Parecer N.º 15/PP/2008-G

I – INTRODUÇÃO

Por requerimento entrado nos serviços do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, veio a Sra. Dra. X solicitar pronúncia desse Conselho.

Segundo informa a requerente, celebrou com uma Instituição Financeira de Crédito, S.A., um contrato de trabalho a termo (actualmente sem termo) que anexou.

Mais informa que a entidade empregadora veio recentemente solicitar-lhe a prática de actos de reconhecimento e de certificação que, no entender daquela Sra. Advogada, são da competência exclusiva dos Advogados.

Então a consulente comunicou à entidade empregadora que o contrato de trabalho em vigor entre as partes não lhe permitia o exercício dessas funções, uma vez que o mesmo não tem por objecto a prática de advocacia.

Veio então o Banco propor um aditamento ao contrato, de que está junta cópia, estendendo as funções laborais daquela Advogada à prática de actos de reconhecimento e de certificação de fotocópias.

Dado o exposto, a Sr.ª Advogada pretende saber se:

A. É possível e legal a prática de actos de certificação e reconhecimento, ou outros, no âmbito do aditamento contratual que lhe foi proposto?

B. O contrato de trabalho com o aditamento proposto, para prestação da actividade profissional como Advogada, está de acordo com as normas deontológicas?

C. É possível prestar estas funções no âmbito de um contrato de trabalho com o aditamento indicado?

D. É possível o pagamento destas novas funções ser um subsídio ou terá de estar integrado no ordenado uma vez que irá actuar como Advogada da empresa?

E. Com o aditamento proposto é possível de futuro realizar outras funções de Advogada, além do reconhecimento e certificação, no âmbito deste contrato de trabalho?


II – DA COMPETÊNCIA

O Conselho Distrital de Lisboa considerou que a questão, por versar sobre a validade das cláusulas de um contrato de trabalho, era da competência do Conselho Geral, argumentando nos seguintes termos:

«É um facto indesmentível que o art. 68° do EOA admite que a Advocacia seja prestada em regime de contrato, nomeadamente, de trabalho. Mas tal apenas poderá acontecer desde que o contrato não contenda com os princípios deontológicos decorrentes da profissão (em particular com os princípios da independência e isenção). Contudo, também decorre do mesmo preceito, que o órgão competente para aferir, sob a forma de parecer, sobre a validade das cláusulas é o Conselho Geral e não o Conselho Distrital.

Ora, o pedido de consulta apresentado tem como âmbito de análise, precisamente, a questão da apreciação da conformidade do contrato de trabalho e projecto de aditamento proposto, com as regras deontológicas que norteiam a Advocacia. Nesta medida não poderá ser objecto de decisão por este Conselho Distrital de Lisboa, devendo ser, em consequência, remetido ao órgão competente - Conselho Geral da Ordem dos Advogados - , a fim de que este, e em conformidade com o estipulado nos artigos do EOA proceda à emissão de parecer sobre as questões solicitadas.»

Também o Jurista deste CG, Dr. Nuno Lucas, tomando posição relativamente à questão da competência no seu parecer de 07.05.2008, veio sustentar que o CDL procedeu correctamente ao determinar a remessa para o CG do requerimento apresentado, para emissão de Parecer.

As razões apresentadas convencem. Com efeito,

«Face ao disposto no citado artigo, que a seguir se transcreve, não suscita grandes dúvidas a competência do CG para emitir parecer sobre a questão colocada, pelo que, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 34.0 ex vi n. o 1, e alínea b) do nº 2, do artigo 2. o, ambos do CPA, procedeu correctamente o CDL ao determinar a remessa do requerimento apresentado para o CG:

(…)

«Com efeito, pese embora que dos nºs 3, 4 e 5, do art. 76.0 do EDA, resulte que o Conselho Distrital "... que for o competente “ também tem competência para apreciar "a validade das estipulações contratuais" que possam afectar "a isenção e independência do advogado ou que, de algum modo, violem os princípios deontológicos da profissão ..." a existir um eventual conflito positivo de competência, este seria resolvido a favor do CG, uma vez que o art. 68.0 atribui claramente e expressamente esta competência ao CG, enquanto que o art. 76.° refere uma partilha de competências entre o CG e os CDs, sem clarificar qual o critério de repartição destas competências.

