dualista apelação/agravo, importando ainda salientar que a correcção do vício pode implicar uma alteração substancial da sentença.

— Âmbito da aclaração

7. O âmbito da aclaração alarga-se aos fundamentos da decisão (artigo 669.º/1). Pretende a lei evitar a prática de o tribunal indeferir o pedido de aclaração com o simples argumento de que “a decisão é clara”. Certo é que uma tal interpretação restritiva, de cariz jurisprudencial, não se justificava face ao texto anterior que se referia a “obscuridade ou ambiguidade” da sentença, atendendo a que a sentença não compreende apenas a parte decisória. No entanto, face a diferenças de entendimento, pode defender-se que estamos diante de uma alteração de natureza interpretativa (artigo 13.º/1 do Código Civil).

8. Mas — pergunta-se — acaso a aclaração pode incidir sobre a deficiência, obscuridade ou contradição da matéria de facto (artigo 653.º/4)? É que fundamentos da decisão são os fundamentos de facto e de direito.

Não parece que assim se deva entender a aclaração da matéria de facto. Não é de uma reclamação sobre a obscuridade de um facto que agora se trata, reclamação que a parte poderia ter efectuado oportunamente nos termos do artigo 653.º/4, mas da obscuridade na interpretação dos factos e na sua articulação que cumpre proceder no seio da sentença. Pode, assim, dar-se o caso de os factos assumirem, na decisão, uma interpretação que se afigure ambígua a justificar um pedido de aclaração.

9. No plano do direito não é igualmente difícil configurar casos em que certas afirmações não primem pela clareza. Por exemplo, fundamentando-se o Tribunal num determinado acórdão, aparentemente decisivo, constata-se que o respectivo teor não coincide com a realidade que o Tribunal está a julgar e, por isso, importa evidenciar se o Tribunal se apercebeu ou se reconhece essa desconformidade.

— Simultaneidade na invocação de nulidades da sentença, aclaração e reforma

10. Foi suprimido o anterior artigo 670.º/3 do C.P.C. que fazia preceder o pedido de rectificação ou aclaração da sentença relativamente ao pedido de arguição de nulidades ou de reforma. Devem ser actualmente deduzidos em simultâneo.

11. Sente-se algum constrangimento na questão de a lei, no caso de pedido de esclarecimento ou ambiguidade da decisão e dos seus fundamentos ou de reforma da sentença, impor à parte a interposição imediata do recurso (artigos 668.º/4, 669.º/3 e 670.º/3). Anteriormente — ver artigo 686.º do C.P.C. — se alguma das partes requeresse a rectificação, aclaração ou reforma da sentença, o prazo para o recurso só começava a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento de rectificação, aclaração ou reforma.

Constrangimento porque, não se duvidando de que o âmbito da aclaração ou esclarecimento não se limita à decisão, a parte acaba por ter de alegar sem lhe ser dada a oportunidade de ver esclarecidas previamente as dúvidas suscitadas. E como não sabe se tais dúvidas serão esclarecidas, não cabendo recurso do despacho de indeferimento (artigo 670.º/2), deverá ela própria alegar considerando as possíveis interpretações que a decisão lhe tenha suscitado, tudo isto com um acréscimo de custos para as partes.

12. Importa salientar um ponto que se afigura relevante. As decisões interlocutórias de que não cabe recurso de apelação são impugnáveis nos termos do artigo 691.º/3. A possibilidade de serem impugnáveis com o recurso que venha a ser interposto da decisão final não significa que elas sejam decisões recorríveis a se. Qual a importância deste entendimento para o caso que nos ocupa do pedido de esclarecimento ou reforma de decisão interlocutória não susceptível de apelação? É que, assim sendo, o Tribunal, posto que a requerimento da parte interessada, tem a possibilidade de reformar decisão proferida por manifesto lapso (artigo 669.º/2), o que pode contribuir para evitar anulações resultantes da procedência da impugnação respeitante a decisão interlocutória no âmbito de recurso da decisão final. Pedir a reforma ou o esclarecimento da decisão interlocutória no momento do recurso da decisão final já não tem nenhum interesse; o deferimento do pedido implicaria, tal como o provimento da impugnação, que se anulasse o acto impugnado e com ele aqueles que dele dependem absolutamente. Cremos que este entendimento vale igualmente para a possibilidade de invocação de nulidades da decisão interlocutória que seja impugnável com o recurso a que se refere o mencionado artigo 691.º/3.

— Aclaração da aclaração, nulidade da decisão sobre nulidades

13. Do despacho de indeferimento do pedido de arguição de nulidade, de aclaração ou de reforma não cabe recurso (artigo 670.º/2). Não resolve expressamente a lei, como já não o resolvia anteriormente, se o despacho de indeferimento é ou não passível, agora ele próprio, de aclaração, reforma ou invocação de nulidades. Questão sem interesse — dir-se-á — porque, no caso de recurso, o requerimento de arguição de nulidades, a aclaração ou a reforma “é feito na alegação” (artigo 669.º/3) e já não há mais alegações, impondo-se tão somente a subida dos autos para o Tribunal da Relação.

14. No entanto, fica-nos desde logo o caso em que tais pedidos são deduzidos junto do próprio tribunal que proferiu a sentença, o que sucede quando desta não é admissível recurso. E também aqueles casos em que houve deferimento da nulidade arguida, da aclaração ou da reforma, casos em que o recorrente pode desistir, alargar ou restringir o âmbito do recurso interposto ou em que o recorrido pode interpor recurso (artigo 670.º/3 e 4).

Não se nos afigura que seja possível novo pedido de aclaração, de reforma ou arguição de nulidade. Se a parte vencida, antes vencedora, caso o Tribunal haja deferido o pedido de reforma, aclaração ou nulidade, considerar que há razão para interposição de recurso da nova decisão proferida, então deve fazer isso mesmo, interpor o recurso, não arguir nulidades ou pedir aclaração ou reforma da nova decisão proferida que a lei considera complemento e parte integrante da sentença proferida (artigo 670.º/1). Se o fizer, pratica um acto que a lei não consente e que, por conseguinte, não pode ser atendido. As dúvidas que a nova decisão lhe possam merecer serão tratadas em sede de alegações.

— Sobre a recorribilidade da decisão de suprimento

15. Somos, assim, conduzidos a uma nova questão: saber se a possibilidade de interposição de recurso pela parte agora vencida em consequência da modificação da decisão anterior vale para aqueles casos em que o pedido de aclaração, reforma ou arguição de nulidades incidiu sobre decisão da qual não é admissível recurso por causa da alçada.

16. Verifica-se que deixou de subsistir o n.º 4 do artigo 670.º do C.P.C. com a anterior redacção, preceito que, no caso de ser deferida a aclaração, reforma ou arguição de nulidade, permitia à parte prejudicada com a alteração da decisão recorrer, “mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal”.

Face a tal alteração, aparentemente o recurso agora será apenas admissível nos casos em que sempre o seria independentemente da alçada.

Admita-se, por exemplo, que a decisão modificada vai perfilhar orientação que colide contra jurisprudência uniformizada do Supremo ou que passa a traduzir ofensa de caso julgado ou, num outro plano, que desrespeita a Constituição, introduzindo uma interpretação normativa que não é conforme com o texto constitucional. Não se duvida de que o recurso é admissível.

17. Mas não podemos considerar o recurso admissível fora dos casos em que a sua admissibilidade se impõe independentemente da alçada?

CARDONA FERREIRA(3) admite, à luz de “uma certa analogia com a facilitação dos recursos subordinados” a possibilidade de impugnação ainda que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal.

De facto, a regra no nosso sistema de processo civil é a de, proferida a sentença, ficar imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (artigo 666.º/1); por isso, porque a prolação de nova decisão proferida pelo próprio órgão decisor traduz excepção ao referido princípio, a lei admitia expressamente recurso até para se analisar se o tribunal, reformando, agia dentro dos limites que a lei lhe consentia. Não era apenas neste caso de reforma que se permitia à parte prejudicada com a nova decisão contraditória interpor recurso, admitia-se sempre recurso quando sobre a questão recaíssem decisões opostas por parte do mesmo órgão decisor: veja-se o que prescrevia o artigo 744.º/3 do C.P.C., agora revogado, que possibilitava ao agravado, uma vez reparado o agravo, requerer a subida do processo de agravo.

Repare-se ainda que ao nível da 1.ª instância a reforma é um acto singular ao contrário da Relação em que a reforma resulta de decisão colegial (artigo 716.º/2).

18. Ora o princípio da limitação dos recursos em função do valor da causa e as excepções que a lei introduz a esse princípio (artigo 678.º) parece ser alheio à questão da prolação de decisões em contradição proferidas pelo mesmo órgão decisor.

Nessa medida afigura-se-nos que ocorre uma lacuna até porque a lei, quando há casos julgados contraditórios, segue o princípio do cumprimento da decisão que passou em julgado em primeiro lugar (artigo 675.º). Quer dizer, no caso de contradição, vale o que se decidiu primeiramente.

