Acórdão do CS, proc. N.º 155/2009

Sumário

A omissão de qualquer diligência de investigação da prática de ilícito disciplinar integra nulidade de falta de inquérito, causal da anulação do processado desde a acusação.

 

 

Decisão Recorrida

 

Acórdão do Conselho de Deontologia de … de 14.10.2008 que condenou o recorrente na pena de multa de € 1.500,00, por violação dos deveres consagrados nos art. 83º, nº1, 85º, nºs 1 e 2, al. f), 86º, al. b) e 96º, nº 1, al. b) do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei 15/2005) [fls. 61 a 66]

 

Objecto do recurso

 

A delimitação do objecto do recurso faz-se pelas conclusões da alegação de recurso que devem sintetizar os fundamentos da discordância da decisão recorrida, a indicação das normas violadas e o sentido em que deveriam ter sido aplicadas.

 

No recurso do participado [embora sem conclusões expressamente formuladas!...] suscitam-se questões relativas a (i) nulidade do acórdão, (ii) omissão de actividade investigatória, e (iii) prescrição da eventual responsabilidade disciplinar. [fls. 70 a 73]

Relatório sumário do processo

 

Em 04.01.2007 o presente processo disciplinar foi oficiosamente instaurado por despacho de vogal do Conselho de Deontologia de … proferido no uso de poderes delegados pela Senhora Presidente. [fls. 32]

Mostra-se [muito] deficientemente instruído, para não dizer não instruído.

Padece de vícios que o inquinam irremediavelmente e de que instrutor, relator e membros do Conselho de Deontologia, não se deram conta, como deviam.

Justifica-se por isso efectuar uma visita ao processado, habilitante do conhecimento.

 

Assim,

 

Por ofício de 03.01.2007, o Conselho Distrital de … remeteu ao Conselho de Deontologia cópia de um processo de nomeação do senhor advogado … para patrocinar, no âmbito de apoio judiciário, e na sequência de requerimento apresentado em 13.10.2003, … . [fls. 2 a 31]

A nomeação foi comunicada ao senhor advogado, à requerente e ao tribunal por ofícios de 11.11.2003, identificando-se o processo como sendo o com o n.º … do 2º Juízo, 1ª Secção do Tribunal Cível de …. [fls. 6 a 8]

Por ofício de 25.02.2004, o tribunal solicitou à Ordem dos Advogados informação sobre a data de notificação ao senhor advogado da “sua nomeação para intervir nos autos e que é executada … ”, informação que a Ordem não pode prestar, identificando-se o processo como sendo o com o n.º …  – embargos de executado – do 2º Juízo, 1ª Secção do Tribunal Cível de … , figurando como embargante a … . [fls. 9 e 11]

Por escrito de 10.05.2006 a requerente do patrocínio, alegando falta de resposta do participado, pedia a nomeação de “outro advogado, para retomar o prosseço de Execução Sumária”, perguntando-se, a concluir, “Será que no Cível foi feita alguma petição? Ou será que sumária é sumária e não tem apelo?”. [fls. 14 e 15]

Em 31.01.2007 foi ordenada, e em 14.02.2007 foi cumprida por carta, a notificação ao senhor advogado da decisão de instauração de processo disciplinar, e para exercício do direito de audição. [fls. 34 e 36]

Em 12.04.2007 foi – sem qualquer instrução – determinada a conclusão do processo a advogado instrutor “para elaboração de projecto de acusação, em apenso e por linha”. [fls. 37]

 Em 31.05.2007 foi elaborado projecto de acusação – sem concretização de qualquer facto – imputando ao senhor advogado a violação de deveres para com a comunidade e para com o cliente, projecto que mereceu a concordância, reprodução e homologação nos seus precisos termos, por despacho de 24.07.2007. [fls. 42 a 46]

Notificado, o arguido não apresentou defesa. [fls. 47 e ss.]

Em 02.03.2008 foi ordenada a conclusão ao senhor instrutor para elaboração de projecto de relatório final. [fls. 57]

Em 31.03.2008 foi elaborado projecto de relatório final. [fls 61 a 64]

Em 22.07.2008 foi proferido despacho a converter o projecto em relatório. [fls 65]

Em 14.10.2008 foi proferido o acórdão recorrido. [fls 66]

Em 13.11.2008 foi interposto recurso. [fls 70 a 73]

Em 05.05.2009 foi proferido despacho a admitir o recurso, ordenando-se a subida dos autos. [fls 75]

 

Mérito do recurso

 

Disse-se que a instrução do processo foi [muito] deficiente.

Concretizam-se as razões do entendimento, tendo presente que ao processo se aplica a disciplina estatutária consagrada na Lei 15/2005; art. 205º da Lei.

Assim,

 

Legislação aplicável

Nos termos do EOA aplicável, e com relevo para o caso em apreciação, cumpre recordar algumas proposições de natureza adjectiva.