Relacionado com o objecto da consulta em apreço poderão consultar-se os seguintes Pareceres:n.º 47/2006, de 3 de Janeiro de 2007 e n.º 28/2002, de 26 de Fevereiro de 2003 (emitido na vigência do EOAI2001), ambos emitidos pelo CDL e disponíveis em http://jurisprudencia.oa.pt.»

Face ao exposto, as questões postas impõem a emissão de Parecer pelo Conselho Geral, o que se fará de seguida.


III – RESPOSTA

O Conselho Distrital, no parecer que antecede, adiantou qual seria a sua posição quanto à questão de fundo, fazendo-o nos seguintes termos (sublinhados nossos):

«Sempre se dirá contudo que, estando em causa a prática de actos de reconhecimentos de assinaturas e autenticação e tradução de documentos, apenas poderão ser os mesmos praticados por Advogado. É que, decorre do art. 38° do Decreto-Lei nº 76-Aj2006 de 29 de Maio, que aquela categoria de actos encontra-se reservada aos Advogados, bem como a outras entidades e profissões, previstas na lei. Como tal, a prática destes actos, em favor e no interesse de terceiros, por entidades não habilitadas por lei para o efeito (mesmo que através de Advogados contratados) constitui prática ilegal»

Vejamos.

A) RECONHECIMENTOS DE ASSINATURAS E AUTENTICAÇÃO DE DOCUMENTOS POR ADVOGADOS: REGIME LEGAL

O Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de Março veio introduzir no ordenamento jurídico mecanismos de simplificação na certificação de actos, admitindo formas alternativas de atribuição de valor probatório a documentos.

Este diploma atribuiu, nomeadamente, aos advogados e aos solicitadores competência para certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais que lhes sejam apresentados para esse fim e ainda proceder à extracção de fotocópias dos originais que lhes sejam apresentados para certificação, adquirindo essas fotocópias o valor probatório dos originais – cf. n.ºs 1, 2, 3 e 5 do artigo 1º.

Posteriormente, e ainda com o objectivo de introduzir formas alternativas de atribuição de valor probatório aos documentos, foi publicado o Decreto-Lei n.º 237/2001, de 30 de Agosto.

Este diploma, por sua vez, veio permitir aos advogados e aos solicitadores fazer reconhecimentos com menções especiais, por semelhança e ainda certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos – cf. artigos 5º, acrescentando o artigo 6º que os reconhecimentos e traduções efectuados nestes termos conferem aos documentos a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial.

Com o mesmo objectivo, foi publicado o Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março que atribuiu aos advogados e aos solicitadores competência para poderem fazer reconhecimentos de quaisquer espécies, simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, bem como, para a autenticação de documentos particulares, acrescentando o n.º 2 do artigo 38º que os actos efectuados nestes termos conferem aos documentos a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial.

Em síntese, as competências notariais agora igualmente atribuídas aos advogados e aos solicitadores são as seguintes:

a. Certificar a conformidade de fotocópias com os documentos originais apresentados e proceder à extracção das mesmas para esse efeito.
b. Fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais ou por semelhança.
c. Autenticar documentos particulares.
d. Certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos.

Como é sabido, estas competências estavam anteriormente reservadas aos notários – cf. alíneas c), f) e g) do n.º 2 do artigo 4º do Código do Notariado.

A solicitação do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, o Dr. Luís Menezes Leitão emitiu em 7 de Janeiro de 2007 um douto parecer sobre a autenticação, certificação e reconhecimento de assinaturas praticado por advogado face ao disposto no Decreto-Lei nº 76-A/2006.

Nesse parecer o Dr. Luís Menezes Leitão esclarece com rigor o regime legal aplicável, em termos que julgamos de sufragar. Mas examinemos sucessivamente estas competências:

«Em relação à certificação de fotocópias ela abrange a conferência de fotocópias, prevista no art. 171º-A do Código do Notariado, mas não os certificados, referidos nos arts. 161º e ss. CN, nem as certidões extraídas dos instrumentos, registos e documentos arquivados nos cartórios.