Repugna ao ordenamento jurídico a contradição de decisões entre as mesmas partes. A lei, que permitia recurso de revisão tratando-se de decisão transitada em julgado contrária a outra que constituísse caso julgado para as partes, formado anteriormente (artigo 771.º, alínea f) do C.P.C.), eliminou este fundamento do âmbito do recurso de revisão, estendendo a aplicabilidade do artigo 675.º a estas situações.

A realidade verdadeiramente subjacente é a de se permitir a contradição de decisões entre as mesmas partes originada pelo mesmo órgão decisor.

A reforma da decisão visa evitar o trânsito de uma decisão errada; no entanto, uma tão louvável preocupação origina a contradição entre decisões dimanadas do mesmo órgão decisor e entre as mesmas partes.

Não permite, a nosso ver, a lei que haja reforma, aclaração ou arguição de nulidades da nova decisão.
Fica, portanto, reformada a decisão, a valer a segunda decisão, não a primeira.

Quando a contradição de decisões se dá entre decisões transitadas, em atenção ao princípio da intangibilidade do caso julgado, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

Quando a contradição ocorre, inexistindo obviamente caso julgado, vale a segunda decisão.
É assim, porque a lei admite a reforma e porque não houve caso julgado.
Este regime de reforma é, no entanto, face à regra (artigo 666.º/1), um regime excepcional.

19. Ora estas particularidades (a saber: contradição de decisões, contradição originada pelo mesmo órgão decisor, orientação do ordenamento processual no sentido de o órgão decisor não poder “emendar a mão” relativamente às decisões proferidas) justificam, a nosso ver, admitir-se a via recursória.

A taxatividade do artigo 678.º compreende-se dentro dos pressupostos que o informam, ou seja, entre as decisões que justificam recurso independentemente do valor e aquelas que não justificam: a opção é da lei, sem dúvida.

Se a reforma da decisão proferida não resulta de “manifesto lapso”, para nos limitarmos apenas à previsão constante do artigo 669.º/2, a que título se priva a parte vencida da possibilidade de recorrer de uma decisão que pode afinal desrespeitar a regra do artigo 666.º/1, traduzindo, por conseguinte, desrespeito do princípio da confiança e segurança nas decisões dos tribunais?

Em tais situações, por força de uma decisão que considere existir manifesto lapso na decisão anteriormente proferida, onde afinal pode ter existido tão somente erro na aplicação do direito, então estamos a admitir violação similar, na essência, à ofensa de caso julgado. A pretexto da reforma ou da rectificação da decisão proferida (esta, a rectificação, a poder verificar-se inclusivamente a todo o tempo, transitada já em julgado a decisão proferida face ao disposto no artigo 667.º/3) o Tribunal desrespeita o caso julgado ou situações manifestamente equivalentes à do caso julgado.

Nestes casos, pelo menos nestes casos em que se pretenda discutir se o Tribunal agiu dentro dos limites em que a lei lhe consente a reforma, afigura-se-nos admissível a interposição do recurso.

Aceita-se, portanto, que a lacuna, que ocorre quando uma decisão esteja em contradição com outra proferida anteriormente pelo mesmo órgão decisor — porque o tribunal entendeu ser-lhe lícito nos termos do artigo 666.º/2 reformá-la ou rectificá-la — seja ultrapassada mediante a admissibilidade de recurso independentemente do valor da causa.

— Baixa do processo por omissão do despacho a corrigir o vício de nulidade, a aclarar ou a reformar a sentença

20. A omissão de despacho sobre o pedido de aclaração ou de reforma impõe ao relator que mande baixar o processo para que ele seja proferido (artigo 670.º/5, anteriores artigos 668.º/4 e 744.º/5 do C.P.C.). A prática anterior era a de apenas se determinar a baixa do processo quando não fosse manifesta a falta de fundamento do pedido de aclaração, de reforma ou de nulidade.

21. Parece-nos que hoje pode continuar o relator a não determinar a baixa do processo quando os pedidos de aclaração, reforma e nulidade não tenham sido deduzidos de uma forma marcadamente autónoma e se interpenetrem com a argumentação atinente ao mérito da causa. Muitas vezes, sob a invocação de nulidades, as partes estão afinal, por errada designação, a atacar o mérito da decisão; não se justifica nesses casos limite o atraso sempre originado pela baixa de um processo, muito em particular quando a lei tem objectivos de pura celeridade de que é flagrante o exemplo, já apontado, de se impor recurso imediato da decisão mesmo quando a parte tenha dúvidas sobre o seu alcance ou o da sua fundamentação.

De igual modo, o relator, se o recurso for manifestamente infundado, não deixará de proferir decisão sumária (artigo 705.º) designadamente naqueles casos em que, haja ou não a invocada nulidade, a decisão de direito não é susceptível de sofrer alteração.

Nestes termos, parece que o preceito em causa (artigo 670.º/5 in fine) admite interpretação restritiva.

Dos Recursos. Disposições gerais.

— Sobre a omissão de referência ao fundamento de recurso

22. Uma das novidades da reforma consiste na imposição de apresentação de alegações conjuntamente com o requerimento de interposição de recurso (artigo 684.º-B/2). Naqueles recursos em que a sua admissibilidade é independente do valor da causa e da sucumbência (v.g. desrespeito das regras de competência, ofensa de caso julgado e violação de jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça) e ainda no recurso para uniformização de jurisprudência e na revista excepcional, o recorrente deve indicar no requerimento o respectivo fundamento (artigo 684.º-B/1).

23. A lei continua a distinguir o requerimento de interposição de recurso das alegações. Mas essa distinção não parece que deva ir hoje tão longe que se exija uma autonomização formal a ponto de o recurso ser rejeitado por falta de especificação no requerimento do fundamento do recurso quando o fundamento constar das próprias alegações.

Nesse caso, a omissão da indicação do respectivo fundamento não deve importar qualquer consequência na decisão sobre a admissibilidade do recurso visto que, uma vez incluída no requerimento de interposição do recurso a alegação do recorrente (artigo 684.º-B/2), o Tribunal verificará pelas alegações o fundamento do recurso.

24. O inverso pode suceder: indicado o fundamento no requerimento, as alegações (a) não se cingem ao fundamento invocado ou (b) até lhe são alheias. No segundo caso (b), o recurso deve ser rejeitado, no primeiro (a), admite-se uma rejeição parcial do recurso.

— Omissão do requerimento de interposição de recurso

25. Pode dar-se o caso de, por lapso, serem juntas tempestivamente as alegações, mas omitido o requerimento de interposição de recurso.

A parte deve ser nesse caso convidada, sob pena de se considerar afinal inexistente a vontade de recorrer que a junção das alegações permite supor, a juntar o respectivo requerimento de interposição, convite que constitui afloramento do princípio da cooperação e do aproveitamento dos actos processuais.

Poderá nem se mostrar necessário um tal convite se das próprias alegações resultar claramente a vontade de recorrer, não se suscitando dúvidas quanto ao recorrente e de que reúne ele as condições necessárias para recorrer.

26. E será de admitir convite nos casos em que do requerimento deve constar o fundamento do recurso (artigo 684.º-B)? Pode argumentar-se que, com o convite, se verifica uma abusiva ingerência na tramitação e equilíbrio processuais, desrespeitando-se o princípio dispositivo, premiando os recorrentes com um prazo acrescido de justificação da admissibilidade do recurso. Admite-se que assim se possa entender nos casos em que das alegações não resulte inequivocamente que se pretende recorrer com base nos aludidos fundamentos. Pense-se no caso, nada improvável, em que a parte, nas alegações, tece considerações e formula conclusões que se referem a matéria estranha aos únicos fundamentos com que a lei, em razão da alçada, lhe permite recorrer.

— Decisões orais: cisão entre o momento da interposição do recurso e o momento das alegações

27. O requerimento de interposição do recurso deve incluir a alegação do recorrente: assim o prescreve o n.º 2 do artigo 684.º-B.

28. Significa isto, tratando-se de requerimento interposto de despachos ou sentenças orais, que a alegação deve ser logo apresentada?

A lei abre uma excepção, no n.º 3 do artigo 684.º-B/2, quando admite que o requerimento de interposição pode ser imediatamente ditado para a acta.

29. Qual o interesse desta excepção que leva à cisão(4) entre o requerimento de interposição de recurso e a apresentação de alegações?

É que podem ser proferidas em audiência decisões que importem a prolação de despacho imediato designadamente com efeito suspensivo. Por exemplo, admita-se que, em audiência de julgamento, se afigura necessário proceder a uma determinada diligência visando a notificação para junção de determinado meio probatório, de que só então houve conhecimento, mas considerado pela parte contrária meio de prova ilícito. Cabe da decisão recurso de apelação (artigo 691.º/2, alínea i) que subirá imediatamente, em separado, com efeito meramente devolutivo. Ora a parte vencida pode ter todo o interesse em que seja fixado efeito suspensivo à decisão por considerar que a junção desse meio probatório seja em si susceptível de lhe causar prejuízo considerável.