No plano adjectivo ou processual, e entre outras proposições aplicáveis, dispõe o actual Estatuto da Ordem dos Advogados que 

- as normas do Código Penal, em matéria substantiva, e do Código de Processo Penal, em matéria adjectiva, são subsidiárias no exercício do poder disciplinar - art. 121º  -;

- o andamento da instrução do processo é regulado pelo relator - art. 146º, nº 1 -;

- a acusação deve conter os factos imputados e as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os mesmos foram praticados – art. 148, b) - ;

- o relatório final deve ser fundamentado, devendo dele constar os factos apurados, a sua qualificação e gravidade, a pena que entende dever ser aplicada ou a proposta de arquivamento dos autos – art.º 154º -.

 

Vícios da instrução

Analisado o processo surpreendem-se os clamorosos vícios.

 

Designadamente,

É nula a acusação por não conter as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos foram praticados.

Note-se que da leitura da acusação não se alcançam, vg, quais os actos praticados ou omitidos no exercício do mandato pelo senhor advogado recorrente, dirigindo-se toda a imputação para uma “falta de colaboração do arguido” que não respondeu às notificações que lhe foram remetidas…

… sem que se conheça norma que imponha como dever o de defesa!

 

Por opção da relatora não foram realizadas quaisquer diligências de prova, sequer a requisição em confiança do processo judicial em que teve lugar a nomeação, para averiguar da prática ou omissão pelo senhor advogado dos actos que – normalmente – deveriam ser os praticados pelo mandatário.

Esta omissão é tanto mais surpreendente quanto o expediente remetido incluía notificação de processo de embargos, figurando como autora a requerente da nomeação…

… o que significa que alguém – o nomeado ou outrem – terá praticado os actos para os quais foi requerida a nomeação.

 

Ainda, resulta do expediente que a participante entendeu requerer a substituição de advogado por não ter tido resposta a uma mensagem que lhe deixou sem que se saiba qual, quando ou por que modo.

 

Independentemente da margem de discricionariedade concedida pelo art. 146º do Estatuto ao relator, afigura-se que o único sentido excluído pela norma é o de lhe conceder a faculdade de nada fazer.

 

Buscando no Código de Processo Penal norma que possa suprir a parca regulamentação estatutária, diz-se no artigo 262 que o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.

Não será indiferente a referência a conjunto levada ao texto da lei.

 A noção de conjunto é uma das noções primitivas da matemática moderna, intuitivamente encarado como uma colecção de objectos de natureza qualquer. Representa-se simbolicamente por x ? X.

A matemática também nos fornece a noção de conjunto vazio como único que não possui elementos. Representa-se simbolicamente por {}.

Voltando ao direito sancionatório temos por evidente, como na matemática, que o conjunto de diligências de realização obrigatória não se pode conter num conjunto vazio.

Omitidas que foram todas e quaisquer diligências de inquérito, ocorre nulidade por falta e ou insuficiência de inquérito; artt. 119º/d e/ou 120º/2/d) do CPP, aplicáveis ex vi art. 121º da Lei 15/2005.

Mostra-se nulo todo o processado desde o despacho de fls. 37, que determinou a conclusão do processo a advogado instrutor para elaboração de projecto de acusação sem realização de qualquer diligência de prova.

Nulidade que se declara.

 

Em aditamento, sinaliza-se – já por indiciado pelo documento de fls. 9, já pela cópia da notificação remetida para os autos [notificação de sentença ao senhor advogado recorrido por ofício de 19.04.2004], de fls. 79 a 80 – que a eventual responsabilidade disciplinar poderá estar prescrita e/ou ser inexistente.

Sinaliza-se ainda o inconveniente da desculpabilização que parece emergir da natureza bicéfala da condução do processo, com (i) a relatora a não ordenar a realização de quaisquer diligências, (ii) o instrutor a cumprir o ordenado, confabulando uma acusação sem factos, e sem suscitar à relatora a necessidade de meios de prova, (iii) novo relator a ordenar a elaboração de relatório final, sem curar de apreciar os termos em que o processo (não) fora instruído, e (iv) uma secção do plenário a votar condenação com fundamento num relatório omisso de facto.

Não pode ser. A presunção de inocência, por um lado, o prestígio da Ordem e da acção disciplinar, saem lesionados pela forma aligeirada como decorreu a instrução e o julgamento do processo disciplinar.

 

Proposta de decisão        

 

Emito parecer com o sentido e alcance de:

- revogação do acórdão recorrido do Conselho de Deontologia de … de 14.10.2008 que condenou o senhor advogado … , titular da cédula profissional … ,  na pena de multa de € 1500,00;

- declaração de nulidade do processado desde fls. 37 dos autos, por verificação da falta e/ou insuficiência do inquérito, com baixa do processo ao Conselho de Deontologia para prosseguimento do processo, com realização do conjunto de diligências necessárias à tomada de decisão fundamentada quanto à acusação ou arquivamento.

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À próxima sessão da 1ª Secção do Conselho Superior para deliberação.

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Porto, 28 de Outubro de 2009


Relator: Pedro Alhinho

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