«Efectivamente, aos advogados não foram atribuídas as competências notariais previstas nas alíneas d) e e), nem a da primeira parte da alínea g) do art. 4º CN, pelo que não podem certificar factos que tenham verificado, nem passar certidões de documentos em relação a um arquivo que organizem, uma vez que a lei não lhes atribuiu essas funções notariais.

«Através da certificação de fotocópias, os advogados conferem às mesmas a mesma força probatória resultante do documento original.

«Em relação à feitura dos reconhecimentos, destina-se a mesma a atribuir aos documentos a eficácia e força probatória estabelecida nos arts. 374º a 376º do Código Civil, que anteriormente estava dependente de intervenção notarial.

«Conforme o D.L. 76-A/2006, de 29 de Março, todo e qualquer reconhecimento pode agora vir a ser feito pelo advogado, independentemente de ser simples ou com menções especiais, presencial ou por semelhança, desde que sejam cumpridos os requisitos previstos nos arts. 153º e ss., do Código do Notariado e realizado o registo informático previsto na Portaria 657-B/2006, de 29 de Junho.

«Em relação à autenticação de documentos particulares, trata-se da competência anteriormente atribuída ao notário pelo art. 363º, nº3, do Código Civil, que permite atribuir ao documento, nos termos do art. 377º do mesmo Código "a força probatória dos documentos autênticos, ainda que não os substituam quando a lei exija documento desta natureza para a validade do acto".

«O processo de autenticação dos documentos particulares encontra-se disciplinado nos arts. 150º e ss. do Código do Notariado, exigindo-se assim que as partes confirmem o seu conteúdo perante o advogado (art. 150º, nº1, CN), o qual deve lavrar termo de autenticação (art. 150º, nº2, CN), o qual obedece aos requisitos previstos nos arts. 150º e 151º CN, devendo ainda ser efectuado o registo informático previsto na Portaria 657-B/2006, de 29 de Junho.

«Finalmente, compete ao advogado certificar, ou fazer e certificar, traduções, as quais devem obedecer aos requisitos previstos nos arts. 172º e ss., do Código do Notariado, cabendo-lhe também fazer o registo destes actos no referido sistema informático.».

B) CASO CONCRETO

Uma vez recapitulado o regime legal, é chegado o momento de responder à questão central posta pela Srª Advogada.

A saber, se é legal -- e/ou está de acordo com as normas deontológicas que regem a advocacia -- a prática por um Advogado dos actos referidos (de certificação da conformidade de fotocópias com os documentos originais, ou outros, tais como reconhecimento de assinaturas, ou autenticação de documentos particulares, ou certificação de traduções de documentos), caso tais actos sejam praticados no âmbito de um contrato de trabalho subordinado entre esse Advogado e determinada instituição bancária, e prestados no interesse e/ou por ordem desta.

Desde já antecipamos uma resposta negativa. Tais actos, em nosso entender, só podem ser praticados por Advogados no âmbito da sua actividade liberal, e nunca no âmbito de uma relação subordinada. Vejamos porquê.

a) Actos próprios de advogado?

A primeira averiguação a fazer consiste em tentar “situar” este tipo de actos relativamente aos actos que tradicionalmente constituem o escopo da advocacia. Será que integram o núcleo essencial de funções que caracteriza a profissão de advogado?

Nos termos do artº 1º, nºs 5 a 9 da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto – para que remete o artº 61 nº 1 do actual Estatuto da Ordem -- os actos próprios dos advogados são os seguintes:

«(…)
5 - Sem prejuízo do disposto nas leis de processo, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores:
a) O exercício do mandato forense;
b) A consulta jurídica.
6 - São ainda actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes:
a) A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais;
b) A negociação tendente à cobrança de créditos;
c) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários.
7 - Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.
8 - Para os efeitos do disposto no número anterior, não se consideram praticados no interesse de terceiros os actos praticados pelos representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, nessa qualidade, salvo se, no caso da cobrança de dívidas, esta constituir o objecto ou actividade principal destas pessoas.
9 - São também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade»

Por aqui se vê que a autenticação ou certificação de documentos e/ou o reconhecimento de assinaturas, não obstante serem actos que hoje já podem ser praticados por advogado, não integram o núcleo essencial de funções que tradicionalmente caracterizam a sua profissão. Tanto assim que não figuram entre os “actos próprios” dos advogados, acima elencados.