O Tribunal, interposto recurso oral da decisão e requerida a fixação de efeito suspensivo, ouvida a parte contrária, decidirá quanto à fixação do efeito. A fixação do efeito suspensivo obsta à execução da decisão, mas não implica a suspensão da marcha do processo, podendo ser realizadas as demais diligências probatórias que não se devam considerar dependentes daquela cuja execução se encontra suspensa.

30. Fora desta o e de similares situações (artigo 154.º/1 e 5), em que se revela de todo o interesse a interposição imediata do recurso, não se vê que se justifique a sua interposição imediata e, por conseguinte, o preceito deve ser interpretado restritivamente, ou seja, nos demais casos o recurso deve ser interposto nos termos gerais.

31. E poderá o recorrente apresentar em audiência juntamente com o requerimento de interposição de recurso as respectivas alegações?

Não vemos que a lei imponha a cisão. Obviamente não se aceita que, interposto o requerimento, oralmente se ditem as alegações. Deparar-nos-íamos, a ser assim, com um expediente de natureza dilatória que sempre reclamaria a aplicação do disposto no artigo 265.º/1.

Não é, na verdade, exigível que o recorrente apresente logo alegações no caso de interposição oral de recurso(5). No entanto, porque não obsta a lei a que o recurso seja interposto juntamente com as alegações em 30 dias, não se vê interesse, fora dos casos mencionados, em admitir-se uma interposição oral de recurso dissociada da apresentação de alegações.

32. Mas se a parte já estiver munida das alegações, porque preveniu a ocorrência do referido despacho, a que título se impede a aplicação do regime regra?

Será até conveniente que as alegações sejam logo apresentadas visto que pode ser de todo o interesse pedir a reforma do despacho por se entender que houve, na decisão, manifesto lapso do juiz a justificar a pretendida reforma (artigos 669.º/2 e 3 e 670.º/1).

33. No caso de não ser possível ao recorrente apresentar as alegações, mas entendendo ele que a decisão proferida justifica reforma, não será acaso admissível a suspensão da audiência ou, pelo menos, a suspensão da decisão, prosseguindo a audiência com a produção de prova que não seja incompatível, possibilitando-se oportunamente a apresentação de alegações com o pedido de reforma?

Não nos parece conveniente uma tal solução porque equivalia afinal a atribuir-se efeito suspensivo à decisão ou à própria marcha do processo sem ter sido requerido.

34. Mas fora destas situações não nos parece que se justifique a referida cisão, importando acentuar que a lei também não prescreve que a parte esteja obrigada, não se conformando com a decisão de despacho ou sentença oral, reproduzidos no processo, a interpor imediatamente recurso ditado para a acta. Trata-se de uma faculdade que, como se viu, deve ser exercida com o referido alcance restritivo.

35. Quanto às decisões orais de natureza interlocutória de que não cabe apelação, serão impugnadas na apelação que venha a ser interposta da decisão final ou na apelação interposta em providência cautelar (artigo 691.º/3): significa isto que a possibilidade de interposição de recurso por requerimento oral não é admissível quanto a decisões interlocutórias não previstas no artigo 691.º/2.

36. A decisão interlocutória é, por definição, uma decisão não final. A apelação incide tanto sobre decisões finais como sobre decisões não finais. No entanto, “as restantes decisões” a que alude o artigo 691.º/3 são decisões interlocutórias, não finais, restringindo-se então o alcance do preceito àquelas decisões interlocutórias não passíveis de recurso autónomo, ou seja, de que não cabe apelação.

37. A fixação de efeito suspensivo da marcha do processo (ver artigo 154.º/5 e 6) implica a tramitação do recurso com subida imediata e nos próprios autos, pois estamos face a uma decisão interlocutória de que cabe apelação (artigos 154.º/4 e 5 e 691.º/2, alínea n) (6); já quanto à fixação de efeito suspensivo da execução da decisão com fundamento no prejuízo considerável que dela advenha para o recorrente, a lei restringe-a à apelação (artigo 692.º/4). Ou seja, a fixação de efeito suspensivo da execução ou da marcha do processo vale para as decisões interlocutórias passíveis de apelação. As demais decisões interlocutórias não consentem a fixação de efeito suspensivo.

No entanto, a transposição para o regime da apelação da regra que constava do artigo 734.º/2 (“sobem também imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis)” conforme se verifica da leitura do artigo 691.º/2, alínea m) (“cabe ainda recurso de apelação das […] decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil) constitui válvula de escape que irá permitir às demais decisões interlocutórias, que em princípio se subsumiriam à regra do n.º 3 do artigo 691.º, passarem a ser objecto do recurso de apelação sendo, assim, quanto a elas, possível requerer a fixação de efeito suspensivo nos termos do artigo 692.º/4.

O alcance prático de tudo isto está em que o recurso de apelação tem necessariamente subida imediata sendo, por conseguinte, impugnável imediatamente, o que não sucede tratando-se de decisão interlocutória não recorrível de apelação, mas tão somente impugnável em momento ulterior (artigo 691.º/3), ou seja, com o recurso que vier a ser interposto da decisão final ou do despacho previsto na alínea l) do n.º 2 do artigo 691.º.

— Interposição de recurso antes de notificada a decisão

38. Em regra, os recursos interpõem-se a partir da notificação da decisão (artigo 685.º/1).
No que respeita às decisões que não assumam natureza interlocutória (7), não se vê razão para modificar o entendimento corrente de que, conhecida a decisão mas ainda antes da notificação, possa dela a parte vencida interpor recurso(8). Isto implica, no entanto, que, no momento das contra-alegações, o recorrido já tenha conhecimento do teor da decisão sob recurso.

— Omissão de conclusões

39. A principal alteração, relativamente ao regime anterior no que respeita ao ónus de alegar e formular conclusões (artigo 690.º), é que a falta de conclusões não é passível de despacho de aperfeiçoamento(9). O juiz do tribunal recorrido perante a omissão de conclusões (ver alínea b) do artigo 685.º-C/2) indefere o requerimento de recurso.

40. Se a parte, na minuta de recurso, formulou conclusões, embora de forma não autonomizada mas inegavelmente como tal reconhecíveis, deverá o recurso não ser admitido ou pode o tribunal considerar que as conclusões foram formuladas?

Parece-nos que à lei importa que haja conclusões que sejam como tal susceptíveis de ser consideradas embora não surjam, na minuta, de um modo autonomizado. No entanto, para que assim se entenda, impõe-se uma cognoscibilidade isenta de dúvidas quanto ao sentido conclusivo do texto.

Há casos em que as alegações, sucintas e bem fundamentadas, valem como conclusões. O Tribunal assim o pode entender salvo se houver alguma razão justificada, invocada nas contra-alegações, que o não permita. Mas o contrário também se pode dar e infelizmente é caso frequente: a parte, sob a designação “conclusões”, reproduz integralmente a minuta. Se nada se conclui, só formalmente estamos diante de conclusões. A prática é a de, em benefício do direito ao recurso, considerar que estamos diante de conclusões, seguindo-se, assim, um critério estritamente formal.

41. O critério estritamente formal vale, portanto, para se considerar a existência de conclusões e também a inexistência. No entanto, o rigor que o critério pode originar em determinados casos leva a que o Tribunal releve as conclusões que inequivocamente decorram da minuta ainda que não baptizadas pelo recorrente.

42. Em caso de dúvida, não obstante a imperatividade do artigo 685.º-C/2, alínea b), o Tribunal admitirá o recurso se verificar que, embora não autonomizado ou não qualificado como tal, houve um elenco conclusivo e muito particularmente quando ele não obstou à compreensão das razões do recurso e ao exercício do contraditório. Continuaria a valer neste caso o uso judicial de, face a situações duvidosas, se optar pela admissibilidade em vez da pura rejeição. No entanto, a supressão da lei do regime constante do artigo 690.º/4 do C.P.C. que prescrevia que o relator, faltando as alegações, devia convidar o recorrente a apresentá-las, leva-nos a pensar que os tribunais venham a seguir à risca orientação estritamente formal.

43. No caso de cisão entre o momento da interposição do recurso e o momento da apresentação de alegações (quando o recurso é interposto por declaração em acta) pode o tribunal que aceitou o recurso vir mais tarde a rejeitá-lo por não conterem as alegações as respectivas conclusões?

Parece-nos que sim, mas única e exclusivamente por este motivo. Os demais pressupostos (legitimidade, valor da alçada, etc.) foram já analisados pelo tribunal recorrido no momento da apreciação do requerimento de interposição de recurso, estando, quanto a estes, esgotado o seu poder jurisdicional (artigo 666.º/1). Se as alegações não forem apresentadas, o recurso deve ser julgado deserto (artigo 291.º/2); no primeiro caso, ou seja, não admitido o recurso por falta de conclusões, a parte que não se conformar, reclamará (artigos 685.º-C/2, alínea b) e 688.º/1); no segundo caso, ou seja, faltando as alegações, o recurso é julgado deserto (artigo 291.º/2): a parte que não se conformar deve recorrer, não reclamar.

— A quem compete a rejeição do recurso por omissão de fundamentação específica

44. Na impugnação da decisão relativa à matéria de facto o recorrente deve especificar obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da decisão recorrida (artigo 685.º-B/1, alíneas a) e b)).

45. A rejeição do recurso sobre a matéria de facto por desrespeito destas prescrições cabe ao tribunal que irá apreciar o recurso, não ao tribunal recorrido: o que se refere vale quanto a este caso de rejeição como a outros a que a lei se refere (ver artigo 721.º-A/2, alíneas a) e b).(10)

— Sobre a impugnação da matéria de facto

46. Evidenciam-se (ver artigo 685.º-B)/ 2 e 3) três pontos relativamente ao texto anterior:

— O ónus a cargo do recorrente de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda a impugnação da matéria de facto quando “seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos” e, como reverso, o ónus de proceder às transcrições quando a gravação da audiência for efectuada através de meio que não permita a identificação precisa e separada dos depoimentos.

— A faculdade de o recorrente proceder à transcrição ainda que a lei não a imponha.

— A supressão do preceito que permitia ao juiz relator determinar a transcrição dos depoimentos.(11)

47. A identificação separada e precisa dos depoimentos tem--se revelado muito difícil com as cassetes que continuam a ser utilizadas actualmente. Nem as cassetes nem a aparelhagem dispõem de possibilidades técnicas que permitam o acesso imediato ao depoimento mediante a inscrição do lugar assinalado na acta.

A faculdade de as partes procederem à transcrição, posto que não referida directamente pela lei, era reconhecida sem qualquer hesitação pelos tribunais. São ainda razões de segurança e de certeza que justificam tal faculdade a lembrar os velhos brocardos: quod non est in actis non est in mundo ou verba volant, scripta manent.

A gravação (pelo menos em cassete) não garante, mais do que o texto escrito, acréscimo de facilidade em detectar imprecisões nos depoimentos prestados. Ponto importante: ouvir sem ver, pode conduzir a lapsos de compreensão que são atenuados quando se lê e ouve simultaneamente. Por isso, não deve impedir-se um juiz, se assim sentir necessidade, de se garantir com as melhores condições de apreciação do registo de prova.

Retirar ao juiz a possibilidade de ordenar a transcrição, conferindo às partes a exclusiva tutela de um interesse de ordem pública como é o de obstar a que o tribunal, por deficiência técnica, incorra em erro de apreciação, é solução que não deve ser aceite em termos absolutos, considerados os pressupostos de que parte o legislador.

48. Se é possível a identificação precisa e separada dos depoimentos e se na acta estão assinalados o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento “de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos” as partes não têm, mas podem, proceder à transcrição de depoimentos (artigo 522.º-C).

Pode dar-se o caso de não se ter assinalado na acta o início e o termo da gravação dos depoimentos.

O Tribunal de recurso pode determinar à 1.ª instância, designadamente quando pelo número de depoimentos anteveja dificultado o seu trabalho de audição do registo da prova, que proceda à elaboração das indicações que deveriam constar da acta e não constam.

49. Admita-se agora que o registo da prova se efectua utilizando-se meio que é daqueles que permitem a identificação precisa e separada dos depoimentos mas foi realizado tecnicamente de tal modo que ficou inviabilizada essa identificação separada.

Afigura-se-nos que as partes em tal circunstância devem ser convidadas a juntar transcrições visto que, na prática, elas referir-se-ão aos depoimentos concretos indicando os pontos que merecem discordância, remetendo depois para a respectiva identificação assinalada na acta.

Certo é que a lei, agora expressis verbis (artigo 685.º-B/3), posto que tal entendimento já fosse assumido anteriormente (ver artigo 712.º/2 do C.P.C.), impõe ao julgador o poder-dever de investigar oficiosamente se, para lá das passagens indicadas pelo recorrido ou mesmo no caso de omissão de impugnação, outras não existem que ponham em causa as asserções de facto alcançadas pelo recorrente a partir das mencionadas passagens.

A lei não está obviamente a impor ao juiz o exercício do contraditório, substituindo-se com a sua diligência à falta de diligência do recorrido.

A lei o que pretende é evitar que, por força da insuficiência de contraditório, a verdade daquele julgamento que foi realizado seja atraiçoada, iludindo-se o Tribunal com a invocação de passagens de facto que afinal não foram justamente consideradas pela decisão do Tribunal recorrido que viu decorrer perante si todo o material probatório com a facilidade que a imediação proporciona.

A repetição do julgamento não é solução. A repetição da prova traduz-se sempre num novo julgamento e, por isso, qualquer solução que imponha ou conduza a uma repetição de prova é susceptível de originar um segundo julgamento de facto em vez da reapreciação da prova produzida daquele único julgamento de facto.

50. Admita-se que o recorrente faz acompanhar as alegações com a transcrição de depoimentos que, por si, conduzem à ideia de que se impõe, na verdade, alteração da matéria de facto. E admita-se ainda que a parte contrária calou resposta ou a sua oposição não infirma o que foi referido pelo recorrente.

Pergunta-se: o Tribunal, que oficiosamente verificou pelos demais depoimentos prestados não se justificar afinal a alteração da matéria de facto, não poderá em circunstância alguma determinar a transcrição desses depoimentos para que fique claramente evidenciada a razão por que não pode proceder o recurso quanto à impugnação da matéria de facto e para que, mediante a leitura da transcrição, se elimine ou atenue a margem de erro que sempre resulta da audição exclusiva da gravação?

Não haverá casos em que, estando em causa interesses de particular relevância social que a lei alcandora a razão justificativa da revista excepcional (artigo 721.º-A), se justifique amplamente que na decisão sobre a matéria de facto se transcreva a prova produzida que impõe a confirmação da decisão recorrida?

Quer o legislador que o juiz, na impossibilidade de ordenar a transcrição de depoimentos, passe ele próprio a transcrevê-los, a copiar para o acórdão aquilo que os juízes ouviram às vezes durante horas?

Afigura-se-nos que a lei não proíbe a transcrição pelo Tribunal dos depoimentos até porque a direcção do processo compete ao juiz e este não pode deixar de acautelar particulares situações.

A omissão de previsão não significa que ao Tribunal esteja vedado ordenar a transcrição.
A resposta à questão há-de fundar-se nos princípios gerais.

A prática, aliás, mostra que os tribunais de recurso no âmbito da apreciação de recursos da jurisdição cível raramente faziam uso do disposto no n.º 5 do anterior artigo 690.º-A do C.P.C.

A omissão de referência na lei a tal possibilidade não a vemos como proibição — se a lei quisesse proibir, dizia-o — antes como a abertura de um espaço interpretativo cujo preenchimento compete ao julgador na certeza, como é evidente, que o Tribunal só excepcionalmente determinará a transcrição de depoimentos.

— Reclamação contra a decisão que indefere o recurso interposto

51. Um outro ponto inovador é o de a reclamação contra o despacho que não admite o recurso passar a ser objecto de reclamação para o Tribunal que seria competente para dele conhecer quando anteriormente a reclamação era dirigida ao presidente do tribunal que seria competente para conhecer o recurso (artigo 688.º/1).

— Retenção do recurso

52. Deixou de constituir fundamento de reclamação o caso de retenção de recurso. E cremos que deixou por desnecessidade lógica face ao regime processual que foi instituído. Admitindo-se que seja proferida decisão que retenha recurso que deve subir imediatamente, defende-se que tal decisão é impugnável por via de recurso e não de reclamação.(12)

A razão de ser dessa omissão reside na ideia de que já não existem recursos com subida diferida (ver anterior artigo 735.º do C.P.C., ora revogado); os recursos agora sobem imediatamente, podendo subir nos próprios autos ou em separado.

É certo que se podem verificar situações que parecem de retenção de recurso: por exemplo, é interposto recurso de apelação com fundamento de que a sua impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil (artigo 691.º/2, m)) considerando, no entanto, o Tribunal que, por não correr tal fundamento, deve a decisão interlocutória ser impugnada oportunamente com o recurso da decisão final nos termos do artigo 691.º/3. Outros exemplos podem ocorrer pensando-se sempre nas situações em que o recorrente considera que o recurso deve ser admitido como recurso de apelação e o Tribunal, diversamente, considera que o recurso é de mera decisão interlocutória não passível de apelação. Estas situações em rigor devem ser tratadas como casos de rejeição de recurso visto que as decisões interlocutórias subsumíveis ao disposto no n.º 3 do artigo 691.º não são impugnáveis antes do recurso da decisão final. A entender-se deste modo, então a aludida decisão de rejeição recurso, ainda que o Tribunal não a qualifique com tal expressamente, deve assim ser compreendida e, por conseguinte, passível de reclamação contra o indeferimento (artigo 688.º) e não de interposição de recurso.

— Decisão sobre o valor da causa e inadmissibilidade do recurso

53. Considerando que, nos termos do artigo 315.º, compete agora ao juiz fixar sempre o valor da causa, por regra no despacho saneador, e considerando que, contrariamente ao declarado pelas partes, ele será fixado em muitos casos em valor igual ou inferior à alçada do tribunal, suscita-se então a questão de saber se, interposto recurso da decisão que fixou à causa valor que obsta à admissibilidade do recurso da sentença proferida, o Tribunal pode rejeitar o recurso interposto da sentença considerando-o inadmissível por outro motivo independente da questão do valor da causa e antes de decidida esta questão.