Dito por outras palavras, «a faculdade atribuída aos advogados de efectuar reconhecimentos por semelhança com menções especiais é meramente instrumental da sua função de advogado. A função do advogado é distinta da função notarial» (cfr. parecer aprovado em sessão do Conselho Geral de 17 de Dezembro de 2004 - Relator: Jaime Medeiros).

b) Garantia de fé pública notarial

Como é sabido, até há bem pouco tempo tais actos foram apanágio exclusivo dos tabeliães (primeiramente) e dos notários (mais tarde) munidos da independência que lhes conferia e confere o seu estatuto.

Ora, como veremos, historicamente os notários foram sempre ou funcionários públicos ou profissionais liberais. Nunca trabalhadores por contra de outrem mediante contrato de trabalho subordinado. O que se compreende facilmente.

Nos países de notariado latino, o sistema jurídico caracteriza-se, basicamente, por ser de justiça preventiva, em que o Estado intervém logo aquando da titulação dos negócios jurídicos. Fá-lo através do oficial público que é o Notário, que, como delegatário que é da Fé Pública do Estado, confere autenticidade aos documentos que elabora e aos actos que pratica ou em que intervém.

Só no final do século XIX foi o tabelionato substituído, no nosso país, pelo notariado moderno, função pública exercida por juristas especializados, então profissionais liberais.

Em 1949, os notários portugueses passaram a ser funcionários públicos, quer quanto à função, quer quanto à relação jurídico-laboral, uma vez que passaram a exercer a sua actividade como funcionários do Estado e por este remunerados, embora em moldes significativamente diferentes da generalidade dos funcionários públicos.

O primeiro diploma legislativo que consagrava a liberalização do notariado português foi aprovado em 1995,mas foi objecto de veto presidencial.

O Governo seguinte voltou a consagrar a privatização do notariado como um das reformas a concretizar, tendo sido constituída para o efeito uma comissão ad hoc, presidida pelo Prof. João Caupers, de cujos trabalhos resultou um pacote legislativo que acabou por ser aprovado em 1999 pela Assembleia da República, na generalidade.

O caminho da privatização e da modernização do notariado foi retomado pelo Governo Português, com o pacote legislativo publicado em 2004, mormente os Decretos-Leis n.º 26/2004 e n.º 27/2004, ambos de 4 de Fevereiro, que aprovam, respectivamente, o Estatuto do Notariado e o Estatuto da Ordem dos Notários, nos quais o Estado Português deu expressão legal à reforma e à modernização do notariado português, convidando os notários a trocar o funcionalismo público pela iniciativa privada.

Em 2005, e de um momento para o outro, Portugal passou, assim, com os primeiros notários profissionais liberais, a dispor de um notariado moderno e eficaz, com uma total capacidade de resposta às necessidades dos cidadãos e das empresas, em que a tradicional e gasta relação funcionário público/utente deu lugar à relação prestador de serviço/cliente.

Mas mesmo sendo profissional liberal, o notário só tem razão de existir porque é um oficial público que representa o Estado e, em nome deste, assegura o controlo da legalidade, conforma a vontade das partes à lei e dá garantia de autenticidade aos actos em que intervém, como delegatário da fé pública – a qual é uma prerrogativa exclusiva do Estado.

A modernidade e o desenvolvimento tecnológico, bem como o uso dos meios que são proporcionados por essa via, não são incompatíveis com a preservação das mais profundas tradições jurídicas – da segurança tabelionar-- de que o notariado e os notários são exemplos.

Bem pelo contrário, a segurança jurídica que os notários garantem é, agora mais que nunca, um valor essencial à tranquilidade das transacções imobiliárias e do comércio jurídico em geral.

Actuando de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados, o notário – simultaneamente, oficial público pelas funções públicas que exerce e profissional liberal pela forma como presta o seu serviço – confere autenticidade aos documentos, para além de dar forma legal à vontade das partes, conformar a vontade das partes à da lei e, finalmente, controlar e assegurara legalidade.

Não é pois por mero acaso – mas por manifestas razões de segurança jurídica -- que os notários, historicamente, nunca foram trabalhadores por contra de outrem mediante contrato de trabalho subordinado, mas sempre foram funcionários públicos ou profissionais liberais.

Sendo assim, a ratio inspiradora e a disciplina que deverá nortear a prática de tais actos por Advogados deverá buscar-se não apenas, nem tanto, nas regras da advocacia mas também, e sobretudo, nas regras que disciplinam a prática desses actos pelos “notários”.

Tanto assim que ao investir os Advogados em certos actos típicos da função notarial o legislador teve o cuidado de lhes mandar aplicar a disciplina da lei notarial.

Desde logo o art. 38º, nº 1, do DL 76-A/2006, de 29/Março, no que tange aos impedimentos do advogado em relação aos actos notariais que tem competência para praticar, dispõe que:

“…os advogados …podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial,...”.
Sublinhámos “nos termos previstos na lei notarial” para evidenciar que o regime jurídico dos actos notariais dos advogados está sujeito à disciplina da lei notarial, nomeadamente o Código do Notariado.

Ora, se a lei só concebe que notários desempenhem as suas funções apenas enquanto funcionários públicos ou como profissionais liberais, não faria sentido que essas mesmas actividades de autenticação, de certificação e/ou de reconhecimento pudessem ser exercidas pelos advogados no âmbito de um contrato de trabalho subordinado.

De outra forma dar-se-ia azo a um sistema incongruente, que deixaria entrar pela janela o perigo que quis deixar ficar à porta.

Afinal, é essa mesma segurança jurídica que deve continuar a ser acautelada, independentemente da autenticação, da certificação de documentos ou do reconhecimento de assinaturas serem feitos por Notários ou por Advogados.

c) Numerus clausus

Chegaremos a uma solução com efeitos práticos semelhantes olhando agora a questão sob o prisma do numerus clausus aplicável às entidades com competência legal para certificar e reconhecer.

No caso concreto, importa antes de mais averiguar em nome de quem são praticados os actos de autenticação, certificação e/ou de reconhecimento: se em nome da advogada consulente, ou se em nome do Banco para quem trabalha.

Se os actos fossem praticados pela Advogada consulente enquanto profissional liberal, a resposta seria simples e mesmo intuitiva: nada obstaria legalmente a que a consulente os praticasse, visto que agiria sempre em nome próprio e exclusivamente sob a sua própria responsabilidade.

Mas já assim não será se a consulente os praticar no âmbito de uma relação laboral subordinada. A Advogada, aqui, age em nome, por conta e sob a responsabilidade da instituição bancária para a qual trabalha.

Ora, sendo tais actos praticados pela consulente enquanto empregada subordinada do Banco – o mesmo é dizer, por conta e sob as ordens, orientações e fiscalização deste – tal actividade é apenas imputável ao próprio Banco, que não à Advogada.

Tanto que a consulente, enquanto trabalhadora assalariada, não suporta qualquer risco económico independente. Esse risco é suportado pela instituição bancária, que por sua vez celebra contratos com clientes e lhes fornece serviços e outras prestações económicas.

Logo, tudo se passaria como se fosse o próprio Banco a exercer no mercado tal actividade de certificação ou autenticação. Ora isso não é possível, pois as leis que vimos referindo reservam tais actos a certas entidades, entre as quais não figuram os Bancos.

Como refere lucidamente o CDL,

« …decorre do art. 38° do Decreto-Lei nº 76-Aj2006 de 29 de Maio, que aquela categoria de actos encontra-se reservada aos Advogados, bem como a outras entidades e profissões, previstas na lei. Como tal, a prática destes actos, em favor e no interesse de terceiros, por entidades não habilitadas por lei para o efeito (mesmo que através de Advogados contratados) constitui prática ilegal» Resumindo e concluindo, estando em causa a prática de actos de reconhecimentos de assinaturas, de autenticação e de tradução de documentos, apenas poderão os mesmos ser praticados por Notário ou Advogado ou Solicitador (actuando estes em regime liberal). Mas nunca pelo próprio Banco (ainda que o faça através de Advogado para o efeito contratado em regime laboral).

d) Proibição de certificação pelo interessado no acto

Mas mesmo que o referido “numerus clausus” não excluísse os Bancos, outro obstáculo existiria a que o Banco praticasse actos de tal natureza (ainda que através da Advogada consulente).