Estamos a pensar, por exemplo, no caso de despacho saneador (ou da própria sentença) em que se decida imediatamente de mérito, fixando-se valor da causa.

Da decisão que põe termo ao incidente de valor cabe recurso de apelação, a subir em separado, com efeito devolutivo (artigos 691.º/2, alínea j), 691.º-A/2 e 692.º/1).

Da decisão que põe termo ao processo cabe apelação, a subir nos próprios autos em princípio com efeito devolutivo (artigo 691.º/1, 691.º-A/1, alínea a) e 692.º/1).

Se o recurso interposto da decisão que fixou o valor tem efeito devolutivo, isso significa que se deve continuar a atender ao valor da causa no momento em que foi proposta (artigo 308.º/1).

Não há, portanto, em razão do efeito, motivo para se suspender a apreciação do recurso interposto do saneador-sentença que decidiu de mérito.

54. Há, no entanto, manifesta prejudicialidade entre a decisão sobre o valor e o conhecimento da decisão de mérito.

Não se vê razão para que as duas apelações não subam em conjunto e, a ser assim, o Tribunal, a ocorrer motivo de inadmissibilidade do recurso interposto por razão diversa do valor da causa, pronunciar-se-ia nesse sentido; seria seguidamente apreciada a reclamação relativamente a este ponto e, depois, a prosseguirem os autos em conjunto, o Tribunal iria apreciar a decisão sobre o incidente de valor; negando provimento ao recurso de apelação sobre o valor da causa, prejudicado ficava o conhecimento da apelação; ao invés, procedendo o recurso quanto ao valor, o Tribunal passava a apreciar a sentença de mérito.

Não se entendendo desta forma, ou seja, não subindo em conjunto as apelações, então não se vê que haja utilidade em apreciar a apelação da sentença antes de decidido definitivamente o recurso sobre o incidente de valor.

Essa prejudicialidade não obsta a que o tribunal recorrido se pronuncie sobre a admissibilidade da apelação interposta da decisão proferida quanto ao mérito da causa, a Relação pronunciar-se-á igualmente em sede de reclamação, se for o caso, sobre a admissibilidade do recurso, mas suspenderá a decisão até ao trânsito do acórdão (ou decisão singular) que se vier a pronunciar sobre o incidente de valor.

— Reclamação sobre a natureza do recurso interposto

55. Uma situação nova a considerar será aquela em que, interposto recurso antes da decisão final, o Tribunal entenda não o admitir por considerar que, assumindo a decisão proferida natureza interlocutória não prevista no artigo 691.º/2, a mesma só deverá ser impugnada com o recurso a interpor da decisão final ou com o despacho a proferir em providência cautelar (artigo 691.º/3). Isto sucederá certamente, em diversas ocasiões, a propósito da alínea m) do n.º 2 do artigo 691.º. E pode dar-se o caso de, face a tal circunstância, o Tribunal ordenar o desentranhamento do recurso interposto por não entender admissível a sua interposição.

Ora pode o recorrente considerar que a decisão não era decisão interlocutória subsumível ao disposto no artigo 691.º/3, mas decisão interlocutória passível de recurso de apelação a interpor no prazo de 30 dias a contar da notificação (artigo 685.º/1) e, assim sendo, o Tribunal deveria admitir o recurso, não determinando o seu desentranhamento.

Admitamos que o Tribunal não ordena o desentranhamento considerando, aliás de acordo com um entendimento que tem merecido acolhimento jurisprudencial que é o de não se rejeitar recursos interpostos antes da notificação da decisão (o que nem é o caso, pois o recurso é interposto depois da decisão ter sido proferida e notificada), que a sua admissibilidade apenas pode ser analisada no momento em que for interposto recurso da decisão final, caso o recorrente dele possa interpor recurso por ser parte vencida, pois, se o não for e não houver recurso da decisão final (artigo 691.º/4), a admissibilidade do recurso (13) a interpor dessa decisão interlocutória fica dependente da demonstração do seu interesse para o recorrente independentemente daquela decisão (artigo 691.º/4).

56. As considerações anteriores pressupõem a tomada de posição sobre as consequências de a lei já não prever os recursos com subida diferida. Conceptualmente não se devem considerar equivalentes as decisões impugnáveis com a decisão final (artigo 691.º/3) às antigas decisões susceptíveis de recurso com subida diferida. Já não há recurso destas decisões. Há, sim, impugnação em sede de recurso da decisão final. Até à decisão final, as decisões interlocutórias subsumíveis ao disposto no artigo 691.º/3 não são impugnáveis.

Aceitar a recorribilidade destas decisões (com subida diferida) antes do momento prescrito no mencionado artigo 691.º/3 seria aplicar o antigo regime do agravo com subida diferida. Daí que o tribunal não possa relegar a sua admissibilidade para final, ou seja, tratando estes casos como se estivéssemos face a uma retenção de recurso.

Deve rejeitar o recurso das decisões interlocutórias, porque não são ainda decisões susceptíveis de recurso. Aliás, no momento em que são proferidas, o tribunal nem pode saber se deve ser reconhecida à parte vencida a faculdade de as impugnar porque, se vier a ganhar no final, apenas pode impugnar, num recurso único, as decisões que tenham interesse para além daquela decisão (artigo 691.º/4, correspondente ao antigo 735.º do C.P.C.); quer dizer: não havendo recurso da decisão final ou porque a parte foi vencedora ou porque se conformou com a decisão, as decisões interlocutórias proferidas anteriormente são susceptíveis de impugnação pelo vencido desde que se verifique o condicionalismo do artigo 691.º/4.

Ora isto demonstra que o Tribunal não pode deixar de rejeitar o recurso que tenha sido interposto de decisão interlocutória antes da decisão final ou do despacho a que se refere o artigo 691.º/3, impondo-se à parte discordante o ónus de reclamar, como já referimos anteriormente. As decisões interlocutórias abrangidas pelo artigo 691.º/3 não são, portanto, impugnáveis autonomamente, a impugnação faz-se, como diz o preceito, com o “recurso que venha a ser interposto da decisão final ou do despacho previsto na alínea l) do n.º 2”.

Atente-se, porém, no seguinte: se é certo que a parte que ficou vencida numa decisão interlocutória e que veio a ter ganho da causa não pode impugnar a decisão interlocutória, salvo verificado o condicionalismo a que alude o artigo 691.º/4, como se disse, no entanto já a pode impugnar, em sede de contra-alegações, face ao recurso interposto pela parte vencida na decisão final, entendimento que se traduz na aplicabilidade ao caso de regime similar ao do recurso subordinado.

57. Quanto ao desentranhamento ou não do requerimento de interposição de recurso, alegações e contra-alegações, tal desentranhamento(14) parece impor-se por decorrer do juízo de inadmissibilidade do recurso. A aceitar-se que o Tribunal, não admitido o recurso, deixe ficar as peças nos autos, solução que não parece coerente com a decisão de inadmissibilidade do recurso e mesmo com o propósito simplificador de os autos não continuarem a ser sujeitos a tramitação recursória a apreciar ulteriormente, parece seguro que mais além não se pode ir, ou seja, considerar ainda dispensado o apelante de manifestar, proferida já a decisão final e só então, a sua vontade de impugnar as referidas decisões interlocutórias, declarando simultaneamente aproveitar, para o efeito, as peças apresentadas.

Com esse aproveitamento, opção que nos parece muito duvidosa, a parte contrária, considerada a situação existente quando da decisão final, ou veria reconhecida a possibilidade de apresentar nesse momento contra-alegações ou então ficava impedida de suscitar objecções à própria admissibilidade do recurso só constatáveis depois da decisão final.

Por tais razões, a não haver desentranhamento, solução que nos parece de rejeitar, o aproveitamento das alegações (e contra-alegações) não pode ir ao ponto de ainda ser reconhecido à parte, que nada disse a tal propósito quando do recurso da decisão final, pretender assistir-lhe o direito de aproveitamento dos actos praticados; isso seria afinal dar o dito pelo não dito, tratando-se como recurso admitido com subida diferida o recurso que o Tribunal rejeitou.

— Recurso em vez de reclamação

58. Deixou de constar no novo texto a regra de adequação referida no n.º 5 do artigo 688.º do C.P.C. (anterior redacção). Deve, no entanto, continuar a entender-se da mesma forma, determinando-se que suba como reclamação ao tribunal superior o indevidamente interposto recurso desde que, como é evidente, os prazos atinentes à reclamação tenham sido observados.(15)

Da apelação. Interposição e efeitos do recurso

— Âmbito da apelação

59. A apelação, como regra geral, cabe da decisão do tribunal de 1.ª instância que ponha termo ao processo. A decisão será normalmente a sentença final ou o despacho saneador (artigos 659.º e 510.º/1, alínea b)). A decisão final pode incidir sobre o mérito da causa mas também sobre questão de outra ordem, designadamente de natureza processual. Anteriormente à revisão do DL n.º 303/2007 o recurso de apelação competia da sentença final e do despacho saneador que decidissem do mérito da causa (artigo 691.º/1 do C.P.C.) e o recurso de agravo cabia das decisões de que se não podia apelar (artigo 733.º do C.P.C.).

Actualmente, a distinção, ao nível das decisões de 1.ª instância, faz-se entre as decisões de que cabe apelação e as restantes de natureza interlocutória (ver artigo 691.º/3).

— Natureza taxativa das decisões de que se pode apelar

60. A enumeração das decisões de que cabe apelação é taxativa embora com cláusula de remissão para outros casos que sejam expressamente previstos na lei: artigo 691.º/2, alínea n).

61. Os antigos agravos com subida imediata [decisão sobre impedimento do juiz, decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal, despachos proferidos depois da decisão final [anterior artigo 734.º/1, alíneas b), c) e d) do C.P.C.] ou os antigos agravos com efeito suspensivo do processo (decisão que aplique multa, decisão que condene no cumprimento de obrigação pecuniária, decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo [anterior artigo 740.º/2, alíneas a), b) e c)] são agora qualificados de apelação: ver artigo 691.º/2, alíneas a) a e).

— Impugnabilidade e momento de subida das decisões interlocutórias

62. Da decisão em si que julgue, por exemplo, improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade(16) não cabe recurso de apelação. Assim, proferida em despacho saneador, que não pôs termo ao processo, é impugnável, como qualquer outra decisão interlocutória, no recurso que venha a ser interposto da decisão final (artigo 691.º/3) ou, no caso de providência cautelar, da decisão que se pronuncie quanto à concessão da providência cautelar, determine o seu levantamento ou indefira liminarmente o respectivo requerimento (artigo 691.º/2, alínea l) e n.º 3). No entanto, se o despacho saneador, sem pôr termo ao processo, decidiu do mérito da causa (por exemplo, relativamente a um dos pedidos) então a decisão sobre a excepção de ilegitimidade já parece ser impugnável no recurso que venha a ser interposto desse despacho que decidiu do mérito da causa.(17)

Este entendimento traduz um desvio à implícita regra de que a subida imediata de uma apelação (que não seja decisão final) não “atrai” as decisões interlocutórias proferidas anteriormente. No entanto, no caso focado do despacho saneador que decide parcialmente do mérito da causa — que não é decisão final e, por conseguinte, em princípio, face ao disposto no artigo 691.º/3, não seria de admitir a impugnabilidade das decisões interlocutórias anteriormente proferidas — o apontado desvio parece justificar-se: com efeito, se o saneador decide sobre o mérito da causa (v.g., sobre um dos pedidos), então uma das partes ficará necessariamente vencida quanto ao fundo da causa e, como tal, pode estar certa de pretender impugnar decisões interlocutórias que igualmente lhe foram desfavoráveis.

63. Em regra, não parece admissível impugnar decisões interlocutórias conjuntamente com a apelação de decisões previstas no 691.º/2.

Admita-se que, julgada improcedente a excepção de legitimidade e tendo o processo prosseguido sem que, no saneador, haja sido proferida decisão de mérito, vem a determinar-se a suspensão da instância. O A., face a esta decisão de suspensão da instância, interpõe recurso de apelação que sobe imediatamente e nos próprios autos (artigo 691.º/2, alínea f) e 691.º-A/1, alínea b). O réu que, em momento anterior, viu julgada improcedente a excepção deduzida de ilegitimidade não verá ser a questão agora apreciada, apesar da subida imediata do recurso subsequente. Isto porque a decisão é apenas impugnável no recurso que venha a ser interposto da decisão final (e a suspensão da instância não é decisão final) ou da decisão prevista no artigo 691.º/2 alínea l) [que não é o caso do despacho saneador] ou do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa e esse despacho saneador, proferido anteriormente, não decidiu do mérito da causa.

64. No regime anterior, o agravo subiria diferidamente, ou seja, com o primeiro recurso que, depois de ele ser interposto, subisse imediatamente (artigo 735.º/1). Não será justificada uma interpretação da lei que admita a impugnabilidade das restantes decisões com o primeiro recurso que venha a ser interposto necessariamente com subida imediata? A entender-se assim a impugnabilidade de uma decisão ficaria dependente da livre opção da parte, não ocorrendo preclusão se a impugnação apenas se verificar no momento a que alude o artigo 691.º/3. TEIXEIRA DE SOUSA parece afastar-se das soluções apontadas que imponham desvio de entendimento, que considera de difícil justificação, face à redacção do artigo 691.º/3, salientando que “também não tem subida imediata a apelação do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, absolva o réu da instância: dado que o artigo 691.º, n.º 2, alínea h), só se refere ao despacho saneador que tenha conhecido parcialmente do mérito da causa, a absolvição da instância proferida num despacho saneador que não ponha termo ao processo só pode ser impugnada na apelação que venha a ser interposta da decisão final (artigo 691.º/3)” (18). E mais adiante acrescenta: “pode ainda perguntar-se se, tendo sido interposto um recurso com subida imediata do despacho saneador que não pôs termo ao processo (porque, por exemplo, nele foi rejeitada a incompetência absoluta invocada pelo réu) não teria sido conveniente ter utilizado a subida desse recurso (cf. artigo 691.º/2, alínea b) para fazer subir os recursos dos despachos interlocutórios que estejam retidos nesse momento. Infelizmente, o artigo 691.º, n.º 3, não permite esta solução”.

65. A lei, no que respeita aos agravos, continha uma disposição, sorte de cláusula de ressalva geral, que era o artigo 734.º/2 segundo o qual subiam “também imediatamente os agravos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis”. Caso paradigmático era a decisão de suspensão da instância da qual agora se interpõe recurso de apelação (artigo 692.º/2, alínea f)). Tal cláusula continua a manter-se e, por conseguinte, actualmente as decisões cuja retenção as tornaria absolutamente inúteis são passíveis de recurso de apelação: ver artigo 691.º/2, alínea m). Não parece, no entanto, que ao abrigo deste preceito possa subir o recurso da decisão que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade ou outra subsumível ao mesmo regime processual (v.g. decisão interlocutória que julgue improcedente excepção de prescrição ou de caducidade).

— Outros casos de apelação

66. Do despacho de admissão ou rejeição de meios de prova cabe recurso de apelação. No regime anterior, estes recursos não tinham subida imediata; têm-na agora pois a apelação é recurso a impor a subida imediata. Estes recursos, em regra, têm sempre efeito devolutivo: é a regra na apelação: artigo 692.º/1).

67. No que respeita às decisões que não admitam incidentes ou lhes ponham termo — a todos os incidentes e não apenas aos incidentes da instância aos quais se aplicava o regime do anterior artigo 739.º do C.P.C., ora revogado — o recurso a interpor é o recurso de apelação a que alude o artigo 691.º, alínea j). Os recursos interlocutórios proferidos no âmbito do incidente são impugnáveis com o recurso que venha a ser interposto da decisão final proferida no incidente. Atente-se que a decisão sobre o incidente de verificação do valor da causa está abrangida por este preceito, ou seja, não estamos face a decisão apenas impugnável a final.

68. As decisões finais no que respeita a procedimentos cautelares são susceptíveis de interposição de recurso de apelação (artigo 691.º/1, alínea l), preceito que corresponde ao anterior artigo 738.º do C.P.C., ora revogado). As decisões interlocutórias nos procedimentos cautelares serão impugnadas com o recurso interposto do despacho que na providência seja passível de apelação (ver artigo 691.º/3).

— Momento da impugnação das decisões interlocutórias

69. As restantes decisões podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final ou do despacho previsto na alínea l) do n.º 2: ver artigo 691.º/3. Delas não é admissível recurso de revista: ver artigo 721.º/5.

Quando a lei diz que “podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final […]” significa isto que elas não podem ser impugnadas anteriormente?

Dir-se-ia que se for interposto recurso logo que a decisão seja proferida e com ele apresentadas as alegações, como a lei agora impõe (artigo 684.º-B/2), não devia considerar-se o recurso intempestivo.

70. A intempestividade valeria naturalmente para os casos em que o recurso é interposto para além do momento devido, mas não quando interposto antes desse momento. Certo é que, como já vimos, a impugnação de decisões interlocutórias não se confunde com recursos. A impugnação não tem autonomia. Não estamos face a um problema de intempestividade mas de pura rejeição.

71. Saliente-se que em bom rigor não há interposição de recursos das decisões interlocutórias não abrangidas pelo artigo 691.º/1 e 2, há tão somente impugnação das decisões interlocutórias com o recurso final. A impugnação não tem autonomia. Não é possível, por exemplo, desistir do recurso da decisão final mas não da “impugnação” da decisão interlocutória a não ser no caso particular referido no n.º 4 do artigo 691.º. A entender-se de forma diferente (permitindo-se a impugnabilidade em geral de decisões interlocutórias antes do momento a que se refere o artigo 691.º/3) vai-se o propósito simplificador da lei que é o de num só momento (o da interposição do recurso da decisão final) juntamente se impugnarem as decisões interlocutórios. Já vimos, porém, ser possível e conveniente que a impugnabilidade ocorra em momento anterior ao da decisão final tal o caso de recurso da decisão proferida no despacho saneador que decida de algum ou alguns dos pedidos e que julgue improcedente excepção suscitada: estamos, no entanto, face a situação excepcional.