Com efeito, é de presumir que uma parte substancial, se não a totalidade, das fotocópias que o Banco pretende mandar certificar á consulente, respeitem a documentos constantes de processos ou contratos em que o próprio Banco seja outorgante, beneficiário ou parte interessada, directa ou indirectamente (nomeadamente procurações, declarações, propostas, contratos, recibos, etc.).

Ora o citado art. 38º, nº 1, do DL 76-A/2006, de 29/Março dispõe que “…os advogados …podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notaria,...”.

Este diploma fixa o regime dos impedimentos nos seus artigos 5º e 6º, regime este que se aplica aos advogados sempre que praticam actos notariais ao abrigo da competência que lhes foi conferida por aquele art. 38º. E o nº 1 do art. 5º do Codº Not dispõe que:

“1- O notário não pode realizar actos em que sejam partes ou beneficiários, directos ou indirectos, quer ele próprio, quer o seu cônjuge ou qualquer parente ou afim na linha recta ou em 2º grau da linha colateral.”

Deste dispositivo legal resulta com clareza que a entidade a quem a lei tenha conferido poderes de reconhecimento ou certificação não pode realizar acto notarial de que seja parte ou beneficiária, directa ou indirectamente, isto por não estarem asseguradas as garantias mínimas de rigor, isenção e fidelidade.

Em sentido próximo do exposto, pronunciou-se o Ac.R. Évora, de 07-07-2005, em www.dgsi.pt , cujo sumário passamos a transcrever:

“1 – O advogado subscritor da petição inicial, mandatário do A. e representante dos seus interesses, não pode traduzir, ele próprio, documentos e a certificar a sua própria tradução, e destinados a fazer prova no processo que patrocina, por não estarem asseguradas as garantias mínimas de rigor, isenção e fidelidade.”

“2 – As limitações e incompatibilidades impostas aos notários, são aplicáveis, mutatis mutantis, à actividade de tradução e reconhecimento de documentos, exercida pelos Sr.s Advogados, nos termos do disposto nos arts. 5º nº1 e 6º do DL nº 237/01.”

Em conclusão, o Banco também não poderia ordenar à consulente que praticasse tais actos por força das regras que proíbem que a entidade que reconhece a assinatura, ou certifica a fotocópia e/ou traduz o documento, o faça em seu próprio interesse.

e) Independência do Advogado: funções de tipo notarial

E não se diga que para alcançar tal desiderato – existência de garantias mínimas de rigor, isenção e fidelidade -- bastará a outorga de autonomia técnica, da qual em princípio deve gozar qualquer Advogado mesmo que trabalhe por conta de outrem em regime de subordinação. Entendemos que isso não basta!

Tratando-se de funções notariais, propendemos neste caso que a independência tem de ser assegurada não do ponto de vista técnico mas também económico e jurídico, pois só assim se acautelará devidamente o relevante interesse público subjacente à fé pública que devem merecer a certificação dos documentos ou o reconhecimento das assinaturas.

A solução idêntica chegaremos olhando agora a questão sob o prisma das regras específicas da advocacia.

Como se pode ler no citado parecer do CDL de Lisboa, a quem a questão também foi colocada, um «dos princípios caracterizadores em que assenta a profissão reside precisamente na necessidade de independência técnico-profissional do Advogado, perante quaisquer tipos de poder e até mesmo quanto ao seu constituinte».

Aliás, e conforme logo se denota do teor do art. 84° do Estatuto da Ordem dos Advogados, «recai sobre os ombros do profissional forense um verdadeiro dever a tudo fazer para garantir, em quaisquer circunstâncias, a sua independência, estando, pois assim, obrigado a "agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulta dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros." Na génese de tal norma e exigência está a ideia de que apenas um Advogado livre, isento e independente, poderá cumprir as obrigações que a sociedade lhe exige a propósito da prossecução do objectivo último que é a defesa da Justiça.»