— Decisão interlocutória e caso julgado

72. As decisões interlocutórias que não sejam passíveis de apelação não transitam em julgado até ao momento em que podem ser impugnadas nos termos do n.º 3 do artigo 691.º. Das outras decisões de que cabe recurso de apelação, o trânsito em julgado verifica-se decorrido o prazo de interposição de recurso. O regime de preclusão respeitante às nulidades que não foram objecto de reclamação e que não são do conhecimento oficioso continua a valer.(19)

— Junção de documentos e pareceres

73. No que respeita a junção de documentos e pareceres introduziu a lei algumas alterações.

74. É omisso o preceito (artigo 693.º-B) sobre o momento em que podem ser juntos os pareceres dos advogados, professores ou técnicos; na 1.ª instância — diz o artigo 525.º — podem ser juntos em qualquer estado do processo; até aos vistos dos juízes (ver anterior artigo 706.º/2 do C.P.C.) podiam ser juntos os pareceres de advogados, professores ou técnicos. Ao relator continua a competir autorizar ou recusar a junção de documentos e pareceres (artigo 700.º, alínea e)).

Podem estes ser juntos com as alegações e com as reclamações que incidam sobre decisões do relator visando precisamente evidenciar razões de discordância de tais decisões.

A partir do momento em que haja decisão a admitir o recurso não parece que os pareceres atinentes às questões tratadas no recurso sejam admissíveis até porque se entra na fase de preparação da decisão.

75. A junção de documentos “nos casos previstos nas alíneas a) a g) e i) a n) do n.º 2 do artigo 691.º” é admissível fora do condicionalismo a que se refere a 1.ª parte do preceito?

Para CARDONA FERREIRA(20) fica ressalvado o alcance do artigo 524.º”, ou seja, tem de se verificar superveniência. ABRANTES GERALDES(21) considera que, apesar de não se encontrar na nota preambular justificação para esta ampliação, a solução traduz uma atenuação da anterior rigidez do regime de apresentação de documentos previsto no artigo 706.º, ora revogado, e a ampliação dos poderes da Relação no que concerne à apreciação da matéria de facto”.

Julgamento do recurso

— Reclamação para a conferência da decisão que não admite recurso

76. Não há reclamação para a conferência da decisão do relator tratando-se de decisão deste que não admita recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça: ver artigo 700.º/3. Mas já há reclamação para a conferência da decisão do relator que apreciou a reclamação incidente sobre decisão que, na 1.ª instância, não admitiu o recurso. A reclamação é objecto de decisão do relator (artigo 688.º/4) e das decisões do relator, que não sejam de mero expediente, a parte prejudicada pode requerer a sua submissão à conferência para prolação de acórdão (artigo 700.º/3). Estão excluídos os casos em que da decisão do relator cabe reclamação para o tribunal competente para conhecer do recurso, ou seja, os despachos do relator que não admitam o recurso interposto da decisão da própria Relação, tal o sentido da ressalva inicial constante do artigo 700.º/3 “salvo o disposto no artigo 688.º”(22)

77. Pergunta-se: é admissível recurso da conferência que confirme a decisão do relator de não admissibilidade do recurso? E daquela que revogue a decisão do relator considerando o recurso admissível? CARDONA FERREIRA(23) considera inadmissível o recurso porque a impugnabilidade se faz pela via da reclamação. ABRANTES GERALDES(24) defende igualmente a inadmissibilidade de recurso para o Supremo do acórdão em conferência que se pronuncia sobre a questão da admissibilidade ou não admissibilidade do recurso interposto por ficar a decisão a coberto do caso julgado formal.

78. A ser assim, ficam de fora muitas questões de particular relevância (v.g. não admissão de recurso por se entender que o recorrente não é pessoa directa e efectivamente prejudicada pela decisão—ver artigo 680.º/2—ou que a decisão não admite recurso).

79. Estamos, no entanto, face a uma decisão que, quando não admite o recurso, põe termo ao processo e, para o que aqui importa, passível de ser proferida num processo com alçada superior à da Relação; não prescreve a lei, contrariamente ao que sucedia anteriormente no que respeita à decisão do presidente do tribunal superior, a inimpugnabilidade da decisão. Mas não se trata apenas da inimpugnabilidade. Admita-se que o relator, na sequência de reclamação, não admitiu o recurso, mas a conferência entendeu diversamente.

80. No regime anterior, o artigo 756.º do C.P.C. prescrevia a subida imediata, nos autos vindos de 1.ª instância dos agravos interpostos dos acórdãos da Relação que conhecessem ou se abstivessem de conhecer do objecto do recurso interposto. O alcance deste preceito estava limitado, é certo, pelo disposto no artigo 754.º do C.P.C. No entanto, não estava excluída a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal ao abrigo da excepção constante do artigo 754.º/3 do C.P.C. que admitia o recurso da decisão que pusesse termo ao processo (artigo 754.º/3 conjugado com o artigo 734.º/1, alínea a) do C.P.C.): admita-se que a Relação em conferência lavrava acórdão decidindo não tomar conhecimento da apelação. Deste acórdão cabia agravo.

Agravando-se, o agravo subia imediatamente nos autos de apelação. Subia imediatamente porquê? Porque o acórdão de que se agrava pôs termo ao processo que pendia na Relação. ALBERTO DOS REIS formulava a seguinte regra: “sobem imediatamente os agravos interpostos de acórdãos que puseram termo ao processo em que foram proferidos”(25).

81. O acórdão em conferência no Tribunal da Relação que não conheça do recurso interposto pode ser proferido na sequência de reclamação sobre idêntica decisão proferida pelo juiz do tribunal recorrido; pode também resultar do entendimento contrário do relator relativamente ao despacho do juiz do tribunal recorrido que admitiu o recurso. Neste último caso estamos diante de acórdão proferido na pendência de processo na Relação e igual entendimento nos parece de seguir relativamente ao acórdão proferido na sequência de reclamação pois não se vê razão para distinguir os casos considerando que em ambos se põe termo ao processo na Relação.

82. Ora, não sendo possível a revista pois o Tribunal da Relação não admitiu os recursos interpostos, a decisão proferida em conferência que considera o recurso não admissível não encontra fundamento de recorribilidade no artigo 721.º/1/2/3/5. De facto, os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação apenas podem ser impugnados no recurso de revista que venha a ser interposto nos termos do n.º 1 (artigo 721.º/2) e tal não é o caso pois a decisão proferida exclui precisamente a possibilidade de conhecimento da apelação e, por via desta, da eventual revista.

83. Quanto ao n.º 4 do artigo 721.º, que admite a impugnação de acórdãos proferidos na pendência de processo na Relação, caso tenham interesse para o recorrente independentemente daquela decisão, pressupõe expressamente o preceito que não haja ou não seja admissível recurso de revista das decisões previstas no n.º 1. Pressupõe-se a prolação de acórdão proferido ao abrigo da decisão do tribunal de 1.ª instância que pôs termo ao processo ou que, sem pôr termo ao processo, decidiu do mérito da causa (artigo 691.º/1 e 2 alínea h)) e do qual não foi interposto ou não é admissível a interposição de recurso e tal não é igualmente o caso do acórdão da Relação que considera inadmissível a apelação.

84. Não é igualmente admissível revista excepcional com base em contradição de acórdãos da Relação pois a revista excepcional pressupõe a prolação de acórdão da Relação sobre a decisão proferida na 1.ª instância (artigos 721.º/3 e 721.º-A/1) e o acórdão da Relação é proferido sobre decisão do relator sempre autónoma em relação à decisão de 1.ª instância tanto a que admite como a que não admite o recurso; decisão autónoma ou independente visto que a decisão que admite o recurso não vincula o tribunal superior nem pode ser impugnada pelas partes (artigo 685.º-C/5).

85. Prescreve, é certo, o artigo 721.º/2, alínea b) que os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação não carecem de ser impugnados no recurso de revista que venha a ser interposto quando a impugnação com o recurso de revista seja absolutamente inútil. Certo é, porém, que este preceito pressupõe a possibilidade de recurso de revista e, no caso, trata-se de nem sequer admitir o recurso de apelação. O caso não é de inutilidade de impugnação com a revista, mas de inviabilidade da própria revista.

86. Tratando-se de acórdão em sentido contrário, ou seja, acórdão que admite o recurso que primeiramente fora rejeitado, a decisão da Relação tem natureza interlocutória e, assim sendo, é impugnável no recurso de revista nos termos do artigo 721.º/2.

— Intervenção dos juízes por antiguidade

87. Na decisão do recurso “intervêm pela sua ordem, os juízes seguintes ao relator” — dizia o anterior n.º 2 do artigo 700.º; prescreve agora “intervêm, pela ordem de antiguidade no tribunal, os juízes seguintes ao relator” o que parece inculcar a ideia de que se trata da ordem de antiguidade dos juízes no Tribunal onde exercem funções. Ora, como salienta CARDONA FERREIRA(26), “a antiguidade de que, aqui, se fala nada tem a ver com o tempo de permanência no Tribunal. Decorre, sim, da graduação enquanto juízes e no âmbito da respectiva Secção. Tratar-se-á do relator e de outros dois juízes (cf. artigo 707.º) que são os que o seguem, em antiguidade (precedência de graduação) na respectiva Secção daquele Tribunal”.

Recurso de revista

— Âmbito da revista

88. A revista para o Supremo passa a admitir-se, em regra, quer nas decisões de mérito quer nas decisões exclusivamente processuais; importa, para a admissibilidade, atender-se ao valor da causa (artigo 678.º/1) salvo naqueles casos em que o recurso é admissível independentemente do valor da causa e da sucumbência.

89. Os acórdãos interlocutórios proferidos na Relação são impugnáveis no recurso de revista a interpor do acórdão da Relação que põe termo ao processo (artigo 721.º/2), situação similar às decisões interlocutórias proferidas na 1.ª instância que, nos termos do n.º 3 do artigo 691.º, são impugnáveis no recurso que venha a ser interposto da decisão final.

90. Esta regra tem excepções: os acórdãos proferidos sobre incompetência relativa da Relação e aqueles cuja impugnação com o recurso de revista seria absolutamente inútil. Estes casos correspondem àqueles agravos que o anterior artigo 757.º/2 do C.P.C. mandava subir imediatamente e em separado e que eram os agravos interpostos de acórdãos proferidos sobre incompetência relativa e aqueles cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis. Sobem agora, mas como revista, imediatamente e em separado conforme resulta do disposto no artigo 722.º-A/2 e com efeito devolutivo porque o recurso de revista só tem efeito suspensivo em questões sobre o estado das pessoas.

91. Além das referidas excepções, a lei introduziu uma cláusula geral permitindo a subida imediata de recursos interlocutórios de decisões proferidas nos autos pendentes na Relação nos “demais casos expressamente previstos na lei” (artigo 721.º/2, alínea c)).

— Dupla conforme

92. Para além da limitação à admissibilidade fundada no valor, a lei não admite revista do acórdão unânime confirmatório de decisão de 1.ª instância. A regra não fica afastada, limitando-se a divergência à fundamentação. E, claro, tanto importa que a decisão seja de ordem processual como de ordem substantiva: a regra vale quanto a ambas. O preceito tem em vista os casos em que há confirmação de decisão de 1.ª instância: dupla conforme quanto à decisão.

93. Pergunta-se: releva o facto estrito da mera confirmação da decisão (“nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida”, fórmula usualmente empregue pelos tribunais) ou a confirmação há-de estender-se aos fundamentos?

Da letra da lei resulta inequivocamente que é indiferente que a decisão seja confirmada por fundamento diferente. O que importa é que haja confirmação da decisão.

94. E se a Relação confirmar a decisão por fundamento novo porque a decisão recorrida incorreu em nulidade por não ter especificado os fundamentos de direito (artigo 668.º/1, alínea b))? Para que o fundamento seja diferente — dir-se-á — algum fundamento tem de existir. E se os fundamentos estiverem em oposição com a decisão mas a Relação, não obstante a nulidade, confirmar a decisão considerando que a contradição não tem reflexos na decisão da causa (artigo 668.º/1, alínea c))? E se o Tribunal incorreu em omissão de pronúncia, isto é, o juiz deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar (artigo 668.º/1, alínea d))?

Em todos estes casos, a lei prescreve que o tribunal, ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, deve conhecer do objecto da apelação (artigo 715.º/1). Ora desde que a decisão seja confirmatória não se vê razão para introduzir restrições considerando diferentes os casos em que o Tribunal de recurso afastou algum ou alguns dos fundamentos invocados daqueles outros em que o tribunal de recurso avançou pela primeira vez com nova fundamentação porque a decisão recorrida omitiu fundamentação, total ou parcialmente. O fundamento não deixa de ser em qualquer das circunstâncias um novo fundamento, diferente dos fundamentos invocados, se os houve, ou como tal considerado pela primeira vez porque a decisão omitiu razões de direito.

95. Estamos a empregar o vocábulo “fundamentação” em sentido equivalente ao de “argumentação”. Novas razões ou novos argumentos de direito não afastam a regra da dupla conforme. E novas questões? A omissão de pronúncia não se verifica porque o tribunal omitiu razões no discurso argumentativo que fundamenta a decisão; ela dá-se porque o tribunal omitiu pronúncia sobre uma questão. Pode verificar-se inclusivamente o caso de a decisão recorrida não ter incorrido em omissão de pronúncia, mas o Tribunal de recurso tratar de uma questão nova pela primeira vez. O exemplo mais frequente é o abuso do direito. Admita-se que a decisão recorrida negou provimento à acção considerando que ao autor não assiste razão pois os factos provados não permitem preencher a previsão legal pelas razões x, y e z. O Tribunal da Relação entende o contrário: as razões x, y e z não são aceitáveis, traduzem erro de interpretação das normas. A acção devia, portanto, proceder. No entanto, assim se não deve entender porque a procedência da acção constituiria abuso do direito, atentos outros factos provados: questão nova, de conhecimento oficioso. A decisão é, portanto, confirmada.

96. Ora parece-nos que é substancialmente diferente o caso em que o Tribunal da Relação confirma uma decisão ainda que discorde de algum ou mesmo de todos os argumentos apresentados, mas situando-se dentro do âmbito da questão que lhe foi suscitada e sobre a qual as partes tiveram ao longo do processo a possibilidade de pensar e avançar as razões que importam à resolução dessa questão, do caso em que ex novo se verifica o tratamento de uma determinada questão. Não estaremos obviamente nunca face a uma decisão surpresa porque em tais circunstâncias o Tribunal deve ouvir as partes antes de se pronunciar (artigo 3.º/3) mas há, a nosso ver, uma acentuada diferença entre o aviso que o Tribunal dirige às partes referindo-lhes que irá tratar, na decisão, de questão que, como tal, não foi tratada pelas partes nos autos e as situações em que houve, uma vez definida a questão, ao longo do processo, possibilidade de discussão argumentativa.

A questão nova tem sempre de se alicerçar em factos alegados e, por isso, a questão nova não é mais do que uma questão que não foi tomada em consideração pelas partes. Ela dimana da realidade material que as partes trouxeram aos autos, mas que não foi tratada com autonomia conceptual pelas partes. Por isso, nos parece que os casos em que o Tribunal de recurso conhece oficiosamente de questão nova que não foi tratada nos autos devem considerar-se excluídos da dupla conforme.

97. As razões que valem para os casos de omissão de pronúncia valem para os casos em que o Tribunal não tratou de determinada questão por considerá-la prejudicada (artigo 715.º/2). Não há aqui razão para exclusão da dupla conforme: as partes, definida a questão, puderam ao longo dos autos evidenciar toda a gama argumentativa que importava; não há, portanto, uma questão a emergir oficiosamente no momento prévio à decisão definitiva.

— Revista excepcional: excepção ao regime da dupla conforme

98. A revista excepcional justifica-se para aqueles casos em que, não existindo obstáculo em razão do valor para interposição de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, se pretende retomar a regra geral (admissibilidade do recurso atento o seu valor) afastando-se a excepção que consta do n.º 3 do artigo 721.º (dupla conforme).

99. A revista excepcional já não se aplica, segundo nos parece, para os casos em que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça já era inadmissível porque a lei o proibia expressamente (por exemplo: inadmissibilidade das resoluções proferidas em processo de jurisdição voluntária segundo critérios de oportunidade ou de conveniência: artigo 1411.º/2; decisões proferidas nos procedimentos cautelares: artigo 387.º-A; decisões incidentes sobre matéria de facto: artigo 712.º/6).

100. Dir-se-á que as razões invocadas neste preceito deviam constituir cláusulas de admissibilidade de recurso para se assegurar coerência de jurisprudência (caso de contradição entre o acórdão da Relação e acórdão proferido por outra Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça) e para se proporcionar ao Supremo Tribunal de Justiça a sua intervenção sempre que esteja em causa questão com relevância jurídica “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” ou “interesses de particular relevância social”. No entanto, para que assim fosse, impor-se-ia sempre a admissibilidade de recurso por essas mesmas razões das sentenças proferidas em 1.ª instância para o Tribunal da Relação e isso não sucede: estes não constituem casos de recurso obrigatório, sendo-o apenas aqueles que estão contemplados no artigo 678.º, designadamente as “decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça” (artigo 678.º/2, alínea c)). Ora isto demonstra que a lei não quis introduzir uma regime recursório em que se proporcionasse sempre a possibilidade de recurso constatada que fosse a contradição de uma decisão com outra decisão da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça ou mesmo, para se ir ainda mais longe, entre decisões de 1.ª instância.

Lisboa, Janeiro de 2008


Notas:
(*) Juiz Desembargador.
(**) Advogado.

02/06/2025 19:01:30