Como salienta lucidamente o seu autor, «para além de deveres, a lei estatutária em si consagra uma série de garantias conferidas ao Advogado e a toda a classe profissional, com a justa finalidade de evitar que a independência do profissional forense seja atingida ou afectada. Assim sucede, em particular no que concerne à problemática submetida à análise deste Conselho Distrital pela Sra. Advogada consulente, com a possibilidade do exercício da actividade em regime de subordinação.

É um facto indesmentível, salienta o parecer, que o art. 68° do EOA admite que a Advocacia seja prestada em regime de contrato, nomeadamente, de trabalho.
«Mas tal apenas poderá acontecer desde que o contrato não contenda com os princípios deontológicos decorrentes da profissão (em particular com os princípios da independência e isenção»..

Ora, parece evidente que a autenticação ou certificação de documentos e/ou o reconhecimento de assinaturas -- actos que hoje podem ser praticados tanto por notários como por advogados ou solicitadores -- têm que ser praticados por quem se encontre livre de qualquer subordinação, seja ela técnica, jurídica ou económica.

Por outras palavras, quando é chamado a certificar um documento, ou a reconhecer determinada assinatura, o Advogado não pode estar na situação de um empregado que recebe ordens ou instruções (entenda-se, do interessado ou beneficiário na autenticação ou na certificação). O mesmo se diga do notário ou do solicitador.

O Advogado tem que ser tão livre e independente como seria um Notário. Só assim estará o Advogado em condições de recusar a pretensão do interessado (de autenticação ou certificação de documentos e/ou o reconhecimento de assinaturas, etc.), isto se a mesma lhes suscitar a mais pequena dúvida.

Não é o que sucede no caso da consulente. Basta considerar que a entidade bancária empregadora, para assegurar o cumprimento das obrigações que impendem sobre todos os trabalhadores – entre os quais se inclui a consulente -- dispõe do poder directivo (de dar ordens, conformando a actividade do trabalhador -artº 150 CT), do poder regulamentar (elaborar normas internas regulamentadoras da organização e disciplina no trabalho - artº 153 CT) e do poder disciplinar (de assegurar que as suas ordens e regras são cumpridas - artº 365 e segs. do CT).

Este poder existe, note-se, em tudo o que respeite à organização do trabalho que é prestado na esfera jurídica da entidade patronal, sem excepção. Incluindo, portanto, a própria actividade de certificação e reconhecimento cometida à consulente.

O que está em causa, portanto, mais do que a independência e a liberdade do Advogado enquanto tal, é a independência e a liberdade de todos aqueles que forem chamados a certificar um documento ou a reconhecer uma assinatura, sejam eles notários, advogados ou solicitadores.

Nesta matéria, estão todos, sem excepção, exclusivamente sujeitos à prossecução do interesse público. Uns como outros devem agir com rigor, imparcialidade, isenção e fidelidade perante os cidadãos, o que só se consegue se todos forem jurídica e economicamente independentes do interessado no acto notarial e/ou do seu beneficiário.

Assim, e respondendo às questões postas, diremos, em síntese:

c. Não se afigura legal -- nem compatível com as normas deontológicas que regem a advocacia nem com as garantias mínimas de rigor, isenção e fidelidade que devem presidir aos actos notariais -- a prática pela consulente de actos de certificação da conformidade de fotocópias com os documentos originais (ou outros, tais como reconhecimento de assinaturas, ou autenticação de documentos particulares, ou certificação de traduções de documentos) posto que tais actos sejam praticados, como se pretende, no âmbito de um contrato de trabalho subordinado entre esse Advogado e a sua entidade patronal (ou no âmbito do aditamento contratual proposto à consulente),

d. Mas já nada obstará legalmente a que tais actos sejam praticados pela Consulente no âmbito de uma relação exclusivamente liberal, isto é, quando deixar de estar ligada ao Banco por qualquer relação de trabalho subordinado.

e. Ficam deste modo prejudicadas as respostas ás restantes questões.


Tal é, salvo melhor juízo, o nosso parecer.
Lisboa, 28.07.2008

O vogal do Conselho Geral
João Loff Barreto


Relator: João Loff Barreto

06/05/2025 18:13:08